Sobre o centenário de João Cabral de Melo Neto

No prelúdio da discussão sobre o conceito de natureza em Schelling, Hegel afirma: ”mas as pedras clamam e se suprassumem no espírito”

Neste interstício entre o inorgânico e o orgânico, o aspérrimo mistério da vida a desafiar a atenção aguda dos filósofos, dos poetas e dos cientistas.

A poesia de Cabral é uma inspeção meticulosa, difícil, bruta e afirmativa do clamor das pedras. A pedra não como metáfora da imobilidade, mas da maleabilidade das formas com que a vida em seus meandros e em seus enclaves complexos se materializa. A lição de pedra que resiste ao fluir, mas, ao fluir, a ser maleada.

O recurso à pedra não é um sucumbir ao imediato, mas uma forma de evitar a dispersão das representações vazias em que incorrem com muita facilidade a poesia sofrível de éter, nácar e nenúfar. Contra esta loucura que obsidia a poesia, João Cabral busca elementos nas experiências do enfrentamento com o inóspito, com as situações fronteiriças e, num combate espiritual à guisa de Rimbaud, a afirmação incondicional da vida. A poesia de João Cabral é repassada de um vitalismo. Não o vitalismo biológico de Deleuze nem o vitalismo matemático de Badiou. É um vitalismo periférico, da hulha e do betume, vitalismo a contra-pelo, contra o sol quando cresta demasiado, contra a queda.

O último Heidegger cedeu à possibilidade, que julgava inconveniente, de aproximar o pensamento e a poesia, colocando o poeta como o guardião do aberto. Não é fácil ser o guardião do aberto, pois, implica a assunção do risco. O aberto é o risco, mas, além e aquém da promessa, é o lugar da vida. No aberto, é preciso a força do cante a palo seco:

“O cante a palo seco

é um cante a esmo:

exige ser cantado

com todo o ser aberto;

é um canto que exige

o ser-se ao meio-dia,

que é quando a sombra foge

e não medra a magia”

É na pura lâmina da voz que o poeta sustém com toda força os fios da vida.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *