Qui iure vindicet? – CRÍTICA À DOGMÁTICA PENAL

LuisAo identificar a norma (estatal) como única expressão do jurídico, a dogmática se limita ao estudo dos dados normativos positivados, apartando-os da realidade sócio-política, apreendendo do fático apenas o que é colhido pelas categorias abstratas com que trabalha.

A dogmática formaliza o direito, desprende-os dos germes políticos que o obsedam. É um saber, diria Baudrillard, que empreende próteses, pois narra o social na total transparência de uma unidade harmônica e feliz, negando as divisões e os conflitos sociais. Desintegra, portanto, a realidade social para reconhecer apenas os esquemas e fórmulas simplicistas elaboradas a partir das normas. O jurista como geômetra reduz a dogmática ao estudo das estruturas lógicas do jurídico, sem se importar com os conteúdos das normas.

As próteses do saber dogmático revelam-se nas imagens fabuladoras do direito, apresentado desde nascentes nobres e tranquilas: o direito como promotor do bem comum e redutor do arbítrio. O direito como o grande Pai protetor, como fundador dos valores mais nobres: ordem, segurança e justiça.

Daí que a ‘realidade jurídica’ é engendrada pela narração ‘feliz’ dos juristas. A dogmática narra o direito e o social. Narrando o direito, tenta salvaguardar sua função política (mesmo ilusória) de realizar o êxito do bom governo. Propala que as expressões normativas, sobre serem expressão da vontade geral, são exteriores aos conflitos e, portanto, constituem o universo do neutro,  da igualdade e da liberdade. Como assinala Jean-Pierre Faye, a narração é essa função fundamental e como que primitiva da linguagem que, carregada pela base material das sociedades, não apenas toca a história, mas efetivamente a engendra.

 A dogmática narra o direito penal como visando a proteger os bens jurídicos mais importantes, garantindo a condições de existência da sociedade. Subjacente a este visão está a ideologia da defesa social que conduz o jurista (ingênuo) à crença no papel relevante do seu saber como forma de proteção das condições de existência da sociedade. Ao admitir, sem reflexão, a unidade do social-histórico, ignora que, enquanto existir conflito, o nódulo central não é a defesa social, mas a ampliação do espaço social dos cidadãos.

Postular a unidade é uma tática simplista que engendra conformismo e, como diz Alessandro Barata, uma irrefletida sensação de militar do lado justo.

No caso da dogmática penal, alimenta-se a convicção de que a lei penal se aplica igualmente a todos (isonomia) e que a lei proporciona a certeza e a segurança, expurgando-se, deste modo, o capricho do intérprete (legalidade). Assim ao defender acriticamente tais postulados, os juristas colaboram decisivamente com o engessamento do social-histórico.

O ‘idealismo’ da dogmática deveras constitui um grande obstáculo epistemológico e sua superação é de substancial relevância para fundar uma dogmática mais rica e comprometida com a democracia.

Daí a relevância de empreender um verdadeiro corte epistemológico na linha de Althusser ao trazer para o plano do saber a luta de classes. Se a filosofia é a luta de classe no plano teórico, requer-se que o rigor do saber novo se erija contra a filosofia espontânea que naturaliza a dominação e cuja natureza ideológica implica numa relação imaginária dos sujeitos sociais com as condições reais de sua existência.

Somente com este corte, podemos encontrar as coordenadas que permitam uma saber vocacionado à transformação e que, invertendo a lógica ideológica, possa, ao interferir no imaginário, afetar profundamente o real.

Foi Brecht quem nos exortou a liquidar as antigas ideologias e a teorizar o saber novo que possa ajudar no avanço da democracia radical.

Luís Eduardo Gomes do Nascimento
Advogado e Professor da FACAPE E UNEB
 

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