Presidente eleito não deveria se desdizer tanto
Bolsonaristas estão reclamando das críticas que a imprensa faz ao presidente eleito. Acham que é má vontade. “O homem ainda nem chegou e vocês já ficam em cima. Vocês só sabem falar mal.” Que se preparem. Quando “chegar” vai ser muito pior. É a sina do eleito. Ele tem que se acostumar.
Mas, para não dizer que é implicância, quero confessar que estou bem impressionado com sua disposição e energia física. Para quem levou uma facada, foi operado, anda com uma bolsa de colostomia e ainda vai sofrer outra cirurgia, é admirável. Ele não para, tem paciência para falar com dezenas de chatos diariamente e viaja a Brasília com a frequência com que vai ao Banco pegar dinheiro para o churrasco. Deve ser efeito do pão com leite condensado.
Outra coisa muito elogiada é a facilidade com que volta atrás no que diz, no que promete e no que ameaça. Afinal, a coerência não é um valor em si. Ser coerente no erro, por exemplo, não é qualidade. Mas convenhamos que seria preferível que ele não precisasse se desdizer tanto: era melhor que pensasse mais, ouvisse mais, antes de falar. Para quem age por impulso, até que ele tem errado pouco.
Essa afirmação, porém, foi posta em dúvida com a escolha do futuro ministro das Relações Exteriores. Ficou claro o que o presidente queria dizer quando pregava para o Itamaraty o fim do que chamava de “viés ideológico”. Ele não esclarecia que o viés ideológico a que se referia era o de esquerda. O de direita era desejado.
O filho do presidente que fez uma sabatina prévia do escolhido sabia o que estava fazendo. Não só o novo chanceler Ernesto Araújo é a imagem e semelhança do capitão reformado. Trumpista declarado, militante virtual das teses mais extremadas no seu blog, ele vai além: está à direita de seu ídolo, acrescentando hipóteses meio paranoicas.
Defende, por exemplo, a teoria conspiratória segundo a qual existe um projeto “globalista” que pretende transferir o poder do Ocidente para a China, “a China maoísta que dominará o mundo”. Os colunistas Merval Pereira e Bernardo Mello Franco procuraram tranquilizá-lo, informando que o maoísmo foi abandonado em 1978. Não sei se adiantou, porque faz parte do complô também o que denuncia como “climatismo”, que na realidade é o esforço mundial de reduzir as emissões de carbono.
Essa transferência de poder global só não acontecerá porque Donald Trump não vai deixar e porque ele, nosso chanceler, se propõe — modéstia à parte — a “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”.
Os colunistas Merval Pereira e Bernardo Mello Franco procuraram tranqulizá-lo…
Quer dizer: mudando de viés estamos salvos.
Por: Zuenir Ventura – O Globo
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