POR QUE O SEMIPRESIDENCIALISMO É ANTICONSTITUCIONAL NO BRASIL?

A Dom Pedro Casaldáliga

“Se alguém pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz, através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.” Franz Kafka

Todo debate de índole constitucional deve partir, por razões de segurança jurídica e fidelidade ao projeto constitucional, do texto e de suas interações estruturais. Conforme salientei, alhures, a interpretação constitucional comporta três níveis: o textual, o estrutural e o histórico. O texto, na medida em que é um vir-a-ser-mundo, traz em bojo a estrutura de sua própria leitura.(1)

Em razões das várias crises político-econômicos por que passa a nação, vez ou outra, uns publicistas- que se arrogam a condição de mentores do país- propõem, contra o texto e contra o intertexto constitucional, a inserção, no nosso sistema político, do semipresidencialismo.

A ideia, para citar Nietzsche, confunde causa e efeito. Todos os problemas políticos brasileiros emanam da autorreferência do poder político que, na incapacidade de deliberar e resolver os problemas coletivos, reduz a dinâmica parlamentar à repartição mesquinha de benesses e prestígio.

A política – que é um ofício nobre- vira simplesmente uma prática de repartição colonial de interesses comezinhos e anti-republicanos.

Para ocultar tais mazelas, forjam-se termos os mais frágeis do ponto de vista teórico tais como presidencialismo de coalização, verdadeira noção de desorientação e, por corolário, ofusca o problema em vez de esclarecer. Na verdade, são termos sem qualquer conteúdo científico e que não merecem nem ser mencionado na medida em que não passam de ideologia da mais simplista possível. (2)

Duas notas técnicas sobre o tal semipresidencialismo:

  • Afronta o fundamento maior da República- a Soberania Popular;
  • O Presidencialismo é clausula pétrea e, portanto, integra o núcleo imodificável da constitucional;

Reza o parágrafo único do art. 1 da CRFB:

“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

É de hialina clareza que o mandato político, qualquer que seja, emana da vontade popular e não de interposta instituição ou pessoa. Fica evidente a esfuziante anticonstitucionalidade do semipresidencialismo (3). É importante remarcar que a expressão ‘’diretamente’’ se refere às formas de manifestação direta da soberania como plebiscito, referendo e projeto de iniciativa popular, não agasalhando qualquer interpretação que indique a possibilidade de intermediação entre o voto do povo e a produção dos mandatos políticos. A relação entre o povo e os mandatários se dá mediante o voto e não por vias transversas (nível textual).

No nível estrutural, verifica-se que, no âmbito do que Pontes de Miranda denominou princípios sensíveis, tem-se o sistema representativo e a autonomia do Poder Executivo. É de compreensão basal que o semipresidencialismo não se compadece nem se coaduna com o sistema representativo (nível estrutural).

Reza o art. 34 da CRFB:

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;

Os princípios sensíveis, conforme o gênio de Pontes de Miranda, são aqueles que, sendo inerentes à identidade da constituição, não podem ser retirados sob pena de se deformar o projeto constituinte originário. O sistema representativo e a autonomia do Executivo informam de forma indelével à ordem constitucional hodierna, podendo ser alterados somente por outra constituinte.

No núcleo imodificável da constituição, inserto no § 4º do art. 60 da CRFB, consta a presença indisfarçável do sistema representativo e do voto inalienável, o que, numa leitura intra-estrutural do dispositivo, deixa fora de dúvida que o sistema de governo adotado pelo constituinte é o Presidencialismo. É curial que nenhuma proposta com tendência- é de tendência que se trata- a abolir o presidencialismo não pode sequer ser objeto de deliberação. (4)

Do ponto de vista histórico, a única vez que inseriram o semipresidencialismo foi para manietar a vontade popular nos idos de 1961 para suprimir o poder do presidente popular e trabalhista João Goulart, evitando-se o acicate das reformas de base que ensejariam a mudança sócio-econômica do país. Tanto que deflagraram o golpe militar (nível histórico). Enfim, o Poder Executivo integra a unidade da constituição.

De que o Brasil precisa é de real democracia, retirando da oligarquia o monopólio da política e da vida. E que os publicistas cumpram o seu papel sem apropriação privada da linguagem.

Na cena final do filme- Deus e o Diabo na Terra do Sol- do genial baiano Glauber Rocha, Corisco alvejado, rodopia no ar, tomba e lança o grito  ‘’mais fortes são os poderes do povo’’; o grito alteia-se, reverbera, retine, reluz e se eterniza da mesma forma que a arte ultrapassa a individualidade que a concebe.

Fortes também são os poderes do conhecimento e o povo partilhará do sabor de saber-se livre.

  • NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018;
  • Ver nosso: https://lavrapalavra.com/2021/04/12/da-metodologia-juridica-na-producao-e-na-interpretacao-do-direito-estudo-de-um-caso/
  • A diferença entre inconstitucionalidade e anticonstitucionalidade é essencial em países de modernidade periférica. Zagrebelsky, em El Derecho Dúctil, traz essa importante distinção e que deve ser desdobrada com mais vagar. A anticonstitucionalidade demonstra um pendor deliberado em frustrar a constituição.
  • Conforme Jurisprudência inaugurada pelo Eminente Jurista e Ministro do STF Marco Aurélio, no caso de tramitação de projeto que fere cláusula pétrea cabe mandado de segurança preventivo a ser impetrado por parlamentar com escopo de garantir o devido processo legislativo e sustar a tramitação (MS 22183/DF, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio).

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

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