POR QUE MARX INVENTOU O SINTOMA?
Marx afirma que, quando foi redator na gazeta renana, foi constrangido a tratar de problemas materiais. A que problemas materiais se referia? Nesse momento de inquietude filosófica, a filosofia é interpelada a discutir as questões de terra e a condições sociais dos camponeses. É um instante decisivo em que Marx trava uma verdadeira batalha semiológica. Analisa os textos legais, lê, apressurado, os artigos da imprensa e, no rastro da linguagem, identifica, pela primeira vez, que a sociedade não é um todo orgânico, mas marcada por contradições que são ocultadas pela inversão ideológica dos problemas. É no analisar a forma com que, na Inglaterra, se colocou a questão da miséria que Marx enxerga o sintoma. É no terçar das armas das críticas que Marx inventa o sintoma.
Para Lacan, Marx inventou o sintoma não no sentido de uma criação arbitrária, mas por ter, pela primeira vez, visto e enunciado um problema que estava no real sem ter sido elevado ao plano da linguagem. Inventar o sintoma é entender a racionalidade da contradição, isto é, que uma contradição indica um conflito incontornável e que a maneira com que se tenta esconjura-lo já desnuda o próprio conflito. Inventar o sintoma, pois, é elevar à presença da linguagem uma questão ainda não formulada, mas em estado de latência na prática social.
Marx só identifica o sintoma quando, pela análise do discurso, por uma semiologia social rigorosa, visualiza com clarividência as racionalizações que desorientam as questões, lançando-as para o plano em que não podem ser resolvidas a não ser imaginariamente ou reprimidas de forma cruenta pela violência. Marx entende logo a inversão ideológica quando a questão da pobreza é colocada sob a perspectiva da culpabilidade do próprio cidadão excluído e pele sobrecodificação da questão social pela questão criminal. Em Glosas Crítica assertoa:
O Parlamento inglês combinou essa teoria de caráter humanitário com o parecer de que o pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo trabalhador, não devendo, em consequência, ser prevenido como infortúnio, mas reprimido e punido como crime.
Marx, como semiólogo, nota as racionalizações e chega à borda da grande contradição: a produção de riqueza está atrelada à produção de miséria e, a partir dessa simetria inevitável nos marcos do regime de propriedade capitalista, desenvolveu o modelo teórico das lutas de classes (no plural analógico). As lutas de classes significam a impossibilidade de a sociedade capitalística se representar de forma não antagônica.
Os aparelhos ideológicos são mobilizados como racionalizações com vistas a obscurecer as lutas de classes, a torná-las meras diferenças, esvaindo-se seu caráter agônico – no sentido grego do termo. Laclau insere o populismo na lógica das demandas, mas, por diluir a categorias das lutas de classes, não consegue estabelecer uma linha de demarcação para orientação crucial das refregas políticas. As lutas de classes são obscurecidas pelas demandas que impedem a sociedade de saber buscar a própria emancipação econômica.
O progressismo vazio se enreda na difusão das demandas e não toca questão central: a discussão do modo de produção. Bolsa família, bônus e rendas básicas são fantasmagorias de quem não quer enfrentar a questão decisiva. Enquanto a demanda indica o aprisionamento na circularidade vazia, a crítica marxista indica para a questão central pela qual se retoma o fio da meada: a batalha pelos modelos econômicos que, na América Latina, só poder ser empreendida pela unidade política da intersecção da classe operária e camponesa e os movimentos anticoloniais e anti-imperialistas.
Para Laclau, no plano político, deve imperar a razão populista, e, no plano econômico, a questão das classes econômicas. Ainda que seja engenhosa, e com largos conhecimentos linguísticos, faltou à teoria de Laclau a visão da totalidade e, onde vê determinações fixas, há a dinâmica inextrincável entre economia e política. Mais uma vez, o pensamento de Mao Tsé-Tung permanece vigente e vívido, sabendo articular de forma coerente a questão popular e questão de classe. Segundo o mestre, no contexto da guerra contra o Japão, povo era a união da classe operária e dos nacionalistas burgueses. Vencida a guerra, povo era a união entre a classe operária e os camponeses. Os termos são moventes analogicamente.
Só há política porque a contradição exige toda uma maquinaria deliberativa preordenada, em tese, à resolução dos problemas coletivos e que, ainda que se reifique, precisa mobilizar-se sob as várias formas reais ou imaginárias para impedir o deparar com as contradições. No capitalismo, a legislação torna-se simbólica numa simulação imaginária dos problemas pela proliferação de leis repletas de uma linguagem piedosa, mas carente de efetividade porque faltam as condições concretas para sua realização. A disseminação de leis é uma forma de a sociedade simular a solução de problemas que ela que não quer encarar. Em Constituição de Atenas, Aristóteles afirma que a constituição só se realiza se for superado o abismo entre ricos e pobres.
As lutas de classes, nesse sentido, constitui a condição de possibilidade da política. Só há política porque, no cerne do modo como se produz, cria-se uma superpopulação relativa, a qual, pela própria presença, ainda que não articulada sob a forma de organização política, ameaça a ordenação hierárquica da sociedade burguesa. Não é regressar à determinação unívoca, mas entender que só há política porque há um fosso entre ricos e pobres e que surge a necessidade de se criar instâncias de mediação institucional que, por mais neutras que se declarem, surgem mesmo dessa contradição ínsita à sociedade. O estado colonial, na sua gênese, não é o que reúne, mas o que surge para que evitar a dissolução ou o deparar com o caos básico da economia burguesa. Mas nada impede uma reorientação comunitária do Estado num sentido de construir, desde as bases populares, a reapropriação dos bens comuns.
Sartre diz, em Crítica da Razão Dialética, que foi a presença massiva da classe operária que fez o existencialismo entrar num ponto de bifurcação e aderir ao marxismo. A intuição é correta. Mas penso que, desde a América Latina, a questão é a percepção da superpopulação relativa. O que caracteriza o modo de produção capitalista é a multiplicação dos proletários- diz Marx. E disse mais: o apanágio do sistema capitalista é a produção da superpopulação relativa. A superpopulação relativa existe em três formas: a) a líquida ou fluente; b) a latente; c) estagnada; o que significa dizer que, no plano do capitalismo, o pleno emprego é uma ilusão muitas vez azeitada por pesquisas sem base empírica e reformas superficiais que servem para camuflar a questão central.
Rosa Luxemburgo colocou a questão corretamente: não há que negar o valor em si das reformas; toda reforma que, ao mudar gradativamente a realidade social e econômica, aumenta a consciência para si do proletário e instila um anseio pela ampliação da democracia, constituindo passo essencial na transformação cabal das formações sociais, é viável. Admoestáveis são as reformas rasteiras- estilo bolsa família ou bónus familiares – que escravizam e são engendradas numa lógica neocolonial e coronelista.
É preciso reafirmar a centralidade da questão econômica e enunciar que o devir humano envolve a necessidade de um modo de produção comunitário em que o direito à vida, o direito à saúde e o direito ao trabalho sejam direitos universais e não submetidos à decisão de oligarquias reacionárias. E, para isso, retomar o conceito de que a economia é o campo de reprodução da vida e, não a circulação autorreferente de dinheiro sem lastro material, é o ponto de partida incontornável de toda pretensão política genuinamente de esquerda. O trabalho vivo e a natureza são as verdadeiras fontes criadores de valor[1].
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] “A relação em espiral entre economia e política constitui o ponto de partida ineliminável. O projeto neoliberal, para os países periféricos, se funda naquilo que Gunder Frank chamou de desenvolvimento do subdesenvolvimento. No atual cenário, o Estado deve se limitar a lastrear o pagamento da dívida pública. O suposto elogio do mercado capaz de, por suas leis, realizar o ótimo social é um desvio ideológico para subordinar o Estado ao papel subalterno de mero fundo de capital. Isso mesmo: o Estado só para os donos dos negócios. Digamos diretamente: não há burguesia que não seja estatal. Não é mera coincidência que a constituição de 88 com vinculação orçamentária e direitos sociais tenha sido objeto de crítica há muito; a ênfase na austeridade fiscal representa justamente essa subordinação ao capital financeiro pelo mecanismo da dívida pública: privatização, destruição dos serviços públicos para criar campo vasto ao setor privado como educação e previdência, fim de investimentos sociais, acumulação de capital nas mãos de poucos, sendo os pequenos empresários sorvidos nesse processo (até onde vai a autofagia?); tudo isso, como disse Keynes refutando Hayek, gera o péssimo social cujo controle é entregue à política de Malthus e à máquina policialesca”.
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