PANDEMIA, O FIM E O COMEÇO DA POLÍTICA

Ao filósofo Bernard Bourgeois, o mais hegeliano de todos

Toda definição correta, desde Aristóteles, deve estabelecer o gênero próximo e a diferença específica. A endemia e a pandemia abrangem situações de propagação de doenças; na endemia, limita-se a uma região e os números de casos se mantêm em proporção aritmética de forma regularmente controlável; a pandemia estende-se a várias regiões e a doença se propaga em proporção geometria, podendo tornar-se incontrolável.

No contexto de formações coloniais, marcado pela colonialidade do poder, a pandemia desata um conjunto de questões problemáticas, sobretudo, no que se refere ao problema central da política.

Jacques Rancière articula o político ao desentendimento, isto é, à luta de classes como condição do político? Mas para definir o fenômeno devemos nos limitar à condição? Não seria necessário engajar o problema numa dimensão mais ampla?

Chantal Mouffe, ao vincar a distinção entre o político e a política, define política como antagonismo constitutivo da sociedade[1]. Mesmo desenvolvendo o conceito em relação ao liberalismo, falha, a nosso ver, grave, vejamos como aborda a questão:

“(…) entendo por ‘o político’ a dimensão de antagonismo que considero constitutiva das sociedades humanas, enquanto entendo por ‘política’ o conjunto da prática e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizada a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo política’’[2]

É um grande equívoco definir a política em referência à constituição de uma ordem. Conforme afirma Badiou, numa tradição que remonta a Maquiavel, passando por Rousseau a Althusser, a política existe para evitar o enfrentamento de um vazio que obseda as formações sociais. A política é menos o lugar da unidade do que a luta para preencher um vazio.

Laclau invoca o X incognoscível para indicar o vazio. Não há nada de incognoscível. O vazio é fruto do movimento dinâmico das lutas de classes, nas intersecções econômicas e políticas.

Outro equívoco grave de Mouffe é associar a concepção deliberativa a um resgate da moralidade no âmbito político[3]. É nada conhecer sobre Aristóteles.

Pensamos que a grave questão foi bem colocada por Engels, apesar de não ter levado à consumação plena o princípio dialético ‘’o um se divide em dois’’:

“O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é ‘a realidade da ideia ética’, nem ‘a imagem e a realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, essas classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro de limites da ‘ordem’. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, o Estado.[4]

Fazendo uma ligeira variação, podemos definir o Estado como instância da totalidade social-histórico, isto é, como lugar de mediação que, em razão da correlação de forças, pode ser um lugar de repressão ou de expressão da vontade geral. Nesse sentido, é crucial resgatar o conceito de deliberação. Não se delibera sobre o impossível nem sobre o necessário, já articulávamos em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social.

A deliberação se insere num contexto de escolha da própria escolha. Afirma Aristóteles que ‘’do justo e do injusto leva à aporia’’, isto é, a contingência não enquanto caos, mas como abertura conjuntural em que há possibilidade de escolher para além das engrenagens internas de um sistema reprodutor de sua mesma forma sob variações enganadoras.

Em razão das contradições do capitalismo, as formações sociais, desenvolvidas ou não, no contexto de pandemia, já não deliberam mais. Por exemplo, os discursos do Premier chinês Li Keqiang sobre taxas é uma prova cabal de que não se delibera mais.

Conforme disse Marx, o capital é o limite do capital. Em que sentido limite? No sentido platônico do conceito. O peso da dívida pública, as contradições no âmbito das classes dominantes, a dispersão popular, em contexto de pandemia, engendram um acúmulo de problemas e, como corolário, a incapacidade de deliberar, descambando-se para proscênio tétrico e sombrio de massacres de populações.

O livro Por Uma Renovação Marxista da Teoria da Dependência, demonstrando a dívida pública como mecanismo de reprodução da dependência econômica das formações sociais periféricas, é um ensaio preliminar para o retorno da política e, por corolário, da deliberação. Não há política no atual contexto do capitalismo mundial integrado.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor da UNEB.


[1] Em 2008, Em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social, definimos a política democrática como enfrentamento leal dos conflitos.

[2] MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 8.

[3] Habermas tem resgatado o conceito de deliberação esvaziado da dimensão profunda que tem em Aristóteles.

[4] ENGELS, Friedrich. A Origem do Estado, da Família e da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 160.

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