Qui iure vindicet? – ORDEM PÚBLICA E PRISÃO CAUTELAR

images (1)Herbert Hart foi o primeiro a salientar a textura aberta do direito. No seu livro já clássico,  afirma que a textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de condutas cuja definição jurídica devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários.[1]

Os estudos semiológicos do direito revelaram que a linguagem jurídica, por beber na linguagem ‘natural’, vem caracterizada pelos atributos desta, quais sejam: a vagueza e a ambiguidade. Um termo é vago quando não existe resposta definida quanto à sua aplicação (extensão indefinida). Um termo é ambíguo quando ostenta sentidos diversos em contextos diversos (intensão indefinida).

À fecundidade de tais estudos não se acrescentou o necessário alerta para o perigo do uso indiscriminado de termos vagos e ambíguos na seara penal e processual-penal.  Se atentarmos para o fato óbvio de que o direito penal não colima proteger os bens essenciais à coexistência social (ideologia liberal), mas ostenta um evidente caráter seletivo, pois colhe suas vítimas preferenciais nas classes subalternas e nos rebeldes (artistas e militantes), a presença de termos vagos e ambíguos na tipificação das condutas delitivas e nos pressupostos para prisão cautelar, arruína o cerne do Estado Democrático de Direito, que é a certeza de qual efeito a ordem jurídica atribui a determinado comportamento, tornando a intervenção penal imprevisível e injusta.

Como assinala Nilo Batista, formular tipos penais genéricos ou vazios, lançando mão de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, equivale a nada formular, mas constitui prática política nefasta e perigosa.[2]

A presença do termo ordem pública no art. 312 do Código Processo Penal como pressuposto para decretação de prisão preventiva constitui resquício autoritário que deve ser combatido por quem ainda tem memória de como os militares usaram e abusaram da linguagem indeterminada para perseguir os que ousavam enfrentar o regime de chumbo instaurado em 1964.

Quem gosta de pronunciar o termo Estado de Direito deveria também, por coerência, combater o uso de termos vagos na seara penal.

O termo ordem pública padece de anemia significativa, isto é, não significa nada, mas pode significar tudo. Por isso, todo e qualquer fato pode ser enquadrado nos seus lindes indefinidos, vulnerando o ideário democrático cuja ação busca arrancar aos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e à riqueza a onipotência sobre as vidas.[3]

Por meio de termos vagos na seara penal, as oligarquias controlam e promovem a paz que lhes interessa, ou seja, o estado de coisas em que a miséria resigna-se no seu gueto sem organizar-se politicamente.

O jurista militante Amilton Bueno de Carvalho proferiu decisão cuja premissa argumentativa merece ser exalçada[4]:

“HABEAS CORPUS. Prisão preventiva. requisitos legais. presunção de periculosidade pela probabilidade de reincidência. inadmissibilidade.

A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva – que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo) – tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito – considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se – torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social.

A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático –, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada – mera repetição da lei –, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente, portanto!

– A gravidade do delito, por si-só, também não sustenta o cárcere extemporâneo: ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime 70006140693, j. em 12/03/2003).”  Grifo nosso.

É preciso defender veementemente limites à intervenção penal ideologicamente voltada à criminalização de agentes e ações que não tem nada a haver com crime, mas que tangenciam os sintomas (fragilidades e incoerências) de uma determinada forma de organização societária para abrir horizontes políticos aqueles que são “parte de parte alguma’’, como bem definiu o nosso velho irmão atualíssimo Karl Marx.

 Luis Eduardo Gomes do Nascimento
Advogado e Professor da UNEB

1 HART. L.A Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fund Calouste Gulbenkian, 1986, p. 148.
2 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. R. Janeiro: Revan, 1990, p. 78.
3 RANCIÈRE, Jacques. El ódio a La democracia. B. Aires: Amorrortu, 2012, p. 136.
4 Apud LOPES JR, Aury. Direito processual penal. S. Paulo: Saraiva, 2012, p.845.  
 

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