“O que aconteceu em junho de 2013 no Brasil ainda não acabou”
A multidão de jovens que se aglomerava na última terça-feira na porta do Sesc Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, poderia dar a impressão de que alguma grande banda descolada se apresentaria em breve. Mas a grande atração do dia era o geógrafo marxista David Harvey (Kent, 1935), professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny), que veio ao Brasil para participar do Seminário Internacional Cidades Rebeldes, promovido pela Boitempo Editorial. Na programação, quatro aulas de introdução a sua obra ministradas pelos principais nomes da geografia, do urbanismo e da filosofia do Brasil, como Raquel Rolnik e Erminia Maricato.
Apresentando a edição traduzida de sua obra “Paris, capital da modernidade”, que chega agora às livrarias brasileiras, o próprio Harvey tomou o palco naquela tarde para apresentar sua análise de como a exclusão promovida pela urbanização de massa nas cidades desencadeia o descontentamento e as revoltas populares. E, como em alguns casos, a consequência se dá nos cenários políticos. Foi assim na Paris de 1848, analisada por ele em seu livro, na Baltimore de 1968 pós-morte do líder negro Martin Luther King, também estudada por ele, e na “pandemia de revoltas populares” vividas nos últimos anos em países como Espanha (com o movimento dos Indignados), Turquia (com os jovens em defesa do parque Gezi) e o Brasil, com as revoltas de junho de 2013, que teve seu auge há exatos dois anos neste dia 13, quando o ato, em São Paulo, foi reprimido violentamente pela polícia, deixou centenas de feridos, e incendiou os protestos pelo país.
Dois dias depois de sua palestra, um otimista Harvey conversou com o EL PAÍS sobre esses movimentos e suas consequências.
Pergunta. Na sua palestra você fez um paralelo entre os distúrbios de Baltimore após a morte de Luther King, em 1968, e os ocorridos em 2015, após a morte de Freddie Gray pela polícia. Como esses episódios tão distantes no tempo são semelhantes?
Resposta. Em 1968, basicamente, estávamos lidando com a situação do surgimento do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. O movimento de massa que havia lá era organizado de uma forma muito poderosa. No final dos anos 1960, isso começou a ficar muito perigoso para a estrutura política de poder e o perigo foi aumentando porque estava emergindo uma conexão entre a marginalização racial e a distinção de classe. E, quando você coloca raça e classe juntas, é como uma dinamite. Foi isso que os Panteras Negras fizeram e eles eram, basicamente, perseguidos e mortos. Malcolm X e Luther King foram mortos. De forma muito simplificada, uma força política muito poderosa foi suprimida. A resposta, em algum nível, foi que alguma pressão teve que ser retirada da repressão sofrida pelos negros. Então, seguimos por um número de anos em que a classe média negra, educada, pode desabrochar. É uma minoria, mas ainda assim importante. E chegamos ao ponto de termos um presidente negro saindo disso.
Mas a distinção de classe sempre esteve lá e a camada mais pobre da sociedade americana continua sendo negra ou hispânica. Não é por acaso que elas ainda vivem sob os mesmos tipos de condição, de repressão e isolamento. Em alguns aspectos, vivem em situação pior que a que viviam no final dos anos 1960 porque os trabalhos industriais, decentes, desapareceram agora. Então, quando uma nova fase de distúrbios aconteceu em 2015, o que vimos foi uma revolta dessa população contra sua condição de vida. O que é verdade em todos os eventos urbanos que vimos ao redor do mundo recentemente é que o gatilho da revolta, em muitos casos, é a morte de jovens negros pela ação policial. Mas a situação não tomaria as dimensões que tomou não fosse a existência desse amplo senso de descontentamento e alienação, que está bastante espalhado na comunidade. Todo esse descontentamento aparece após um incidente como esse. Então, não é possível dizer que é por causa desse incidente que a revolta acontece, mas por causa das condições de vida daquela população naquele momento histórico.
P. Esse gatilho da violência policial apareceu em diversas outras ocasiões. Aqui no Brasil, na Turquia, na Espanha. Os protestos começam pequenos, segmentados, a polícia age com violência e eles se tornam algo grande. Por que?
R. É muito difícil dizer porque acontece. A maioria de nós, inclusive eu, ficamos bastante surpresos com o que aconteceu, por exemplo, em Ferguson, no Missouri, onde um protesto de rua é seguido por uma força policial que parece que está invadindo o Iraque. E que, de fato, usou o equipamento militar do Iraque na rua, contra uma população civil que está simplesmente protestando, de forma legítima. O que acontece é que há uma intenção crescente de militarizar o descontentamento popular. E receber o descontentamento popular com repressão. Isso é legitimado, cada vez mais, por essa retórica antiterrorismo, essa mentalidade antiterrorista de que todos que não estão agindo em conformidade com o sistema são potencialmente terroristas. Há essa mentalidade e a tendência de usar a força policial, e usá-la instantaneamente, para conter o descontentamento. O movimento Occupy, de Nova York, que era muito pequeno e, em muitas maneiras, até inocente, foi recebido por uma feroz repressão policial. E todos ficaram se questionando por que. No Brasil, assim como em Istambul, a violência da resposta policial se tornou parte do problema e criou uma guerra urbana, entre as forças militares e os manifestantes, que também se tornaram cada vez mais sofisticados para lutar batalhas de rua.
P. Essa resposta pode ser um sinal de que os Estados não estão conseguindo compreender o que de fato está acontecendo?
R. Acho que há uma distância em relação ao povo e aos sentimentos do povo. Parte do que está movendo a raiva da população é a sensação de que não há de fato uma democracia, canais reais de consulta e de engajamento ao processo político. O Estado e um pequeno grupo de líderes de negócios poderosos tomam decisões sobre a construção de um novo estádio de futebol, ou outros megaprojetos. Há um sentimento de alienação do processo político. E isso constrói uma importante base para a frustração e a raiva. Pessoas alienadas tendem a ser muito passivas até que alguma coisa aconteça e elas se tornem bravas. E aí se começa a ver protestos desse tipo, seguidos dessa repressão. Vimos isso em muitas cidades.
P. As próprias condições de vida e o processo de urbanização também contribuem?
R. Acho que como residente de uma cidade, eu sempre gostei de me sentir confortável na rua que eu vivo, de saber que eu tenho algo a dizer sobre a vida diária que se passa ao meu redor, e de ser capaz de desfrutar dessa vida. As pessoas não têm o tempo para desfrutar a vida. Esse tempo é tomado por uma série de demandas, como obrigações familiares e todo o resto. As pessoas estão estressadas. E pessoas estressadas tendem a ser revoltadas com as condições da vida. Ao mesmo tempo, elas se encontram frequentemente exploradas. Eu falo para os meus estudantes: ‘vocês podem não sentir isso na força de trabalho, mas e a companhia telefônica te explora? A empresa de cartão de crédito te explora?’ E eles dizem: ‘sim, sim! O proprietário do meu apartamento subiu o aluguel em mais de 30%!’ A vida é impossível. As pessoas vão a um trabalho, que muitas vezes sentem sem significado. Há uma lacuna de significado na vida. Há um descontentamento geral com as condições. E, ao mesmo tempo, elas pensam: ‘não há motivos para eu votar, se eu votar eles vão continuar fazendo a mesma coisa do mesmo jeito, não vão me consultar’. Há uma alienação com o processo político. Somando a isso, a segregação entra no quadro. As pessoas se sentem trancadas em sua parte da cidade e há essas comunidades muradas onde elas não podem ir, todos esses locais proibidos onde as pessoas não podem circular ao invés de a cidade ser um ambiente aberto, onde as pessoas podem circular, interagir.
P. Como o centro das cidades, que expulsam as populações pobres por se tornarem cada vez mais caros?
R. Muitas pessoas sentem que a cidade está sendo tirada delas. Que a cidade que antes elas sentiam ser delas, de alguma forma está sendo roubada delas. O que é interessante é que esse era um dos grandes sentimentos que existia já na comunidade de Paris em 1871, de que a reconstrução da cidade em volta de coisas muito burguesas forçou a massa da população para os subúrbios. Então vemos esses movimentos em que as pessoas, de forma revolucionária, tentam retomar a cidade.
P. Como em Istambul, como o parque Gezi, aqui no Brasil, com o Ocupe Estelita…
R. Sim, passei uma manhã muito agradável com eles em Recife, aliás.
P. A área, no fim, deve mesmo se tornar empreendimento imobiliário.
R. As pessoas vão lá e lutam e é muito raro que elas de fato ganhem. Mas o outro sinal importante de tudo isso, que foi verdade aqui no Brasil, em 2013, é que quando algo que emerge em uma só cidade acaba contagiando outras cidades paralelamente é um sinal importante de que há algo errado com toda a forma como o processo está funcionando. São as pessoas dizendo: ‘temos que mudar o processo radicalmente’.
P. E como mudar? Aqui no Brasil o aumento da tarifa desencadeou os protestos em várias cidades. Diferentes demandas surgiram, mas não vivemos uma mudança política como ocorreu na Espanha, com o Podemos, ou na Grécia, com o Syriza. Por acha que isso aconteceu?
R. Eu não sei. É algo que eu gostaria de saber de você. Acho que a questão que eu perguntaria é: tem certeza de que nada mudou? As pessoas vão para as ruas, a memória daquilo não desaparece da noite para o dia. Neste momento, provavelmente, tudo está um pouco confuso pelos protestos liderados pela ala da direita [contra a presidenta Dilma Rousseff] e ninguém sabe qual a forma política que os protestos de esquerda vão tomar. Ainda não se produziu um Podemos, um Syriza. Na Turquia, esse processo também promoveu um novo partido político, que é o curdo HDP, que foi eleito agora para o Parlamento e evitou que o presidente reescrevesse a Constituição para ter poderes absolutos, o que foi um momento importante para a democracia do país e que não teria acontecido sem o chamado processo Gezi [em referência à revolta gerada pela intenção de construir um shopping no local do parque Gezi]. Aqui, eu acho que o problema é que vocês têm a Dilma e o PT no poder. O PT se tornou mais neoliberal, está implementando uma série de políticas de austeridade e ninguém se sente animado a apoiar isso, a ir às ruas e apoiar Dilma e as políticas de austeridade. As pessoas gostariam de sair às ruas e apoiar algo diferente. Mas, no momento, esse algo diferente não existe. Pode vir no futuro, quem sabe. Eu suspeito que vai emergir.
P. Seria possível, a essa altura, o PT voltar a ser o que era?
R. O PT poderia mudar. Mas a gente vê exemplos de outros países, como a Inglaterra, onde o Partido Trabalhista mudou para ser um partido mais radical e a resposta foi negativa. Eu suspeito que para o PT não vai ser mais possível. Isso iria requerer uma grande revolução dentro do partido. Há outros partidos de esquerda menores que tendem a ser mais sectários e que poderiam se unir, como aconteceu com o Syriza, em uma força política mais coerente. Nesse caso, eles com certeza invocariam o espírito de junho de 2013, sendo a base do que eles gostariam de fazer. Acho que o aconteceu em junho de 2013 ainda não acabou e as consequências ainda estão para ser conhecidas.
P. O Estado pode agir para mudar o que tem provocado esse descontentamento geral?
R. Depende da base social do aparato estatal. O aparato estatal tem uma burocracia que tende a operar de uma maneira própria, independentemente do poder político. Essa burocracia é mais alinhada com o que os desenvolvedores querem. Quando se trata de um poder com uma base política muito forte, então o lado político tende a ser mais combativo contra os grandes projetos. Pode parar alguns dos megaprojetos, começar a se colocar em parceria com os movimentos sociais. Então, um movimento de bairro que está demandando melhorias na qualidade de vida poderá achar um Estado que é parceiro, em oposição a um contra o qual ele tem que entrar em confronto. Será muito interessante de ver o que vai acontecer em Madri e em Barcelona, por exemplo, onde duas prefeitas foram eleitas com base em uma força social que dizia que é preciso fazer alguma coisa diferente. E vamos ver o quanto o que elas conseguem fazer é, de fato, diferente. Vimos em Nova York, um prefeito mais inclinado à esquerda sendo eleito. Mas, até agora, ele ainda não foi capaz de fazer muito porque os poderes financeiros o pararam.
P. Temos um processo parecido em São Paulo, com o prefeito Fernando Haddad. Como consequência, parece que houve um afastamento dos movimentos sociais que o apoiaram.
R. É sempre muito difícil manter essa conexão viva. O prefeito se transformar no parceiro dos movimentos sociais é sempre um pouco perigoso porque as pessoas que financiam as eleições não vão mais financiar aquele prefeito. É assim que a política local é dada. Mas, por outro lado, se os movimentos sociais são fortes e poderosos o suficiente, eles podem garantir a eleição do prefeito. É assim que a luta de classe pode começar a retomar as coisas. Los Angeles e Seattle estão agora demandando um salário mínimo para todos os que trabalham naquelas cidades. O salário mínimo federal é de 7 dólares a hora e eles estão elevando para 15, progressivamente. É a cidade se movendo porque a população decidiu eleger pessoas progressistas. E para eles continuarem a ser reeleitos, eles têm que continuar fazendo coisas progressistas, como isso de elevar o salário mínimo.
P. Você, então, parece otimista em relação a esses movimentos ao redor do mundo.
R. Acho que coisas interessantes estão acontecendo no momento, como o que aconteceu em Barcelona, como o que aconteceu em Madri, em Los Angeles, em Seattle. Há muitos movimentos acontecendo no momento. Passamos por dez anos em que não houve nenhum movimento nessa direção. Agora há um movimento que está indo na direção certa e que tende a se fortalecer e ir para algum lugar.
P. Mas você também destacou na sua palestra que a falha desses movimentos pode dar espaço para o fortalecimento da extrema direita.
R. Acho que essa é a outra possibilidade. E é por isso que eu acho que é crucial para as pessoas começarem a reconhecer que esse é um momento histórico importante, que essa abertura para a esquerda na política é muito mais difícil e as pessoas, às vezes, têm que deixar de lado as suas visões sectárias e dizer: ‘ok, é mais importante ser solidário do que estar certo’.
Fonte: EL País.
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