Frutos: mas que frutos?
“Não levas tua beleza ao túmulo:
trazes ao túmulo o imprestável.”
(Nauro Machado, Hades)
Abriu a porta do carro e entrou. Marcelo estava ansioso, era o seu último dia de graduação. Cinco longos anos. A árdua aprendizagem que a universidade não lhe dera. Apresentada a monografia, adeus sala de aula. Horas estragadas, pensava. Angústia-resto.
Em casa, aprendeu a lição secular. Necessário ser alguém, todos lhe diziam. No início, não compreendeu bem o badalar perenal. Nascer não basta? O pai dizia que não. Assim a mãe, a vó e o irmão, mais recente aprendiz. A escola logo lhe apareceu como primeira gradação. Lá iria aprender a ser alguém, tornar-se grande. Matriculado, a velha liturgia fê-lo juntar letras, formar vocábulos. Riscado o quadro, a professora instigava os alunos à repetição. De tudo, a sonoridade das palavras o entontecia.
Em tempos de vestibulares, dois interesses colidiram, infranqueáveis. Por sua própria vontade, escolheu Física, paixão cuja escola não conseguiu matar, absolutamente. Como, porém, explicar ao pai? Rubem, homem criado na lógica da mercancia, não dava ponto sem nó. Observava, mesmo uma flor, sob a ótica da lucratividade. Vá explicá-lo a propósito das paixões, dos impulsos! Debalde, pensava Marcelo.
— Menino, atente: é preciso ser grande, doutor. Física não te levará a lugar algum. Melhor te cairá um terno ou um jaleco… De médico, não me venha com graça! – sentenciava.
A contragosto, ei-lo advogado. Doutor, sim, senhor! Com que força – ou languidez – move-se um homem sob coerção? Bacharel, o diploma na parede, o pai estampava largo sorriso, enquanto mostrava aos visitantes o papel que era mais seu que do filho.
— Doutor, meu filho! – repetia, efusivo.
Sim, ainda havia outra árvore de que colher frutos. Grávida, a mulher abrigava uma prospecção. Tal a sua idiossincrasia, aos filhos bem poderiam ser os nomes dispensáveis. Antes um número – essas vidas estatísticas.
Nos livros, Marcelo afogava a própria tibiez. A literatura, precisamente, soprava em seus subsolos, clarejava sua água-furtada. Com que euforia lera as andanças do Cavaleiro da Triste Figura! E Dostoiévski, em continuação, que maravilha de idiota. Se ao menos conservasse a intrepidez de quem, elegendo ideais, segue a desafiar os percalços do caminho. Ser, também ele, guiado por uma pura beleza. Se Dulcinéia ou Nastássia Filíppovna, pouco se lhe daria. Importante, unicamente, um encanto arrebatedor, uma força a incitar coragem ante os despropósitos do mundo. Mas, não. O medo o tornara isto que é, um títere que delira com cordéis inalcançáveis.
Fustigava-o a mínima decepção causada. O cotidiano afugentava, por seu próprio alvedrio, as lições tomadas nas brochuras literárias, tamanho o hábito contristado de fazer as vontades forâneas, alheias. Ser benquisto, não sabia Marcelo, requer, em muitos casos, a anulação de si próprio. Dizer não aos familiares – que fardo insuportável! O sorriso dos que lhe cercavam, queria crer, valia os seus infernos diários, os passos não dados, as cidades não vistas, as ardências longínquas. Seguia, tal a sua convicção.
Ante o impulso da satisfação externa, Marcelo enceta carreira por todos há muito esperada. Nascera com esse objetivo. Preestabelecido unilateralmente. Um feto a espera do ‘doutor’ a anteceder o nome, uma criança a brincar enquanto se delibera sobre seu futuro certo, pontual, irretorquível. Doutor, ei-lo. Primeiro cliente. Para ele, chateação. Ter de ir ao código, encontrar-se com juiz, dizer ao inaugural que não se preocupe, que fará tudo quanto alcance. Enfado. Por muito pouco, náusea.
Dia da audiência. Acorda cedo e, entre um e outro bocejo, sorve o café. Trânsito. Estrépito citadino. Chega. Atravessa a rua, distraidamente. Outro bocejo. A cabeça em outro lugar, caminha, displicente, em direção ao fórum. Não nota o carro em alta velocidade, motorista embriagado, logo cedo, que absurdo!
Em seu velório, o pai, em prantos, remói a própria dor. Tentam acalmá-lo. Falam nos desígnios de Deus. Que não, responde, não pode ser. Aos berros, lamenta os lucros cessantes. O filho morto depois de tanto investimento: escola, faculdade, livros técnicos, calculadora, régua. O que fizera para merecer tal, Senhor, o que fizera? Desconsolado, desvia o seu olhar para a barriga da mulher, já agora com oito meses. E como quem vê o prorromper de chama nova, estertora:
— Ao menos este fruto a colher, este doutor futuro, esta prospecção…
Breno S. Amorim
[…] Publicado no site Cidadania Ativa, em 7 de abril de 2016. (http://www.cidadaniaativa.com/frutos-mas-que-frutos) […]