DE QUAL FANON FALAMOS?
A Luma Mahin, rebelde, viva e, absolutamente, feliz.
Um dia, uma dia cheio de penumbra e expectativa de luz, talvez se faça a história da recepção dos filósofos: de como cada época se apropria de um autor para engajá-lo numa ou outra direção, de como um autor crítico pode ser desarmado por seus pretensos continuadores mediante a supressão das bases e das injunções que lhe move para lançá-lo nas vagas dos modismos do presente.
Se Sartre, em o Prefácio dos Condenados da Terra, mostra um Fanon capaz de abrir uma ferida narcísica no ufanismo eurocêntrico porque, hoje, se verifica um retorno a um Fanon reacionário mesmo que sob a aparência transformadora. Porque Fanon não é apenas um pensador que mostrou a relação intrínseca entre capitalismo e racismo, mas, sobretudo, um pensador que procurou as raízes profundas da alienação ideológica e econômica dos negros.
Uma forma de fugir da radicalidade de um autor é afastar a totalidade em que se engaja para abordar aspectos subalternos e retirar-lhe a seiva contestatória. De qual Fanon falamos?
Não basta dizer o óbvio de um excedente humano capitulado como refugo nem fazer uma aposta vazia na alteridade, é preciso coragem de enunciar qual o dispositivo do racismo numa formação social marcadamente exploradora? Dizer, no vago, sem desvelar a estrutura profunda da formação social capitalista, que não há capitalismo sem subsídios raciais é tergiversação incompatível com a injunção do pensamento que Hegel mesmo articulava à coragem da verdade e a fé no espírito humano1.
Dizer que há uma massa excedente fora da humanidade é render-se a uma lógica simplista, pois, na medida em que figura como superpopulação relativa sustenta a lógica da exploração daqueles que ocupam um lugar no sistema de exploração da mais-valia. A massa está fora e dentro ao mesmo tempo. É uma percepção dialética que deve realçada para que o aspecto da ‘necessidade’ estrutural da massa excedente nos marcos do capitalismo não seja obliterada.
Fanon, mesmo escrevendo no estertor e na agonia das lutas anticolonias e na tentativa furiosa de expressar de forma lacônica e explosiva a situação colonial, soube enunciar o sintoma do reacismo de forma muita clara:
“Resta evidente que a verdadeira desalienação do Negro depende da tomada de consciência abrupta das realidades econômicas e sociais” 2
Uma teoria é científica, conforme salienta Maurice Godelier, quando se esforça por estabelecer as relações e as correspondências entre as diversas instâncias que compõem uma formação social ainda que reconheça, na linha althusseriana, a relativa autonomia entre essas instâncias. Mais ainda, invocando a metáfora maoísta, a relação em espiral e de influência recíproca entre as diversas instâncias de uma formação social.
Depreende-se que o pensamento de Fanon remonta um fenômeno social às determinações econômicas e, nessa injunção, longe de pretender a crítica da razão negra, engaja-se, com furor e verdade, na crítica de todos os dispositivos e diagramas da branquidão como propriedade. Por isso, de que Fanon falamos?3
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
1 Em 2008, em A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, já tínhamos assinalado que a abolição da escravatura gera uma superpopulação excluída sem qualquer possibilidade de inserção na sociedade industrial, revelamos a necrofilia do poder, e definíamos a democracia como alteridade ao conflito e ao outro num abertura inclusiva e poética do mundo, mas, no enunciar isso, fazíamos referência à estrutura hegemônica da propriedade como forma de criar um humanismo excludente. Ou seja, ainda que naquele momento tínhamos crítica a Marx, nunca o abandonamos e, ao longo do tempo, o que era crítica era apenas um ausência: a ausência de uma leitura mais ampla e detida de Marx. Por isso, passamos a reinvindicar, com destemor, o marxismo ortodoxo. Nunca deixamos de nos mover em direção à verdade.
2 FANON, Franz. Ouvres: peau noire, masques blanc, Paris: Éditions La Découverte, Paris, 2011, pagina 66.
3 Pretendo, futuramente, dedicar-me a todas as determinações e consequências libertadoras da obra de Fanon.
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