A copa já era! – Parte Final

MortesO presente texto tem o propósito de apresentar onze argumentos, do goleiro ao ponta-esquerda, para demonstrar que a Copa já era! Ou seja, que já não terá nenhum valor para a sociedade brasileira e, em especial para a classe trabalhadora, restando-nos ser diligentes para que os danos gerados não se arrastem para o período posterior à Copa.

10. A culpabilização das vítimas

A respeito do acidente de Fábio Hamilton da Cruz, o Delegado designado para verificação do ocorrido, após ouvir alguns relatos, um dia depois do ocorrido, sem a realização de qualquer laudo técnico, já concluiu que teria havido um      “excesso de confiança “da vítima.

Essa foi, ademais, outra forma de agressão aos direitos dos trabalhadores que a pressa para a realização da Copa acabou reforçando, a da culpabilização da vítima nos acidentes do trabalho.

Ora, como o próprio nome diz, o acidente do trabalho é um sinistro que se dá em função da realização de trabalho em benefício alheio, ao qual, independente da postura da vítima, fica obrigado a reparar o dano, já que o risco da atividade econômica lhe pertence (art. . Da CLT) e, consequentemente, é de sua responsabilidade o cuidado com o meio ambiente de trabalho.

É extremamente agressivo à inteligência humana, servindo, inclusive para fazer prolongar no tempo o sofrimento da vítima ou de seus familiares, o argumento, daquele que explora com proveito econômico o trabalho alheio, de que “vai apurar” o ocorrido, deixando transparecer no ar uma acusação, que nem sempre é velada, de que a culpa pelo acidente foi do trabalhador.

Veja-se, por exemplo, o que se passou no caso do Raimundo Nonato Lima Costa, que morreu após uma queda de 35 metros na Arena da Amazônia. Em nota de pesar pela sua morte, a responsável técnica pela obra não teve o menor receio, inclusive, de fazer uma acusação generalizada aos trabalhadores, apontando-os como responsáveis por sua própria segurança. Diz a nota.

NOTA DE PESAR

A Andrade Gutierrez lamenta a morte do operário Raimundo Nonato Lima Costa, ocorrida na noite desta quinta-feira, durante o turno noturno da obra da Arena da Amazônia. A empresa providenciou apoio imediato à família do funcionário e aguarda o resultado dos trabalhos da perícia técnica que foi iniciada pela Polícia Civil com o objetivo de apurar as causas do ocorrido.

A Andrade Gutierrez reitera o compromisso assumido com a segurança de todos os seus funcionários e informa que intensificará o trabalho de conscientização dos operários com foco na prevenção de acidentes.

Por ocasião da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, na mesma Arena, já mencionada acima, o secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, foi além na agressão aos trabalhadores e desferiu o ataque de que as duas quedas fatais até então havidas na Arena tinham sido fruto do” relaxo “dos operários na utilização dos equipamentos de segurança”. “Usar o equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa, e é isso que agora nós não podemos deixar”. “Infelizmente, os dois acidentes aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso correto do equipamento.”

E, sobre a morte de Fabio Hamilton da Cruz no estádio no Itaquerão, disse Andrés Sanches: “Na vida, cometemos erros e excessos. Já dirigi carro a 150 km/h. Eu não bebo. Vocês já devem ter dirigido “mamados”. Infelizmente, cometemos erros que acabam em fatalidade. Realmente, é padrão na construção civil.”

11. O retrocesso social e humano da Copa

Bem se vê que o legado maléfico para os trabalhadores brasileiros com a Copa não está apenas nas más condições de trabalho e nos consequentes oito acidentes fatais (não se contando aqui os vários outros acidentes do trabalho que não resultaram em óbito), o que, por si, já constitui um grande prejuízo, ainda mais se lembrarmos que as obras para a Copa da África em 2010 deixaram 02 mortes por acidente do trabalho, está também na tentativa explícita de culpar as vítimas, buscando atingir a uma impunidade que reforça a lógica de uma exploração do trabalho alheio pautada pela desconsideração da dignidade humana.

A Copa já trouxe grandes prejuízos à classe trabalhadora e é preciso impedir que se consagrem e se prolonguem, mansa e silenciosamente, para o período pós-Copa. Não tendo sido possível obstar que o Estado de exceção se instaurasse na Copa é essencial, ao menos, não permitir que ele continue produzindo efeitos.

O passo fundamental é o de recuperar a consciência, pois a porta aberta às concessões morais e éticas para atender aos interesses econômicos na realização da Copa tem deixado passar a própria dignidade, o que resta demonstrado nas manifestações que tentam justificar o injustificável apenas para não permitir qualquer abalo na “organização” do evento. Foi assim, por exemplo, que o maior atleta do século XX e melhor jogador de futebol de todos os tempos, o eterno Pelé, chegou a sugerir, mesmo que não tenha tido uma intenção malévola, que mortes em obras são fatos que acontecem, “são coisas da vida” e que se preocupava mesmo era com o atraso nas obras dos aeroportos; que o competente e carismático técnico da seleção brasileira, Luiz Felipe Scolari, ainda que sem querer ofender, afirmou que a solução para o problema do racismo no futebol é ignorar os “babacas” que cometem tais ofensas, pois puni-los não resolve nada; e que o Ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, cogitou pedir para que os cidadãos brasileiros economizassem energia a fim de que não faltasse luz na Copa.

A postura subserviente, para satisfazer os interesses da FIFA, chegou ao ponto extremo de algumas cidades, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Natal e Fortaleza, terem atendido pedido feito, com a maior cara de pau do mundo, pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, para que as cidades sedes de jogos da Copa concedessem transporte gratuito – algo que o Movimento Passe Livre está lutando, e sofrendo, para conseguir há anos –, sendo que a concessão, diversamente do que tem buscado o MPL, não se destina às pessoas necessitadas, mas aos torcedores dos jogos da Copa, que possuem condições financeiras para pagar os altos preços dos ingressos, que chegaram a ser vendidos, no paralelo, por até R$91 mil…

É de suma importância deixar claro, para a nossa compreensão e para a nossa imagem no mundo, que temos a percepção de todos esses problemas, que não o aprovamos e que estamos dispostos a enfrentá-los e superá-los.

O autêntico efeito positivo da Copa – realizada, ou não – será a constatação de que a classe trabalhadora se encontra em um estágio de consciência que lhe permite compreender que a Copa reforça e intensifica a lógica da exploração do trabalho como fonte reprodutora do capital, favorecendo ao processo de acumulação da riqueza, ao mesmo tempo em que permite a institucionalização de uma evasão oficial de divisas. A partir dessa compreensão, a classe trabalhadora não se deixará levar pela retórica de que o dinheiro dos turistas vai estimular o crescimento e gerar empregos, até porque ao se inserir na mesma lógica capitalista o dinheiro não é revertido à classe trabalhadora, à qual apenas é remunerada, sem o necessário equivalente, pelo trabalho prestado, direcionando-se, pois, a maior parcela do dinheiro em circulação em função da Copa às multinacionais aqui instaladas, especialmente no setor hoteleiro e nas companhias aéreas.

Cada trabalhador, pensando em sua atividade e em seu cotidiano de ganho e de trabalho durante a Copa, ou antes, que responda: teve ou terá algum ganho na Copa que não provenha do trabalho? Este trabalho é prestado em que condições? O eventual acréscimo de ganho está ligado ao aumento da quantidade de trabalho prestado? Que o digam, sobretudo, os jornalistas!

Claro que uma ou outra experiência comercial exitosa, desvinculada da dos protegidos da FIFA, pode ocorrer, mas isso por exceção. E, cumpre repetir: mesmo que no geral a Copa produza resultados econômicos satisfatórios, não se terão, com isso, justificadas as supressões da ordem jurídica constitucional, já havidas no período de preparação para o evento, e as violências sofridas por diversas pessoas, e, em especial, a classe trabalhadora, no que tange aos seus direitos sociais e humanos.

Este é o ponto fundamental: o de não permitir que a Copa e a violência institucional posta a seu serviço furtem a nossa consciência, que está sendo duramente construída, vale lembrar, após 21 anos de ditadura, seguida de 15 anos de propaganda neoliberal. A produção dessa consciência é extremamente relevante para que o drama das diversas pessoas, vitimadas pela Copa, não se arraste por muito mais tempo, sofrimento que, ademais, só aumenta quando, buscando não abalar eventual euforia da Copa, se tenta desconsiderar a sua dor, ou quando, partindo de uma perversão da realidade, argumenta-se que as pessoas que são contra a Copa (mesmo se apoiadas nos motivos acima mencionados) fazem parte de uma conspiração para “contaminar” a Copa, apontadas como adeptas da “violência”, sendo que para a ação dessas pessoas (que, de fato, carregam um dado de consciência), o que se reserva é o contra-argumento da “segurança pesada”.

O desafio está lançado. O que vai acontecer nos jogos da Copa, se a “seleção canarinho” vai se sagrar hexa campeã, ou não, não é decisivo para a história brasileira. Já o tipo de racionalidade e de reação que produzirmos diante dos fatos sociais e jurídicos extremamente graves relacionados ao evento vai, certamente, determinar qual o tipo de sociedade teremos na sequência. Boa ou ruim, a Copa acaba e a vida concreta continua e será boa ou ruim na medida da nossa capacidade de compreendê-la e de interagir com ela, pois como já disse Drummond:

Foi-se a Copa? Não faz mal. Adeus chutes e sistemas. A gente pode, afinal, cuidar de nossos problemas.

Faltou inflação de pontos? Perdura a inflação de fato. Deixaremos de ser tontos se chutarmos no alvo exato.

O povo, noutro torneio, havendo tenacidade, ganhará, rijo, e de cheio, A Copa da Liberdade.

*Jorge Luiz Souto Maior – professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia.

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