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Por um direito que não veste toga

“Meu bem não pense em paz, que deixa a alma antiga.” (Belchior, Voz da América)

BRENOAlain Badiou [1], ao analisar o anúncio do evangelho, feito por Paulo, mostra-nos que, diante da categoria acontecimento (como ponto real), a língua é colocada num impasse. Dito de outro modo, como Paulo deveria abandonar, ao mesmo tempo, o “discurso da razão” (dos gregos) e o “discurso do poder” (dos judeus), restou-lhe imperioso o rompimento com os discursos existentes “a fim de que a palavra do Cristo não se torne vã”.

Neste sentido – acreditamos -, caso queiramos anunciar um novo discurso, dentro do direito, é necessário romper com o “discurso da razão” (dogmática jurídica) e com o discurso do poder (lei). Destarte, ao anunciarmos o direito com um outro discurso, comprovaremos que ele não é o “direito da razão dogmática”, tampouco o “direito da lei/poder”. Aqui, pois, exsurge a imprescindibilidade em narrar um direito sem latim e toga, tomados, respectivamente, como símbolos dos dois tipos acima descritos.

Ao destacar o enunciado, tido como mais radical por Badiou – “Deus escolheu as coisas que não são para abolir aquelas que são” -, o filósofo nos diz que é, na invenção de uma língua em que a loucura, escândalo e fraqueza suplantam a razão do conhecimento, a ordem e o poder, onde o não ser é a única afirmação validável do ser articulado pelo discurso cristão. [2] De tal modo, como o apóstulo Paulo, caso intentemos criar uma nova perspectiva dentro do direito, será necessário evidenciar a incompatibilidade entre direito, lei e dogmática (dentro dos termos supramencionados, bem entendido). Neste ponto, a propósito da elisão encetada pelo apóstolo, Paulo se faz incompreensível ao próprio Pascal, outro grande “antifilósofo”. Outrossim, não se nos apresentará como novidade aquele que, mesmo em busca de um“novo direito”, não alcance o entendimento do que, aqui, vai formulado como proposta.

Dentro desta perspectiva, importante salientar uma interessante divergência entre Paulo e Pascal, explicitadas por Badiou. O primeiro rejeita qualquer hipótese de “mediação” entre o acontecimento Jesus Cristo e o próprio Deus de outrora. Para este, tal acontecimento aparece como completa supressão com os discursos anteriores, portanto, exclui-se toda e qualquer forma de continuidade. Permitir, pois, na ótica do apóstulo, que exista determinada“mediação” é o mesmo que reconhecer a “legalidade do pai”, ou, como preleciona Badiou, uma surda negação da radicalidade pertinente ao acontecimento. Trazendo para o direito, o que podemos considerar? Ora, na tentativa de erigir o “novo”, não nos parece concebível a introdução do “velho”. De outro modo, esbarraremos no que o Maffesoli chama de“novidades que já nascem velhas”. No entanto, é preciso atenção, para nós, enquanto militantes de uma “nova ideia de direito”, não é velho o que, embora com o seu “acontecimento” no passado, apresenta-se com vida, pulsante. Assim, é-nos novo a Nova Escola Jurídica, do excelente Roberto Lyra Filho, o qual deixou uma frase a ecoar, a saber: direito nunca ‘é’, definitivamente, e sim ‘vir a ser’, na prática evolutiva. Ao revés, é-nos retrógrada toda essa ladainha verborrágica que, ao tempo em que anuncia uma suposta postura crítica, um senso incomum, tem como porto o ludíbrio dos ingênuos e alimentação da própria fatuidade.

Só assim, libertando o direito das amarras que o prende em discursos já consagrados, possibilitaremos um grande encontro entre este e a linguagem das ruas (já iniciado pelo “direito achado na rua”). Sem brocardos jurídicos, enquanto representação do poder, faremos com que o direito alcance“meninos”, como os da obra de Graciliano Ramos [3], detentores de um léxico tão escasso quanto a comida que lhes alimenta.

Por último, uma nova visão do direito (repetição kafkiana da palavra) reclama, desespera por uma negação à dogmática senil na tenção de erigir uma nova construção sobre (no sentido de destruir) o que representa o“discurso da razão”. O jurista, enfim, haverá de ouvir o poeta Manoel de Barros: “Aprendo com abelhas do que com aeroplanos./ É um olhar para baixo que eu nasci tendo. / É um olhar para o ser menor, para o/ insignificante que eu me criei tendo./ O ser que na sociedade é chutado como uma/ barata – cresce de importância para o meu olho./ Ainda não entendi por que herdei esse olhar/ para baixo./ Sempre imagino que venha de ancestralidades/ machucadas./ Fui criado no mato e aprendi a gostar das/ coisinhas do chão -/ Antes que das coisas celestiais./ Pessoas pertencidas de abandono me comovem:/ tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”. [3]

Breno S. Amorim é estudante de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina.

Fonte: http://justificando.com/2015/08/17/por-um-direito-que-nao-veste-toga/