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Dom Paulo Evaristo Arns: mestre, intelectual refinado e amigo dos pobres.
Ao saber da morte de Dom Paulo Evaristo Arns fiquei profundamente entristecido, não pelo evento morte em si, que para todos nós chegará algum dia, pois se trata de condição imanente à espécie humana, mas, inegavelmente pelo grande de espírito humano que perde o Brasil, pelo imenso gesto de generosidade em que se transformara este humilde missionário católico na defesa intransigente dos seus semelhantes.
Dom Paulo Arns foi, sem dúvida alguma, um dos maiores brasileiros que tivemos a honra e o privilégio de sermos contemporâneos.
Quisera eu ser devoto de alguma fé religiosa para me tranquilizar a certeza inabalável de que este exemplo de transbordamento humano que fora o Cardeal Arns terá assegurado um bom lugar junto ao altíssimo como o próprio cria inabalavelmente a ponto de não perceber em quem quer que seja qualquer coloração ideológica que o fizesse paralisar diante da injustiça, da tortura e da maldade.
Como não pude expressar toda a minha admiração por este grande ser tomo emprestado as palavras de Leonardo Boff que diz:
Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, falecido hoje, dia 14 de dezembro. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho.
Conheci-o no final dos anos 50 do século passado em Agudos-SP quando ainda era seminarista. Voltou de Paris com fama de ser doutor pela Sorbone. No seminário com cerca de 300 estudantes introduziu metodologias pedagógicas novas. Fez-nos conhecer a literatura grega e latina, línguas que dominava como dominamos o verenáculo. Fez-nos ler as tragédias de Sófocles e de Eurípedes em grego. Sabíamos tanto grego que até representamos a Antígona em grego. E todos entendiam.
Depois vim a conhecê-lo em Petrópolis como professor dos Padres da Igreja e da história cristã dos dois primeiros séculos. Obrigava-nos a ler os clássicos em suas línguas originais, São Jerônimo, seu preferido, em latim e São João Crisóstomo, em grego.
Quando o visitei há dois anos no convento de religiosas na periferia de São Paulo o encontrei lendo sermões em grego de São João Crisóstomo.
Foi nosso Mestre de estudantes durante todo o tempo da teologia em Petrópolis de 1961-1965. Acompanha com zelo cada um em suas buscas, com um olhar profundo que parecia ir ao fundo da alma. Era alguém que sempre procurou a perfeição. Até entre nós estudantes disputávamos para ver quem encontrava algum defeito em sua vida e atividade. Cantava maravilhosamente o canto gregoriano no estilo de Solemnes, mais suave do que o duro de Beuron que predominava até a chegada dele.
Durante quatro anos o acompanhei na pastoral da periferia. Nas quintas-feiras à tarde, no sábado à tarde e no domingo todo, acompanhei-o na capela do bairro Itamarati em Petrópolis. Visitava casa por casa, especialmente as famílias portuguesas que cultivavam flores e horticutura. Onde chegava logo fundava uma escola. Estimulava os poetas e escritores locais. Depois da missa das 10.00 os reunia na sacristia para ouvir os poemas e os contos que haviam produzido durante a semana. Estimulava intelectualmente a todos a lerem, escreverem e a narrarem para os outros as histórias que liam.
Era um intelectual refinado, conhecedor profundo da literatura francesa. Escreveu 49 livros. Instigava-nos a seguir o exemplo de Paul Claudel que costumava cada dia a escrever pelo menos uma página. Eu segui seu conselho e hoje já passei dos cem livros.
O que sempre me impressionou nele foi seu amor e seu afeto franciscano pelos pobres. Feito bispo auxiliar de São Paulo ocupou-se logo com as periferias, fomentando as comunidades eclesiais de base e empenhando pessoalmente Paulo Freire. Como era tempo da ditadura, especialmente férrea em São Paulo, logo assumiu a causa dos refugiados vindo do horror das ditaduras da Argentina, do Uruguai e do Chile. Sua missão especial foi visitar as prisões, ver as chagas das torturas, denunciá-las com coragem e defender os direitos humanos violados barbaramente. Correu riscos de vida com ameaças e atentados. Mas como franciscano, sempre mantinha a serenidade como quem está na palma da mão de Deus e não nas garras dos policiais da repressão.
Talvez seu feito maior foi O Projeto Brasil: Nunca Mais desenvolvido por ele, pelo Rabino Henry Sobel e pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright com toda uma equipe de pesquisadores. Foram sistematizadas informações de mais de 1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar. O livro publicado pela Editora Vozes “Brasil Nunca Mais” teve papel fundamental na identificação e denúncia dos torturadores do regime militar e acelerou a queda da ditadura.
Eu pessoalmente sou-lhe profundamente grato por me ter acompanhado no processo doutrinário movido contra mim pelo ex-Santo Ofício em 1982 em Roma sob a presdência do então Card. Joseph Ratzinger. No diálogo que se seguiu ao meu interrogatório entre o Card. Ratzinger, o Card. Lorscheider, o Card. Arns com a minha participação, ele corajosamente deixou claro ao Card. Ratzinger:”esse documento que o Sr. publicou há uma semana sobre a Teologia da Libertação não corresponde aos fatos que nós bem conhecemos; essa teologia é boa para os fiéis e para as comunidades; o Sr. assumiu a versão dos inimigos desta teologia que são os militares latino-americanos e os grupos conservadores do episcopado, insatisfeitos com as mudanças na pastoral e nos modos de viver a fé que este tipo de teologia implica” E continuous: “cobro do Sr. um novo documento, este positivo, que valide esta forma de fazer teologia a partir do sofrimento dos pobres e em função de sua libertação”. E assim ocorreu, três anos após.
Tudo isso já passou. Fica a memória de um cardeal que sempre esteve do lado dos pobres e que jamais deixou que o grito do oprimido por seus direitos violados ficasse sem ser ouvido. Ele é uma referência perene do bom pastor que dá sua vida pelos pequenos e sofredores deste mundo.
Leonardo Boff é teólogo e foi aluno do Card. Dom Paulo Evaristo Arns.
O novo gesto de Francisco a favor da Teologia da Libertação
Sabia-se que o papa Francisco não era muito amigo dos teólogos e padres seguidores da Teologia da Libertação, tachados tantas vezes de comunistas, mas ele está dando passos inequívocos para reabilitá-los ou, pelo menos, livrá-los de passadas execrações ou excomunhões.
É fato que conviveu com muitos deles na Argentina, sua terra natal, quando era o prelado superior da ordem dos Jesuítas, e que viveu a experiência de sua própria congregação ser o grande viveiro dessa corrente teológica e pastoral em toda a América Latina. Alguns sacerdotes que estavam sob seu comando sofreram na época brutal perseguição da ditadura militar, com sequestros, torturas e até mortes.
A Rádio Vaticano deu a notícia, nesta segunda-feira, de um novo episódio de compreensão ou, pelo menos, de misericórdia em relação aos teólogos punidos. Trata-se do sacerdote e ex-ministro de Relações Exteriores da Nicarágua, Miguel d’Escoto, de 81 anos. Ele fora suspenso em 1984 ‘a divinis’ sem contemplação por João Paulo II, mas Francisco ordenou agora que a punição imposta seja removida, ou seja, ele poderá voltar a ter seu trabalho pastoral, principalmente a celebração da Eucaristia e a confissão de fiéis.
D’Escoto pertence à congregação missionária Maryknoll e escreveu no semestre passado uma carta ao Papa para expressar seu desejo de voltar a celebrar a Eucaristia “antes de morrer”. O pontífice argentino não demorou a lhe responder. Além der aceitar a revogação da “suspensão a divinis”, pediu ao principal prelado da congregação que inicie quanto antes o processo de reintegração do sacerdote nicaraguense, informa a agência EFE.
Miguel D’Escoto Brockmann nasceu em 5 de fevereiro de 1933 em Los Angeles (EUA). Ordenado sacerdote em Nova York em 1961, logo se transformou em um dos expoentes da Teologia da Libertação. Sua colaboração com a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) começou em 1975 por meio do Comitê de Solidariedade nos Estados Unidos. Depois do triunfo da revolução sandinista, foi chamado pela Junta de Reconstrução Nacional para ser ministro de Relações Exteriores do Governo de Daniel Ortega. Assumiu o cargo durante todo o primeiro mandato do polêmico grupo guerrilheiro. Depois do regresso ao poder do presidente Ortega em janeiro de 2007, foi nomeado assessor para assuntos de limites e de relações internacionais, função que já não ocupa mais.
Haverá mais reabilitações de teólogos da libertação ou de sacerdotes envolvidos em política contra os desejos (ou as ordens) do Vaticano? É bem provável. O passo desta segunda-feira é um precedente pouco comum em uma confissão religiosa nada amiga de retratar a si mesma, o que só faz se não há mais remédio, deixando antes transcorrerem até mesmo séculos. Com razão se costuma dizer que quando Roma fala sobre um assunto o caso está encerrado para sempre (‘Roma locuta est, causa finita est’).
Foram o papa polonês João Paulo II e sua “polícia” da fé, o cardeal Joseph Ratzinger, agora o papa emérito Bento XVI, que emitiram uma severa condenação da Teologia da Libertação, retirando milhares de padres do mundo todo de cargos docentes e do ministério sacerdotal, alguns também na Espanha.
Os casos mais estrondosos, no entanto, ocorreram na Nicarágua da revolução sandinista, sobretudo quando o Governo desse país, depois de derrubar a ditadura apoiada pelos Estados Unidos, entrou em guerra não declarada com a grande potência, com o presidente Ronald Reagan empenhado em desalojá-los do poder.
João Paulo II entrou firme naquele conflito, principalmente durante sua viagem a Manágua, a capital da Nicarágua, em 14 de março de 1983. Apesar de tachado de anticlerical e comunista, o Governo todo acorreu a aeroporto para receber o pontífice romano. Havia dois sacerdotes naquele Executivo: D’Escoto e Ernesto Cardenal, este como ministro da Cultura.
Outro padre, Fernando Cardenal, jesuíta e irmão de Ernesto, dirigia o programa sandinista de alfabetização. Depois de um discurso de boas-vindas, o presidente Ortega levou o Papa até os membros do Governo. João Paulo II quis saudá-los um a um. Quando chegou diante de Ernesto Cardenal, o monge trapense e ministro retirou sua famosa boina e se ajoelhou: “Regulariza a tua posição com a Igreja. Regulariza a tua posição com a Igreja”. A fotografia daquela repreensão correu o mundo.
Mas Ernesto Cardenal, que na época já era um poeta de fama universal, não fez caso daquele gesto de desaprovação papal. Nem a sua congregação tomou medidas contra ele. Pouco depois, seu irmão Fernando, o jesuíta, aceitou o cargo de ministro da Educação. Teve pior destino.
Imediatamente a Companhia de Jesus, muito pressionada por João Paulo II (até mesmo com ameaças nada veladas de suspendê-la, como já ocorrera no passado), comunicou-lhe que não poderia continuar na política como jesuíta. “É possível que eu me equivoque sendo jesuíta e ministro, mas deixem que eu me equivoque em favor dos pobres, porque a Igreja se equivocou durante muitos séculos em favor dos ricos”, respondeu a seus superiores.
Como diz o professor Juan José Tamayo, também seguidor da Teologia da Libertação, e também punido por Roma, “a presença de bispos, teólogos, sacerdotes e religiosos na vida política é uma constante na América Latina desde os inícios da Conquista até os dias de hoje. E nem sempre só do lado dos colonizadores, mas com frequência do lado dos setores marginalizados”. Casos emblemáticos de compromisso político liberador são os do bispo Bartolomé de Las Casas e o dominicano Antonio Montesinos.
Mas o compromisso político dos teólogos e sacerdotes se intensifica na década de sessenta do século passado, até mesmo com um cristianismo revolucionário que tem em Camilo Torres um mito quase tão arraigado como o de Che Guevara. Exemplos desse ativismo, que nem sempre acabou bem, há também na atualidade.
É o caso de Fernando Lugo (San Pedro del Paraná, 1951), que chegou à Presidência do Paraguai depois de seu triunfo eleitoral em abril de 2008. Era o candidato da Aliança Patriótica para a Mudança e conseguiu derrotar o Partido Colorado, que estava há mais de sessenta anos no poder. Assim se resumia seu programa de governo, tão logo eleito: “A partir de hoje, minha grande catedral será todo o meu país. Até agora estive em uma catedral ensinando, compartilhando, sofrendo, construindo”.
Tinha sido professor. E também foi missionário em uma das regiões mais pobres do Equador e, depois, estudante de sociologia em Roma.
O Vaticano o alçou finalmente a bispo da diocese de San Pedro. Quando renunciou ao episcopado, o Vaticano o suspendeu “a divinis”, apesar de inicialmente lhe ter dado permissão para retirar-se da vida religiosa e dedicar-se à política. A dispensa tinha sido concedida em junho de 2008 por Bento XVI. Ou seja, a Santa Sé lhe permitia retornar à condição laica, que lhe dava direito a receber os sacramentos como católico, mas com a perda de seu estado clerical.
Então se comunicou, além disso, que se Lugo, desalojado já da presidência depois de um polêmico processo, voltasse a pedir sua incorporação à Igreja católica como bispo, o caso seria “analisado pela Santa Sé”.
Outro caso de compromisso político, também muito polêmico, foi protagonizado pelo salesiano haitiano Jean Bertrand d’Aristide, também em sintonia com a Teologia da Libertação. Sacerdote em uma paróquia pobre de Porto Príncipe tinha participado ativamente na derrubada da ditadura de Duvalier e, em dezembro de 1990, foi eleito presidente do Haiti com 67% dos votos.
Entre suas prioridades estavam a erradicação da pobreza e a dignificação dos setores populares com os quais estava comprometido desde a época de sacerdote. Foi derrubado por um golpe militar e posteriormente reabilitado. Pouco a pouco mudou de estilo de vida e se distanciou das opções libertadoras do começo.