Tag Archives: Redução Sociológica
ALBERTO GUERREIRO RAMOS: A DESTINAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA MODERNIDADE PERIFÉRICA
A FIDEL CASTRO E A TRAN-DUC-THAO
“Os antagonismos essenciais da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na polaridade, estagnação e desenvolvimento, representados por classes sociais de interesses conflitantes, e ainda entre nação e antinação, isto é, um processo coletivo de personalização histórica contra um processo de alienação”
A redução fenomenológica encontra seu motivo na meditação do cogito. Descartes começa por colocar em questão todos os objetos que se apresentam aos sentidos e, para evitar uma regressão ao infinito, chega ao reconhecimento de que se pode duvidar de tudo, mas não de que se duvida. A dúvida metódica desemboca na afirmação de uma verdade inquestionável: o cogito enquanto substância que pensa. Pelo exercício da dúvida metódica, o cogito enquanto instância da certeza é fruto dessa suspensão da apreensão dos objetos exteriores.
Em Edmund Husserl, a redução, mesmo partindo do cogito, avança no sentido de compreender que o questionamento radical do mundo objetivo não significa a diluição da objetividade, mas a apreensão da correlação originária entre consciência e mundo. A atitude natural na medida em que se torna inquestionada e tornada hábito impede o descortinar da relação originária com o mundo. Por isso, a redução significa o questionamento constante da atitude natural na pretensão de buscar readquirir a situação originária da relação entre consciência e mundo. (1)
A própria atividade científica, ao esquecer que surge das demandas da vida operante, acaba por se alienar completamente. Não se trata apenas de que os princípios operatórios subjacentes à construção de um sistema não são conscientes ao próprio sistema, mas da relação da ciência e o mundo da vida. Em Husserl, o mundo da vida é limitado a uma esfera espiritual, esvaindo-se em materialidade. Já Alberto Guerreiro Ramos confere à redução fenomenológica um novo campo de imanência e o mundo da vida ganha materialidade. A redução sociológica consiste, pois, em depurar um objeto de estudo dos referenciais que o emolduram para permitir sua apreensão correta nas particularidades concretas.
No contexto marcado pela colonialidade do poder, o efeito de prestígio de imitar certos autores se torna maior do que a busca genuína da compreensão. A redução sociológica, ao se insurgir contra o mero decalque teórico acrítico, desoculta um objeto do sistema de referências produzido pelo contexto colonial, desembaraçando-o de todos os obstáculos epistemológicos, garantindo-se a percepção adequada dos fenômenos na inteireza de seu contexto.
Por isso, Guerreiro Ramos reivindicava a necessidade premente de se empreender um uso sociológico da sociologia, buscando superar a identificação simplista do trabalho teórico ao mero acúmulo de informação da literatura estrangeira em cuja literalidade estariam os dados concretos da realidade nacional. Os esquemas teóricos, hauridos na literalidade emergida de outros contextos, são impostos à realidade a ser observada, gerando efeitos deletérios na apreensão da realidade.
Alberto Guerreiro Ramos define a redução em três sentidos básicos: 1) a redução como método de assimilação crítica da sociologia estrangeira; 2) a redução como atitude parentética, isto é, como elevação à consciência dos fatores que determinam uma situação, permitindo uma intervenção consciente e producente a efeitos prefigurados racionalmente; 3) A redução como crítica do saber oficial vigente. (2)
Em síntese, a redução sociológica é uma atitude metodológica voltada ao desenvolvimento da capacidade de o sociológico de se desembaraçar dos pressupostos alienantes e desorientadores do colonialismo mental para poder estabelecer uma linha justa das questões centrais às formações sociais a que integra. Requer, sobretudo, uma compreensão da relação complexa entre a universalidade e a particularidade. Nem substancializar o universal de forma a negar a necessidade de apreensão da realidade em seus aspectos mais capilares. Nem hipostasiar o particular de forma a associá-lo à dispersão lógica do que é insuscetível de apreensão teórica. Trata-se de entender a universalidade concreta.
Louis Althusser já tinha assinalado que o fazer ciência já traz implícito um conjunto de princípios operatórios que, no mais das vezes, são inconscientes e que, por isso mesmo, determinam a percepção de um determinado fenômeno. Diante disso, afirma a necessidade de uma linha de demarcação que seja idônea a estabelecer a forma com que o saber científico seja funcional à formação social de que faz parte o sociólogo, permitindo uma autoconsciência social dos problemas para mais bem articular as soluções.
A redução sociológica, tendo em vista o contexto colonial, estabelece uma linha justa de demarcação, habilitando o sociológico, na medida em que for capaz de penetrar na dinâmica concreta das nações periféricas, a se tornar um momento de autoconsciência social e, pela elucidação que elabora junto às massas, um indutor do processo histórico de autodeterminação. O exercício da crítica do saber hegemônico revela-se essencial. A transplantação acrítica de teorias estrangeiras impede que as formações sociais periféricas entendam o seu próprio processo econômico-social. Vejamos um exemplo: Giovanni Arrighi, renomado economista, afirma em livro propalado: “A democracia parlamentar nunca se sentiu em casa na semiperiferia”.(3) Trata-se de enunciado ideológico que confunde causa e efeito, pois deixa de auscultar quais as razões pelas quais a democracia não se realiza nos países periféricos. Procurar as razões significaria deparar com o imperialismo e a necessidade de pensar a realidade. O enunciado seria correto se afirmasse que o centro capitalista sempre busca coarctar a emergência democrática nos países periféricos, por meio de golpes ou por meio de guerras híbridas.
A redução sociológica compreende que a batalha das ideias não é idealismo, mas está inserida na cruenta refrega política. Na modernidade periférica, as ideias tem pesada materialidade. Guerreiro Ramos o sabia e a redução sociológica foi um grito para que, na dispersão a que são forçadas as formas sociais periféricas, uma unidade pudesse ser produzida na força da ideia e da virtude sonhando que as massas emergissem em organizações de disciplina coletiva. A sociologia, nesse contexto, erige-se como instrumento de autodeterminação dos povos.
- O sentido da redução como resgate da vida prática não somente aproxima, mas leva muitas vezes ao marxismo. Trand-Duc-Thao, esse grande filósofo vietnamita, é exemplo dessa energia interna da fenomenologia a se encaminhar ao marxismo. Trata-se de um dos maiores filósofos da história cuja obra deve ser estudada e pensada.
- Obras do inesquecível mestre baiano: RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica. Rio de Janeiro: 1965; RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.
- ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petropólis, RJ: Vozes, 1997, p. 232. Na verdade, justamente quando as formações sociais que, na divisão internacional do trabalho são periféricas, se engajavam na luta por autodeterminação logrando desenvolvimento, surge a ideologia do não desenvolvimento. Um sociólogo até escreveu que se deve buscar alternativa ao desenvolvimento. Não há que tergiversar: as formações sociais devem, desde que numa integração do metabolismo ser humano e natureza, buscar o desenvolvimento econômico. Pretendo, em trabalhos futuros, demonstrar as repercussões da redução sociológica nos mais variados campos.
Por: Luís Eduardo Gomes Nascimento, advogado e professor da UNEB.