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UMA NOTA SOBRE A QUESTÃO DO MARCO TEMPORAL E A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS DOS POVOS ORIGINÁRIOS

Ao humanista DALMO DALLARI

A interpretação do direito, na modernidade periférica, corre o risco de ser sobrecodificada pela colonialidade do poder que, no plano da linguagem, envolve a possibilidade de colonização dos sentidos comunitários e objetivos dos textos pelas representações subjetivas e ideológicas dos intérpretes. No contexto em que a colonialidade do poder se apresenta subjacente às práticas interpretativas, pode acontecer a distorção da analítica normativa com o objetivo de revestir de aparente legalidade interpretações absurdas que constituem atentados graves à ordem jurídica, sempre articulados para promover os interesses das classes dominantes em detrimento do sentido textual, intertextual e histórico do direito vigente.

Quanto à analítica jurídica, o jusfilósofo Lourival Vilanova, de forma profícua, estabeleceu que toda normas tem quatro âmbitos de validade: 1) o pessoal; 2) o temporal; 3) o material e 4) o espacial.(1)

A semiologia jurídica demonstrou que é possível, por meio da apropriação privada da linguagem, alterar os âmbitos de validade da norma com o objetivo de atingir situações, fatos e pessoas que estavam fora do alcance do espectro normativo ou limitar ou suprimir indevidamente um direito consagrado mediante a inserção de notas ou características que, não integrando a norma, são embutidas por meio de falácias criando-se a impressão epidérmica de que aqueles elementos imantam as normas quando são impostos pelo intérprete, afetando-se a consistência interna do direito para produzir efeitos externos prejudiciais a determinados grupos.

No caso das normas que reconhecem os direitos dos povos originários, as normas da constituição vigente – inscritas no art. 231- se referem sempre às terras tradicionalmente ocupadas e aqui o advérbio tradicionalmente, pelo seu teor literal, indica, clara e evidentemente, as terras que originariamente já são ocupadas pelos povos originários.  O âmbito de validade temporal das normas do art. 231 remonta ao que originariamente pertence aos povos originários, inexistindo, no texto normativo, qualquer modulação temporal limitada ao marco específico da data da promulgação da constituição de 1988 ou outro marco ligado àquela data.

A validade temporal das normas consagradoras dos direitos territoriais dos povos originários não tem qualquer relação com o marco temporal a partir da promulgação da constituição – 5 de outubro de 1988- ou com qualquer outro critério vinculado àquela data. Inserir um marco ad hoc atropela o texto constitucional, altera o âmbito de validade temporal das normas referidas e vulnera a força normativa da constituição.

A questão é ainda mais grave quando é público e notório que a questão dos registros de propriedade no país sofre de absoluta falta de transparência e é questão pendente e padecente de atuação escorreita pelo Estado. A economia do projeto de lei 490/2007 mal disfarça que, valendo-se dessa indeterminação, a falaciosa noção de marco temporal objetiva expropriar as terras dos povos originários. O projeto de lei não passa pelo cotejo constitucional e constitui afronta aos três níveis básicos da interpretação jurídica, quais sejam: o textual, o estrutural e o histórico.

A metodologia jurídica permite identificar as interpretações que se inserem no arco hermenêutico -as possibilidades interpretativas legítimas- e as que, mediante a colonização dos sentidos, inserem notas ou aspectos alheios à tessitura textual da norma, criando-se novos textos, confundindo-se a atividade interpretativa- do judiciário- com a criação jurídica-legislativo.

Conforme salientava Pontes de Miranda, a topologia das normas – o lugar em que estão inseridas- pode servir de norte para a interpretação. Nos Atos das Disposições Transitórias Constitucionais consta regra sobre a demarcação das terras indígenas, a saber: “Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.

A questão da demarcação, portanto, se insere no direito constitucional transitório que visa a estabelecer uma continuidade segura entre o passado anterior à constituição e o futuro de tal forma que o indigitado marco temporal vinculado à promulgação da CF de 88 vulnera, além do art. 231, o direito transitório e se revela como um sofisma destinado não só a restringir mas também a suprimir os direitos povos originários por meio da desfiguração do direito vigente.

Causa pasmo que, após quase 33 anos, a norma do art. 67 voga no limbo jurídico das normas desprovidas de eficácia jurídica. Mas sempre é tempo de colher a constituição pela palavra e fazer valer sua força normativa. (2)

  • A importância da Arquitetônica Jurídica Analógica decorre da necessidade de articular as categorias epistemológicas que ensejam a aplicação segura do direito. Sobre os três níveis da interpretação jurídica ver o capítulo I, sobre a colonialidade do poder como obstáculo hermenêutico à eficácia das normas constitucionais ver o capítulo 2 e 8, ambos do livro “As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.
  • O caráter performativo da constituição não se confunde com gesto vazio, mas serve para enfatizar a necessidade de engajamento social no uso público da razão e do intérprete na comunidade de comunicação instaurada pela constituição, realizando de forma objetiva os sentidos comunitários nela talhados. É o que o filósofo espanhol André Ortiz chama de hermenêutica da implicação em que a subjetividade do intérprete, em vez de se fechar, abre-se à historicidade objetiva do texto.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.