Tag Archives: Política

SOBRE PRESCRIÇÃO PENAL E PUNIBILIDADE

“O direito se define pelas regras da semiótica’’, Santiago Nino

Nas discussões dogmáticas sobre as categorias jurídicas centrais da teoria do delito, verifica-se que a discussão sobre a punibilidade foi olvidada e obumbrada por uma chusma de categorias que, envolta em mistérios feitos para diletantes de si mesmos, desarticulam o campo da dogmática penal para tornar confusa a interpretação e aplicação do direito penal.

Eros Grau afirma, erroneamente, que a intepretação e a aplicação do direito são a mesma coisa. Interpretar é retirar sentidos de um texto. Aplicar é interpretar diante de um conjunto fático que necessita ser formalizado e qualificado juridicamente. São momentos diferentes de uma mesma arte.

Afirma Kelsen:

“o direito a aplicar é uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”[1]

Ocorre que a qualificação jurídica depende do esquema normativo necessário e elementar à construção da jurisprudência ou do precedente.

A dogmática penal costuma definir o crime como fato típico, antijurídico e culpável. Desde Kelsen, na medida em que o ilícito é criação jurídica, resulta absurdo chamar um fato- que contraria ao conjunto de normas- de antijurídico. Nesse contexto, há decretar o fim da expressão antijurídico no direito penal.

A invocação da expressão injusto penal mais confunde do que esclarece. Analisando o conjunto, parte da dogmática penal afirma que o crime é fato típico, ilícito e culpável.

Eugenio Raul Zaffaroni e Pierangeli defendem o conceito de tipicidade conglobante. Assertoam:

“Isto nos indica que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa.” [2]

Norberto Bobbio, ao criticar a teoria inerente ao tema da completude do ordenamento referente à teoria do espaço vazio, afirma que:  ” Parece que a teoria do espaço jurídico vazio nasce da falsa identificação do jurídico com o obrigatório’’[3]

Pensamos que a teoria conglobante fica prisioneira do modal proibido. O direito é um conjunto de proibições, obrigações, permissões e atribuições de competências.

O que se desvela essencial para o descortinar do horizonte necessário à visada adequada da questão é ver que a ordem jurídica, em seus mais variados níveis, não pode ser insulada na ideia de tipicidade conglobante. Primeiro: o direito se realiza de forma típica. Segundo, afirmar que uma forma de realização inerente a um fenômeno se expande a outros níveis é redundante; terceiro, aferir os níveis adjudicados pela dogmática penal ao fato criminoso como conglobante nada tem que ver com tipicidade; quarto, os níveis estabelecidos estão erroneamente estabelecidos; quinto: estando erroneamente estabelecidos, é preciso suprimir os errôneos e encartar o que podemos chamar, com base em Guerreiro Ramos, teoria protonormativa do delito.

Por enquanto, podemos ressaltar que é necessário incluir, na linha de Basileu Garcia, a punibilidade. O direito penal, ao final, é a supressão de uma faculdade natural, isto é, a liberdade de ir e vir, e deve ser cientificamente válido para coarctar o que, segundo a natureza das coisas, é atributo ineliminável do ser humano.

Incide sobre a questão examinada os institutos da prescrição e da decadência da pretensão punitiva, estatal ou não. O conceito de prescrição penal envolve a inércia do titular da pretensão punitiva e o transcurso do tempo, perecendo a pretensão.

Para Clóvis Bevilácqua a “prescrição é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não-uso delas, durante um determinado espaço de tempo.”

A prescrição da pretensão punitiva está inserida no aspecto temporal que emoldura a norma jurídica penal. Na medida em que o aspecto temporal é quantitativo, há que verificar as homologias do domínio jurídico da punibilidade.

 Sem adentrar nos méritos das peculiaridades da situação específica, realizando, de acordo com Lourival Vilanova, a formalização lógica, citemos excerto da sentença, que configura verdadeira jurisprudência, prolatada pela Ilustre magistrada Rafaele Curvelo Guedes dos Anjos, integrante dos quadros efetivos do Tribunal de Justiça da Bahia, a saber:

“Compulsando-se os autos, verifica-se que a pretensão punitiva do Estado está prescrita em relação aos delitos dos crimes contra a fauna (art. 29 da Lei 9.605/98), que tem pena abstrata de 06 meses a 01 ano, prescrevendo em 04 anos, e do crime de posse de droga para consumo (art. 28 da Lei 11.343/06), tendo em vista que a imposição e a execução das penas impostas aos usuários e dependentes de drogas, prescrevem em 02 (dois) anos, conforme art. 30 da Lei 11.343/06.

Em relação ao delito de posse de arma de fogo (art. 12 da Lei 10.826/03), a pretensão punitiva do Estado está antecipadamente prescrita, vez que esse crime tem pena abstrata de 01 a 03 anos, prescrevendo em 08 anos. Todavia, dada às circunstâncias do caso e a primariedade técnica das partes rés, em caso de aplicação de pena, esta não seria superior a 02 (dois) anos. Para essa pena in concreto, a prescrição ocorreria em 04 (quatro) anos, na forma do art. 109, do CP.

Logo, considerando que entre a data do recebimento da denúncia e hoje passaram-se quase 06 anos e não houve outra causa interruptiva, verifica-se lamentavelmente a ocorrência da prescrição antecipada.

Não obstante à ausência de previsão legal e existência de argumentos contrários à aplicação do instituto, vê-se que a aplicabilidade da prescrição em perspectiva apoia-se no princípio da economia processual, da instrumentalidade das formas e da celeridade da justiça.”

A intepretação que se apresenta, ao romper os lugares comuns, revela que o tema da prescrição é intrínseco ao atributo da punibilidade, e, na lógica formal que transcorre a decisão, na medida em que diferencia corretamente os institutos incidentes, tem efeitos políticos libertários e mostra que a linguagem, ao transformar o real, pode transformar os espaços e ampliar a ampliar a liberdade[4]. Enfim, é uma jurisprudência que, na exegese adequada, na articulação correta da ponderação no sentido de Recaséns Siches, revela que o tempo da prescrição está encartado no predicado punibilidade enquanto característica central da conduta ilícita, e a liberdade de muitos já tarda.

Hoje, é uma questão de uso público da razão e, lembrando Pontes de Miranda, o homem é o que, porque sabe mais do que os outros animais, corrigir-se.[5]


[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 9. ed. rev. e atual. São Paulo (SP): Revista dos Tribunais, 2011.

[3] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, página 272.

[4] Sobre a importância da interpretação nas lutas pelos sentidos e pela liberdade., ver a obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, Ebook.

[5] MIRANDA, Pontes de. Tratado da Ação Rescisória: das sentenças e de outras decisões. Campinas: 1998.

A FARSA DO PLANO REAL

A Ruy Barbosa Oliveira, cuja vocação pública faz enorme falta

Os subscritores do plano real escreveram que: 1) a vinculação dos preços de mercadorias e serviços ao dólar teria efeito deflacionário; se não fosse trágico pelos efeitos deletérios que provoca nos interesses nacionais, seria risível a assertiva; 2) a diminuição e a desburocratização de impostos geraria concorrência entre as mercadorias e serviços importados em cotejo com os nacionais, tendo como fundo compartido o dólar, e, portanto, a diminuição dos preços de mercadorias e de serviços. Na verdade, desata a destruição da economia nacional e prejuízos incalculáveis aos setores exportadores e às trocas comerciais, ante a realidade cambiante da dinâmica internacional.

Na verdade, o plano real é uma farsa; uma forma ardil e artificiosa de, por meio de linha de menor resistência, combater a inflação à custa da economia popular e do achatamento, sutil e indisfarçável, do poder aquisitivo.  É uma farsa para submeter o Brasil aos efeitos dominadores do dólar. O real não é existe. A moeda nacional, se seguirmos rigorosamente o marxismo ortodoxo, é o dólar.

Todos os governos que se alinharam ao plano real- o pior plano econômico da história do Brasil- são antinacionalistas e antipopulares. Na verdade, não temos burguesia nacional. Para citar Gunder Frank, na modernidade periférica, temos uma lumpemburguesia que, de forma explícita, sem qualquer pudor, subordina a economia aos interesses imperialistas dos bancos internacionais sob o domínio dos EUA.

O tal do plano real indexou a economia nacional de forma que, qualquer flutuação fronteiriça, provoca o aumento dos preços dos produtos de consumo básico, a desaceleração da atividade produtiva e prejuízos inestimáveis ao setor exportador, afetando, sobremaneira, a balança comercial, tornando a discussão sobre superávit sibilinas afirmações desprovidas de critério científico. Industrialização, economia nacional-popular e plano real são antíteses, insolúveis. Não deixa de ser irônico que o sintoma venha a público apresentar-se como solução. O plano real- que alguns se jactam de ter criado- é um plano inflacionário cujo efeito principal é a devastação da economia nacional e das relações comerciais da nação na medida em que se arrima num cenário mundial monolítico.

Na aurora da República, Rui Barbosa- jurista genial, mas de retórica empolada, criou o encilhamento, um plano econômico profundo de cunho nacional que foi boicotado pelo Império Britânico. Ah, eram tempos em que, mesmo na premência do mais cruel colonialismo, havia inteligências. O Brasil sempre está por nascer.

O plano real, na encruzilhada em que estamos metidos, cria, imediatamente, duas disjunções: a) a existente entre os setores exportadores e a aristocracia financeira, e b) a existente entre a submissão ao dólar e a necessidade imperiosa de trocas mercantis mais equilibradas de maneira que, nas oscilações do capitalismo mundial integrado, estamos a atingir a borda da falência.

A incompetência das classes dominantes, representadas por todo o espectro político, no Brasil, não cabe mais no orçamento. Uma nação cuja  institucionalidade não é porosa à contradição e à crítica emperra de forma irremediável.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado, Professor da UNEB.

MAOÍSMO, HEGEMONIA E EMANCIPAÇÃO SOCIAL

A Bartolomé de Las Casas

Mao Tsé-Tung foi pensador genial em cujo pensamento a noção de estratégia é inerente aos próprios conceitos. Oferecia pensamentos argutos e diretivas políticas adensadas em fórmulas geniais. Um mestre insubstituível da cartografia política. ”Resolver as contradições no bojo do povo e resolver a contradições no bojo do partido” é uma diretiva que oferece uma cartografia conceitual para nos libertar da desorientação política e apresenta o mapa necessário de toda construção transformadora. No âmbito do povo, resolver as contradições significa unificar as classes dominadas na produção de uma efervescência democrática capaz de frear intentos despóticos e num bloco de poder coeso, capaz de autocrítica enquanto mediação mobilizadora e, no âmbito do partido, evitar a danosa infiltragem e a cooptação para o imperialismo, evitando-se o fetichismo político de forma que o partido se torna o instrumento de mediação do interesse geral do povo. Um povo unido constrói partidos capazes de traduzir em termos de decisões político-econômicas seus interesses universais.

A diretiva genial, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci.

Um dos problemas da luta social é a distorção dos conceitos e a incompreensão da forma com que se realiza a luta de classe. Na América Latina, a conjuntura é sempre mais complexa do que na Europa. Os governos de oposição consentida já tem o apoio secular da aristocracia financeira, dos grandes proprietários de terra e da pequena burguesia, especialmente a acadêmica que, sob o verniz de progressismo, é extremamente conservadora porque não abdica de seus privilégios obtidos pela lógica do prestígio e, muitas vezes, pela aparência progressista, se infiltram nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais para conter sua força expansiva. Nada mais reacionário do que o progressismo da pequena burguesia falante em suas ‘rebeldias’ performáticas vazias. Essas três classes tem aliança perpétua. Se, porventura, o país tem partidos de contradição antagônica e movimentos sociais coesos, os governos de oposição consentida, além da infiltração, buscam cooptá-los mediante benesses administrativas e privilégios camuflados, corrupção, ou, se não conseguir isso, mediante a estigmatização e a persecução penal da superpopulação relativa.

Um dos sintomas mais claro de que um governo não é de esquerda se dá quando sobrecodifica a questão econômico-social pela persecução penal dos pobres. E, nesse caso, rótulos só servem para escamotear uma estrutura profunda de repressão fascista.

O primeiro sinal do fascismo é a militarização das escolas e do cotidiano. Cria-se, sob o discurso da ordem, um panóptico sutil sobre os talentos. Nenhum fascismo se faz sem o jogo e o jugo do olhar censor sobre os talentos. Observa-se que os grandes escritores do nosso continente perceberam o panóptico colonial. Em vários contos de Córtazar se vê a forma sutil com que o fascismo, desde forma esmaecida, mas concreta, ganha figura, e, avultando-se tenebroso, desaba sobre os países. Estamos num período em que o fascismo se torna rizomático e, não dizendo seu nome, ancora-se mais sutilmente nas escolas e nas ruas, nas sondagens, na chantagem publicitária e na repressão absoluta da morte. O fascismo é o mecanismo político pelo qual se interdita o questionamento político das formações num processo contínuo e crescente de despolitização que, indo às últimas consequências, não tergiversa em instaurar a repressão pela morte. Pela sondagem militar e ilegal das pessoas, busca-se interditar àqueles que possam questionar a interdição; não sendo possível o silenciamento, instaura-se a morte enquanto mensagem cotidiana de poder obsceno: corpos empilhados nas ruas enquanto signo da ameaça.

Não obstante, seguindo Nietzsche, o fascismo nunca é ativo, mas é sempre reativo às insurgências democrático-comunitárias. Se há fascismo, é porque alguma comunidade pode se estabelecer.[1]

Em Ler em Louis Althusser, escrevo:

“A questão ‘’o que é se orientar na política?’’ emerge crucial e, ao entender que existe uma linha de demarcação justa, uma linha justa de definição, podemos evitar o diversionismo tão ao sabor do capital financeiro e devolver às formações sociais a orientação pela qual os problemas que lhe são congênitos sejam abordados e, por corolário, enfrentados corretamente.”[2]

Devolver às formações sociais a orientação pela qual possam enfrentar os problemas centrais é superar o progressismo. Os governos progressistas, sem exceção, giraram em torno de temas subalternos objetivando preservar a dependência econômica e, por mais paradoxal que seja, o desenvolvimento do subdesenvolvimento. É mais fácil iludir com bônus e bolsas famílias do que reprimir com canhões. Acontece que, quando o capital entra numa de suas crises cíclicas, aposta mais na repressão do que nas ilusões das demandas no sentido de Laclau. Ao mesmo tempo, quando começa um caldeamento teórico-prática de base popular em formações sociais de política fetichizada, a aposta é na oposição consentida. A jogada do império é criar uma espécie de duplo vínculo patológico que torna as formações sociais neuróticas no sentido da psicanálise, isto é, perdidas nas falsas antinomias de superfícies que, mantendo a aparência democrática, deixa intocáveis as bases econômicas da dependência, e mantém o jogo político como monopólio das classes dominantes. Entre os corifeus da repressão ostensiva e os fanfarrões dos bônus familiares, há uma grande cumplicidade, um solo comum: a aceitação acrítica da dependência econômica. Os progressistas integram, sem exceção, as classes dominantes. E todos sabem quem são os progressistas.          

A vitória da esquerda, portanto, depende da construção do que Gramsci chama Hegemonia, a qual deve ser capaz de escapar, numa linha de fuga para citar Deleuze, do duplo vínculo patológico. Umas das razões da melancolia política na Europa e em certos países da América Latina é a incapacidade da oposição consentida em mobilizar os setores populares que, por serem dotados de percepção arguta dos problemas concretos, não se sentem mais mobilizados para a seara política. Há uma melancolia política ancorada num extremo realismo político. Por isso, apenas partidos de contradição antagônica tem a capacidade de fazer os setores populares sentirem entusiasmo pela política novamente.

 Hegemonia, pois, consiste na capacidade de uma classe lograr apoio crescente das classes que estão na mesma situação de classe para produzir a mesma posição de classe, formando um bloco de poder que, pela força que ostenta, impede que qualquer representação se autonomize do projeto popular que a sustenta. Noutras palavras, a hegemonia é a força social que não se aliena mediante a representação de tal sorte que a representação não consegue se apartar da principiologia social que lhe deu origem. Conforme diz Marx:

“A emancipação humana não é realizada senão quando o ser humano reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais e não separe dele essa força social sob a forma de força política”[3]

Um partido é hegemônico quando a sua força política não reúne condições de se isolar e se autonomizar, de forma autorreferente, da força social que lhe deu substância. Se lograr a força social, pela intersecção da classe obreira, intelectuais orgânicos, movimento indígena, movimento campesino, movimento feminista anti-imperialista, o partido torna-se hegemônico, e a vitória é a inquebrantável. Não há como a esfera política se alienar da força social sem que sucumba nas suas pretensões ilegítimas. Nem o partido se insula na pobre autorreferência de interesses privados.

Portanto, a construção de um bloco de poder coeso e unido depende da resolução das contradições no âmbito do povo e das contradições no âmbito do partido.

A diretiva genial de Mao Tsé-Tung, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci e permite resgatar a viva paixão pela igualdade e pela política.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Para a Sigmund Freud, a neurose se caracteriza pela incapacidade de aprender. O duplo vínculo patológico fecha o horizonte de emancipação de maneira que as formações sociais ficam perdidas em círculos viciosos políticos em que há o simulacro de alternância no poder sendo que o processo político continua monopólio das classes dominantes. Neutraliza-se o antagonismo irreconciliável pelo jogo das meras diferenças. Nesse aspecto, a recepção decolonial da psicanálise é fundamental para compreensão da colonialidade do poder e das manifestações do fascismo. Da mesma forma que o superego cria estruturas reativas, não há colonialidade do poder sem a perpetuação de formas reativas de ser-em-grupo, instaurando diagramas de repressão e de vigilância. O livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, serve de preâmbulo para essas novas escavações teóricas. Pode colaborar, também, para o desvelamento das situações em que o oprimido hospeda o opressor. Fanon usa a noção de mais-valia psíquica ao ir no rastro desse grave problema para os movimentos sociais. Enfim, é possível uma reinvenção decolonial da psicanálise.

[2] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Pensar desde as margens da modernidade: a emergência de novas heterotopias. Ebook. 2ª Ed. Juazeiro: Oxente, 2022, p. 14.

[3] MARX, Karl. Ouvres Philosophiques, Tomo V, Paris: Alfred Costes, 1948, p.202.

DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ANALÓGICA SOBRE O MARCO TEMPORAL

“A linguagem é o dom mais perigoso dado ao ser humano para que ele herde aquilo que ele é”
Holderlin

  1. À GUISA DE INTRODUÇÃO

Um sistema se compõe de elementos e da relação entre esses elementos. A relação entretecida entre os elementos compõe a estrutura. As leis de composição, não se confundindo com elementos tomados isoladamente, moldam e plasmam a estrutura. Ainda que nenhum elemento tenha existência fora da relação, é possível, mediante a variação imaginativa, destacar de uma estrutura os elementos que a compõe para, após, remarcar melhor as relações na totalidade. Todo método engaja sempre análise e síntese[1].

O ordenamento jurídico, como sistema aberto, não é uma realidade pré-existente, completa e já dada em suas configurações de sentido. O ordenamento é um campo de possibilidades interpretativas que demanda a leitura para sua consumação e, para isso, conforme ensina Lourival Vilanova, a necessária formalização lógica diante da realidade sempre inusitada em aspectos ainda não formalizáveis.[2]

A formalização, no caso jurídico, depende da maneira com que o texto é relacionado com à estrutura a que pertence e dos signos históricos que o sistema pode internalizar sem desfigurar a sua compleição interna.  As configurações e as desfigurações da interpretação se inserem, ainda que não haja consciência, pelo modo com que se formalizam os dados da experiência jurídica.

Em outro lugar, salientamos que as ciências sociais, na medida em que estudam um objeto já prenhe de sentido, enfrentam uma aporia inevitável decorrente da dupla função hermenêutica que se lhe subjaz: voltar-se ao estudo do significado já dado socialmente ou submeter a significação social ao modelo dos fenômenos físicos.

No caso da ciência jurídica, é fundamental compreender que, ao interpretar a lei, emite-se, concomitantemente, um juízo sobre a lei. Ou seja, a maneira com que se forma uma tradição jurídica centrada num conjunto de hábitos e formas de ser e de pensar condiciona a intelecção e a formalização dos dados empíricos do sistema jurídico.

O ordenamento jurídico, mais do que uma ordem dada, é uma tarefa delicada de produção de sentidos que exige um esforço hermenêutico significativo que, à míngua de método, pode levar à corrosão dos sentidos estabelecidos coletivamente e o esgarçamento da tipicidade pela qual o direito realiza[3][4]. A dispersão da linguagem, no plano jurídico-político, gera golpes de estados, opressões internas e externas, perseguições racistas e sexistas. Conforme salientava Octavio Paz, na América Latina, lutar pelo sentido comunitário das palavras é o princípio de grandes transformações.

 A construção de métodos jurídicos sólidos é a condição axial da realização escorreita e objetiva da ordem jurídica. O saber crítico cumpre função central para evitar que a prática jurídica se converta no que Sartre, ao analisar a lógica dos grupos, denominava prático-inerte, isto é, uma prática serializada na repetição e cujos princípios, não sendo elevados à consciência, dominam os agentes que se tornam reprodutores dos ‘valores’ prevalecentes de forma acrítica. 

Nesse sentido, as discussões sobre a dicotomia entre teoria da argumentação, centrada na estrutura lógica dos raciocínios, e a teoria hermenêutica, ligada ao  horizonte prévio e compartilhado de pré-juízos, tornam-se ociosas. Enunciar que a prática jurídica acontece no horizonte argumentativo, isto é, de proposições com pretensão de legitimidade não quer dizer a negação de que existe um fundo compartido de expectativas, valores e ações constitutivas no plano da prática social que figura como pano de fundo para a argumentação. A questão é analisar como se dá o trânsito do saber já vivido na práxis e de como a formalização obedece aos critérios científicos. Por isso, é preciso pensar a hermenêutica mais em termos de obstáculos hermenêuticos do que em termos de pré-juízos. O epistemológico Gaston Bachelard enfatizou que o papel da ciência é a representação geométrica e objetiva da experiência.   

  • Nível Textual

Se entendermos que a inteligibilidade de qualquer sistema não é limitada ao aspecto interno, mas depende das conexões com a totalidade aberta, o sentido literal só se desvela quando articulado à estrutura na qual se move e na qual encontra ancoragem e horizonte de significação e às influências históricas que sofre. Mas a análise é importante para a representação científica desde que, após sua manifestação, empreenda-se a articulação sintética do todo estruturante complexo. [5]

Todo signo, conforme alertava Saussure, na medida em que se define pelas relações de vizinhanças com os outros signos, ostenta um campo associativo que funciona como uma moldura analógica formada por termos estreitamente ligados, impedindo uma deriva aleatória dos significados. Afirma Saussure: “uma palavra pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de uma maneira ou de uma outra” [6]

O campo associativo é um campo analógico no qual sentidos aproximados se relacionam sem implicar em corrosão do significado. Mesmo o sentido metafórico não se contrapõe ao sentido literal. Ao contrário, serve para realçá-lo e flagrar a relação analógica entre os termos. 

Conforme registra, de forma fecunda, Gadamer:

“(…) se alguém realiza a transposição de uma expressão de algo a outra coisa, está considerando, sem dúvida, algo comum, mas isso não necessita ser, em nenhum caso, uma generalidade da espécie. Pelo contrário, em tal caso nos guiamos pela sua experiência em expansão, que leva a perceber semelhanças tanto na manifestação das coisas como no significado que elas possam ter nós. Nisso consiste precisamente a genialidade da consciência linguística, em poder dar expressão a essas semelhanças. Nós chamamos a isso seu metaforismo fundamental, e importa reconhecer que não é senão preconceito uma teoria lógica alheia à linguagem o que nos induziu a considerar o uso transpositivo ou figurado como um uso inautêntico”[7]

Por exemplo, a palavra mãe sugere a ideia de origem, causa, ascendência. A moldura analógica, portanto, se limita com o campo associativo que cada palavra deflagra.  Toda linguagem é feita e repassada de metáforas fossilizadas, já dizia Jorge Luis Borges. A metáfora é a substância mesma da linguagem.[8]

Feitas essas consideração introdutórias, vejamos os textos – constitucionais e infralegais- que versam sobre o direito dos povos originários.

Reza a Constituição:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

No nível estrutural, vamos empreender a análise da relação entre propriedade e posse, mas, no que concerne ao nível textual, concentrando-se no verbo enquanto núcleo, a constituição estabelece um campo analógico entre o verbo  habitar ao qual, analogicamente, se vincula o adjetivo ocupadas e habitadas bem como o advérbio tradicionalmente. [9] Dos dispositivos se infere o analogado principal: terras já ocupadas tradicionalmente[10]. Nesse sentido, a ideia de que o direito à posse permanente se vincula à data da promulgação da constituição ou outra marco vinculado à promulgação não tem correlação com o analogado principal, extrapolando a moldura analógica. [11]Trata-se de um caso gritante de apropriação privada da linguagem.

A lei de nº 6001/73 – Estatuto do Índio- também, no art. 22, consigna a expressão posse permanente das terras que habitam e não estabelece nenhuma condição temporal.

Dessa forma, a tese do marco temporal agrava o sentido literal, transbordando da moldura analógica, estabelecendo uma condição ad hoc para um direito que, de acordo com a constituição e a legislação infraconstitucional, não tem condição temporal para seu reconhecimento.

  • Nível Estrutural

No nível estrutural, deve-se identificar o eixo temático a que está adstrita a questão. No caso sob exame, envolve a análise da conexão dos direitos reais de propriedade, posse e usufruto.

São internas ao direito de propriedade as seguintes faculdades: a) de usar, consistente na possibilidade de servir-se da coisa b) a de gozar, consiste na percepção dos frutos e produtos da coisa, e c) a de dispor, consistente na possibilidade alienar- transferir para outrem- a coisa e d) a de reivindicar, consiste na possibilidade de reaver a coisa de quem quer que seja.

Os direitos reais, na perspectiva burguesa, são analisados sempre de maneira recortada e estanque, especialmente a relação entre os institutos centrais da propriedade e da posse. Marx e Engels perceberam o mecanismo subterrâneo que orienta a visão hegemônica da propriedade e da subalternização da posse:

“Essa ilusão jurídica, que reduz o direito a uma vontade única, conduz fatalmente, no contexto do desenvolvimento das relações de propriedade, ao fato de que se pode ter um título jurídico de uma coisa sem ter qualquer relação real com ela” [12]

É possível, portanto, ter uma propriedade, mediante um título, sem qualquer relação real com a coisa. As mais variadas versões da categoria jurídica de direito subjetivo pressupõe essa abstração. Leon Duguit, ao defender uma concepção de direito fundada na solidariedade, criticava a noção burguesa- individualista de direito subjetivo, afirmando que o fato de se atribuir a alguém um direito já é uma decorrência do social. Todo direito é social.  Afirma:

“O homem natural, isolado, que nasce livre e independente dos outros homens, e com direitos constituídos por essa mesma liberdade e essa mesma independência, é uma abstração alheia à realidade.”[13]

A teoria do abuso do direito – que proíbe o uso egoísta de um direito- e a ressignificação da propriedade como função social já antecipavam este amanhecer. Assevera Leon Duguitt:

“Estas leis mostram que a partir do momento em que o proprietário terreno deixar de preencher sua função social, a coletividade é convocada naturalmente a intervir para assegurar uma exploração indispensável à vida social[14] (apud Gaston Morin, Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1945, p. 93/94, tradução livre).

A constitucionalização contemporânea do direito civil implica o transmontar dos limites do individualismo liberal, tornando-o [o direito civil] poroso a outros valores, sobretudo o da solidariedade. Tal tendência alcança o instituto da propriedade que passa por uma transformação paradigmática que cabe ao jurista captar.

Ao assinalar a função social da propriedade, a constituição de 1988 inaugura um novo ciclo reconhecendo a função social da propriedade no rol dos direitos fundamentais (art. 5, inc. XXIII) e como princípio da ordem econômica (art. 170, inc. III).

Como assertoa Washington de Barros Monteiro:

 “Uma nova conceituação [da propriedade] conferiu-lhe os atributo da função social. A propriedade de hoje– a serviço dessa função- tem de ser geradora de novas riquezas, de mais trabalho e emprego, tornando-se apta a concorrer para o bem geral do povo.” (In Curso de direito civil, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 5).

No suplantar a perspectiva atomista em que o indivíduo é uma mônada isolada da comunidade, a relação entre propriedade e posse se torna mais estreita e mais complementar. Na medida em que a posse significa relação direta com a terra, a posse-trabalho emerge como nova perspectiva que, uma vez encartada dos atributos da boa-fé, consubstancia o direito de propriedade como direito que deve ser, pelos imperativos axiológicos da constituição, um direito de caráter coletivo. A posse-trabalho é a fonte de legitimação do direito de propriedade. Mesmo quando exercido de forma individual tem que se harmonizar com os ditames da axiologia comunitária.[15]

A posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, além de consoar com esse novo horizonte jurídico de cunho coletivo talhado de forma objetiva na Constituição de 1988, projeta uma perspectiva comunitária em que a relação com a terra é condição de manutenção da vida existencial e cultural dos povos originários, configurando uma manifestação do direito à vida já que a sobrevivência, não só biológica, mas também cultural está atrelada à posse-comunidade da terra. Por isso, tal direito de posse se distancia da visão atomística forjada pela visão burguesa e ostenta um sentido comunal, imantado de um sentido ético e ecológico ao densificar a tutela do direito à vida e também ao meio ambiente sustentável.

Ao regrar a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, a constituição ressalta justamente o caráter comunitário, desvelando uma nova nuance de posse que só é compreendida se suplantada a visão atomística liberal e que a doutrina civilista precisa desvelar de forma a evitar ruídos sobre tão lancinante questão. À luz da fase estruturante do método jurídico-analógico, a visão adequada da questão das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários só se apresenta se houver o realce da posse-trabalho ou a posse-comunitária como fundamento do direito de propriedade e não a propriedade abstrata preordenada à especulação e à mais-valia fundiária, urbana e rural.[16]

O Estatuto do Índio estabelece no seu art. 18:

“Art. 18. As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.”

A posse-comunidade se manifesta juridicamente sob a forma de usufruto. Entende-se por usufruto o direito real de fruir das utilidades e frutos de uma coisa sem poder afetar-lhe a substância.  Quanto ao tema, estabelece o Estatuto do Índio:

“Art. 24. O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.”

Analisando a questão tendo em vista a estrutura, não há qualquer antinomia entre os institutos, havendo harmonia nos nexos de sentido, afastando-se qualquer possibilidade de se criar contradições artificiosas para provocar, falaciosamente, a necessidade de uma ponderação entre regras em conflitos, privilegiando aquela que o intérprete quer impor.

Consoante afirmamos alhures, ao se criar falsas oposições entre as normas, produz-se uma equivocidade artificial de maneira que, por uma ponderação ad hoc, revoga-se uma norma que, uma vez lida de forma correta, permaneceria íntegra no ordenamento.

Ao contrário do que se afirma, a posse permanente das terras ocupadas pelos povos originários se afina com a axiologia do ordenamento autóctone e qualquer criação de antinomias revela-se como mecanismo de apropriação privada da linguagem.

O que a tese do marco temporal busca é criar títulos jurídicos abstratos para suprimir a posse direta – que já é exercida tradicionalmente pelos povos originários. Se a questão é visualizada da perspectiva da posse-comunidade, não há razão alguma para condicionar o direito dos povos originários a terras tradicionalmente ocupadas ao marco da data da promulgação da constituição ou qualquer outra data ligada à promulgação.

  • Nível Histórico

É possível recortar quatro sentidos para o nível histórico da interpretação: a) busca do sentido tendo por base os registros dos debates que precederam à constituição da lei; b) a atualização axiológica do sentido da lei; c) o sentido embutido no momento em que a lei foi forjada e d) o sentido dialético entre o aspecto sincrônico e diacrônico.

Tradicionalmente, a interpretação histórica está centrada na análise das discussões parlamentares nos momentos de discussão e votação dos projetos de leis. Figura-se a ideia de que a lei promana do legislador erigido como significante-mestre do qual as leis promanam. A doutrina jurídica fala em interpretação subjetiva no sentido de que se procura encontrar a ideia que inspirou o autor.

Na verdade, o legislador nunca é um bloco monolítico e unívoco como se pudesse identificar com uma figura existente. É mais um processo complexo que envolve a representação das mais variadas classes sociais de forma que enfeixa-lo numa figura unitária é uma abstração incompatível com a realidade. Por isso mesmo, vontade do legislador e sentido subjetivo são expressões que simplificam o processo complexo de produção de leis. São metáforas de má qualidade científica.[17]

Também a interpretação histórica é vista como a atualização axiológica dos sentidos da lei. Conforme a linguística ressalta, os signos são mutáveis na medida em que um significante- o mesmo som- pode adquirir novos significados e, portanto, novos valores. Em sendo as leis escritas de acordo com a linguagem natural, não estão alheias ao influxo do tempo de maneira que é inevitável a possibilidade de as palavras assumirem novos significados. Mas, no caso do direito, para preservar a intangibilidade do ordenamento, os novos sentidos só agasalhados quando consoantes com os sentidos pretéritos e conformados com a estrutura jurídica.

Savigny, por sua vez, quando talha um método de intepretação, visualiza, dentre outros, o elemento histórico entendido como estado de direito existente sobre a matéria na época em que a lei foi emitida. Aqui o método histórico se relaciona com o contexto do qual a norma emergira.

Os dados que interessam a um determinado campo situam-se a partir de dois eixos. O sincrônico em que a se enfatiza a simultaneidade de acontecimentos em um mesmo tempo. O diacrônico em que se mira a sucessão de acontecimentos em tempos distintos. Ao se limitar ao estudo sincrônico de um fenômeno, corre-se o risco de destemporalizá-lo, convertendo-a numa imagem idealista sem materialidade. Não se nega que é fundamental estudar a estrutura de um fenômeno dotado de autonomia relativa, marcado por dependências internas. Não obstante, estudar a estrutura sem articulá-la à gênese histórica provoca a sua hispostasia em um ente subsistente em si mesmo e desenraizado da práxis que lhe deu ensejo. O que caracteriza, portanto, à luz da hermenêutica jurídica analógica, o método histórico é a relação dialética entre o caráter diacrônico e o sincrônico de forma

que o desvelamento de novas possibilidades de significados deve estar alinhado aos aspectos atuais e pretéritos – sincrônicos. Deve-se enfatizar que o desvelamento de novas possibilidades sígnicas só é admissível quando não corroer o sistema, realçando-se o sentido textual e intertextual.

Na questão examinada, em toda a experiência constitucional brasileira, consagrou-se o direito dos povos tradicionais à posse permanentes das terras tradicionalmente habitadas. Por exemplo, a Constituição de 1967, estabelece:

Art 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

Portanto, em toda a história constitucional projetou-se um conceito de nação amplo, capaz de superar a colonialidade do poder. No cerne da questão do marco temporal, também se insere a grave questão de que conceito de nação irá prevalecer.

Os conceitos políticos não surgem historicamente do nada nem flutuam no ar como se fossem criações cerebrinas de um pensador solitário. Se aparecem na história, é porque cumprem um papel na dinâmica política. E, como a história não passa de geopolítica, os conceitos políticos são formas emergentes das refregas geopolíticas.

O que se espera é que o conceito amplo de nação tal como consagrado no projeto constitucional de 1988 seja corroborado. Não há passado nem devir no Brasil sem os povos originários.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Na tradição dialética, a distinção entre o entendimento e a razão é similar à distinção entre análise e síntese, mas tem uma maior riqueza científica.

[2] Nesse sentido, tem razão Lacan quando diz que o real é o impasse da formalização. Podemos acrescentar que o avanço da ciência significa sempre a formalização de novos aspectos não subsumíveis. O valor da prática científica é justamente traz novos aspectos que motivam a ciência a avançar.

[3] O pensamento jurídico opera por tipos. Em todas as configurações do direito, a noção de tipo se manifesta.

 

[5] Aqui avulta de importância o tema da cadeia de custódia enquanto elemento central para representação objetiva e idônea de um fato e da forma democrática de um sistema lógico.

[6]SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2010, p. 146.

[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica. Petrópolis: 1999, p. 623-624.

[8] O que chamamos sentido literal nada mais é que uma metáfora que perdeu a evidência.

[9] A sintaxe no sentido gramatical é de importância quando vinculada à semântica. Outrora, os livros de gramática estavam imbuídos de uma subjacente lógica: os estados, as qualidades e ações relacionadas com os substantivos, adjetivos e verbos; as preposições e as conjunções expressando as mais variadas relações lógicas entre as frases e orações; os pronomes e os artigos as determinações ou indeterminações determinadas dos substantivos, o que permitia uma compreensão do funcionamento estrutural e lógico do idioma.

[10] O conceito de analogado principal foi resgatado pelo filósofo Maurice Beuchot.

[11] Os limites e as possibilidades da moldura são definidos pelo analogado principal. Por exemplo, no verso de Castro Alves “O incêndio — leão ruivo, ensanguentado”, o analogado principal é ideia de fúria, a qual as sinestesias e sugestões do poema estão vinculadas.

[12] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 170.

[13] DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. LZN editora, 2003, p.10.

[14] No original: “ Ces lois montrent que du moment où le propriétaire terrien cesse de remplir sa  fonction sociale, la collectivité est naturellment amenée à intervir pour assurer une exploitation idispensable à la vie sociale”

[15] Para evitar a propagação de falácias por pseudomarxistas medíocres e venais, urge sempre invocar o texto de Marx e de Engels. No Manifesto escrevem: “O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa” Mais adiante, salientam: “O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte do produto social; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação”. O marxismo consequente se opõe ao modo irracional da apropriação burguesa; por isso, não nega a propriedade individual, apenas se lhe retira do contexto burguês de apropriação. O marxismo buscar conferir um sentido comunitário à propriedade para evitar a exploração que a dominação burguesa da propriedade permite. O marxismo, conforme disse Althusser, está por criar. Criemo-lo.

[16] A Constituição Boliviana de 2009, que inaugura a segunda fase do constitucionalismo transmoderno, dentre tantas novidades, no capítulo sobre Terra e Território (art. 393 ao art.403), concebe a versão mais avançada do direito de propriedade comunal enquanto fundado na posse-trabalho, com a previsão de amplos mecanismos de combate à retenção especulativa da terra e de combate à mais-valia fundiária. Uma constituição, para citar Derrida, por vir  na medida em que trouxe à luz novas possibilidades, inscrevendo-se definitivamente na memória dos povos e projetando aquilo que em comum pode ser produzido. Kant dizia que um ato é revolucionário quando indica ao ser humano aquilo de que é possível em termos de ampliação da liberdade. A constituição Boliviana, então, é revolucionária.

[17] Não se pode negar o valor das metáforas para o conhecimento científico. Por exemplo, a dialética de Mao Tsé-Tung sempre lançou mão da metáfora da espiral para indicar o caráter infinito do conhecimento.

DA RESISTÊNCIA À DEMOCRACIA NAS FORMAÇÕES SOCIAIS COLONIAIS

A democracia é um regime de visibilidade aberto em que qualquer um pode emergir sem a necessidade de ostentar títulos, seja a riqueza, seja uma suposta superioridade. Nas formações marcadas pela branquidão como propriedade, aparece como um grande escândalo, pois significa a emergência de grupos não contados conforme a ascendência e a hierarquia, significa dizer que à branquidão não se confere o privilégio exclusivo de governar e que os não contados integram a comunidade política. Fácil inferir que, na modernidade periférica, o que caracteriza as lutas políticas constitui um confronto aberto contra a resistência- no sentido psicanalítico- à democracia e em prol da emergência dos que tem como título a ausência de título e ostentam a corporalidade viva, que luta por dignidade. As lutas políticas são deflagradas para que se possa constituir a luta política genuína e democrática.


Como a colonialidade do poder incute a superioridade da branquidão, instaura-se uma verdadeira patologia: os que ostentam a branquidão se veem como predestinados exclusivos aos atributos universais da humanidade e se arrogam a condição de privilegiados e únicos capazes de representar o todo social e, portanto, de governar. Engolfados no narcisismo das pequenas diferenças, perdem qualquer alteridade, isto é, qualquer disponibilidade ao outro que não se enquadra no rol de propriedades- sejam biológicas, sejam culturais- com que se identificam, acicatando, como corolário, maquinarias de exclusão simbólica e territorial. É o que Alberto Guerreiro Ramos chamava de patologia do branco.


Nesse contexto, as eleições, como momento importante da democracia, figuram como um verdadeiro fantasma, o fantasma de que, pela aleatoriedade que lhe é constitutiva, o exercício do governo acabe indo para mãos dos que não são os ‘predestinados’, isto é, os grupos não contados pela laminação unívoca da ordenação colonial e que podem, pelo exercício do poder, alterar e transmontar a distribuição colonial dos bens, incluídos os simbólicos.


A política, então, se torna um processo totalmente controlado pelas oligarquias brancas reacionárias, tendo por característica a reatividade à qualquer emergência popular. Não há que se enganar: nas formações sociais coloniais, as oligarquias brancas são violentas e resistem violentamente à emergência democrática, à emergência do qualquer um: o qualquer um sem título que desarma a lógica hierárquica da branquidão como propriedade.


Como conjurar a aleatoriedade das eleições? Pela criação de um sistema cerrado, sutil ou explícito, de exclusão. Jacques Rancière assinala que os Pais-Fundadores não viram nenhuma contradição em erigir o homem proprietário como o único capaz de fazer da esfera pública um lugar infenso a interesses particulares. Ingenuidade? Marx, por sua vez, já na análise semiológico-política das declarações francesas do século XVIII, entreviu a contradição entre o homem, que luta pelo próprio interesse, e o cidadão, que deve figurar como elevado membro da comunidade.

Enquanto o homem luta pelos próprios interesses, faz dos outros meios para atingi-los, o cidadão, enquanto membro da comunidade, deveria agir conforme o interesse público. A contradição, segundo Marx, se resolve pela predominância do interesse privado real sobre o interesse público etéreo e ilusório. Nas formações sociais coloniais, não há esfera pública, o comando já é imediatamente dominado pela lógica privada (1). As eleições são tomadas justamente para conjurar o risco da emergência dos não contados. Conforme salienta Fanon, o poder, nas colônias, é privilégio dos dotados de branquidão e identificados com os valores imperialistas.


A democracia, portanto, constitui o escândalo que embaralha a ordem do discurso. Não é só pela situação discursiva em que aqueles que normalmente são privados da palavra emergem na esfera na pública pelo discurso que a democracia é temida e odiada, mas também pela iminência de que o uso da palavra, ao torcer e suplantar o monopólio do simbólico pelas oligarquias brancas, estimule, esporeie, fomente a constituição de um bloco de poder nacional-popular. É pelo exercício da palavra ou dos gritos de martírio que o povo assoma na seara pública apresentando-se, à luz da lógica colonial, como ameaça à ‘benfajeza’ ordem dos privilégios seculares. A mera emergência de um não contado é vista como ameaça e se verificam manifestações, patentes ou latentes, de racismo. Por isso, conforme salientei no livro As antinomias do direito na modernidade periférica, nas formações coloniais, a única política admitida pelas classes dominantes é a despolitização mediante o silenciamento, pelos mais variados meios, dos que enunciam os sintomas e as contradições das formações sociais.


Mas não há que desesperar da política. A emergência das massas em organizações de disciplina coletiva sempre é possível e, desde que se estabeleçam, pela luta, critérios seguros de verificabilidade da constituição do poder, o jogo pode mudar: as massas silentes podem assomar no vigor da poesia e da criação política de novas formas de ser e de viver.


Espargiu-se, até mesmo pela vulgata marxista, a noção de um Gramsci culturalista e domesticado. Mas Gramsci por ele mesmo não pensava em termos de cultura; como pensador da conjuntura, pensava em termos de poder e entendia a práxis como a busca, diuturna e incansável, pela constituição de um bloco de poder, nacional, popular e revolucionário (2). Lembrando Hegel, o ser humano, ao construir uma casa, usa os elementos da terra para se proteger da própria terra. Então, trata-se de criar um bloco de poder capaz de enfrentar e superar a branquidão como propriedade.

Notas:

1 Assiste razão a Dussel ao enfatizar Fichte como modelo de intelectual para a América Latina. Para Fichte, em momentos graves e difíceis da nação, cabe ao filósofo assumir o risco de, lutando pela instauração de uma verdadeira esfera pública, ser um momento reluzente e complexo de autoconsciência.


2 Para Gramsci, os partidos se tornam pessoas históricas quando se transformam no crisol da unidade entre teoria e prática, entendida como processo histórico. Não há qualquer transformação social sem que se verifique uma efervescência teórico-prático no âmbito dos partidos, sindicatos e movimentos sociais. No caso do Brasil, ainda impera o enunciado popular do período do Império em que havia dois partidos – o liberal e o conservador: ‘’Nada mais conservador do que um liberal no poder, nada mais liberal do que um conservador no poder”. No período ditadorial explícito (1964-1985), tivemos o partido do sim (MDB) e o partido sim, senhor (ARENA). Nada mudou. Mas nada impede o surgimento ou a configuração de partidos antirracistas, anticoloniais e anticapitalistas, constituídos em laboratórios para pensar e articular a totalidade social. Conforme dizia Guerreiro Ramos, os fenômenos sociais são totais, exigindo a superação da perspectiva fragmentária tão ao sabor do império.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB

Presidente eleito não deveria se desdizer tanto

Bolsonaristas estão reclamando das críticas que a imprensa faz ao presidente eleito. Acham que é má vontade. “O homem ainda nem chegou e vocês já ficam em cima. Vocês só sabem falar mal.” Que se preparem. Quando “chegar” vai ser muito pior. É a sina do eleito. Ele tem que se acostumar.

Mas, para não dizer que é implicância, quero confessar que estou bem impressionado com sua disposição e energia física. Para quem levou uma facada, foi operado, anda com uma bolsa de colostomia e ainda vai sofrer outra cirurgia, é admirável. Ele não para, tem paciência para falar com dezenas de chatos diariamente e viaja a Brasília com a frequência com que vai ao Banco pegar dinheiro para o churrasco. Deve ser efeito do pão com leite condensado.

Outra coisa muito elogiada é a facilidade com que volta atrás no que diz, no que promete e no que ameaça. Afinal, a coerência não é um valor em si. Ser coerente no erro, por exemplo, não é qualidade. Mas convenhamos que seria preferível que ele não precisasse se desdizer tanto: era melhor que pensasse mais, ouvisse mais, antes de falar. Para quem age por impulso, até que ele tem errado pouco.

Essa afirmação, porém, foi posta em dúvida com a escolha do futuro ministro das Relações Exteriores. Ficou claro o que o presidente queria dizer quando pregava para o Itamaraty o fim do que chamava de “viés ideológico”. Ele não esclarecia que o viés ideológico a que se referia era o de esquerda. O de direita era desejado.

O filho do presidente que fez uma sabatina prévia do escolhido sabia o que estava fazendo. Não só o novo chanceler Ernesto Araújo é a imagem e semelhança do capitão reformado. Trumpista declarado, militante virtual das teses mais extremadas no seu blog, ele vai além: está à direita de seu ídolo, acrescentando hipóteses meio paranoicas.

Defende, por exemplo, a teoria conspiratória segundo a qual existe um projeto “globalista” que pretende transferir o poder do Ocidente para a China, “a China maoísta que dominará o mundo”. Os colunistas Merval Pereira e Bernardo Mello Franco procuraram tranquilizá-lo, informando que o maoísmo foi abandonado em 1978. Não sei se adiantou, porque faz parte do complô também o que denuncia como “climatismo”, que na realidade é o esforço mundial de reduzir as emissões de carbono.

Essa transferência de poder global só não acontecerá porque Donald Trump não vai deixar e porque ele, nosso chanceler, se propõe — modéstia à parte — a “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”.

Os colunistas Merval Pereira e Bernardo Mello Franco procuraram tranqulizá-lo…

Quer dizer: mudando de viés estamos salvos.

Por: Zuenir Ventura – O Globo

Comandante do Exército recebe pré-candidatos

De olho no orçamento do Exército para os próximos anos, o general Eduardo Villas Bôas tem realizado uma série de conversas com os principais pré-candidatos à Presidência da República. Nas últimas semanas, o comandante conversou com Álvaro Dias (Podemos), Jair Bolsonaro (PSL) e Marina Silva (Rede). Ontem, foi a vez do tucano Geraldo Alckmin e do pedetista Ciro Gomes. O petista Fernando Haddad ainda será convidado para falar com o general em nome do PT, já que o pré-candidato do partido, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está preso em Curitiba.

Segundo o próprio comando do Exército, esta é a primeira vez, desde a redemocratização, que o comando da caserna atua para defender a inclusão de projetos da instituição nos programas de governo dos postulantes ao Planalto. Nos encontros, Villas Bôas manifestou preocupação com a falta de dinheiro em projetos estratégicos.

Alguns dos exemplos citados são o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron) e o treinamento de militares para ações de segurança e defesa nacional. O general tem destacado a importância do Exército na intervenção federal no Rio de Janeiro e durante a greve dos caminhoneiros.

“Já tivemos R$ 2,5 bilhões de orçamento em 2017. Neste ano, caiu para R$ 2 bilhões. O próximo ano pode ter só R$ 1,4 bilhão. Então, o comandante do Exército tem conversado com os pré-candidatos, num movimento sem precedentes na instituição, para reforçar a importância de investir em defesa”, diz um general ligado ao comando do Exército.

Um país desgovernado

Executivo desacreditado, Legislativo desmoralizado e Judiciário agindo como se fosse mesmo uma corte real se distanciam cada vez mais do povo, do qual só se servem, sem espírito público e com zero pudor

Não é de hoje que o Estado brasileiro atua exclusivamente para satisfazer ânsias de riqueza de seus mandatários e funcionários, a ponto de o verbo servir haver perdido todo o sentido ativo, passando a ter apenas o significado passivo para a casta privilegiada e a burocracia que se presta a trabalhar só para ela. Notícias recentes trazem a público indícios claros de que os Poderes da República, na ânsia de proteger seus privilégios corporativos, tomam o mando, em teoria do povo, para exercê-lo em função de uma classe social que se reproduz por via hereditária, como no ancien régime, por nomeação do chefe do Estado, por concurso público ou até pelo voto. Esta ruptura do mais pétreo dos preceitos constitucionais – aquele segundo o qual todo o poder deve emanar do povo e em seu nome ser exercido – teve seu apanágio retórico no julgamento de habeas corpus impetrado por um condenado por crime comum. Nele o advogado de defesa, político profissional, Roberto Battochio elegeu como símbolo da justiça que pedia para seu representado, o ex-operário Luiz Lula, o discurso do nobre advogado do monarca Luís XVI, Guillaume-Chrétien de Lamoignon de Malesherbes (atenção para a duplicação da nobiliárquica preposição de), contra o “punitivismo” jacobino na Revolução Francesa.

Agora é muito provável que estejamos em pleno paroxismo dessa lenta e inexorável tomada de poder numa democracia que se perde pela aristocracia de estamento nesta República (de res publica, no latim, coisa pública) assaltada pelos interesses privados de uma classe cínica e insaciável, que não tem espírito cívico nem dá a mínima para a moral e os bons costumes. O presidente mais impopular da História, Michel Temer, protagonizou recentemente um dos episódios mais representativos, mas não o único, nesse sentido. Para resolver o impasse criado pela falta de rumo, autoridade e competência na gestão – o movimento organizado para defender os interesses exclusivos de caminhoneiros e empresas transportadoras –, o chefe do governo atropelou o bom senso e a lei, cedendo a tudo o que exigiam os amotinados. Com isso interrompeu a política de preços adotada para recuperar as finanças da Petrobrás, quase falida pelo furto de seus ativos nos desgovernos de seus ex-aliados Lula e Dilma, restabelecendo o tabelamento de seu correligionário José Sarney para o diesel e para o frete. Com a “bolsa caminhoneiro”, como definiu o Estado em primeira página na edição de domingo 17 de junho, o chefe do Executivo adotou uma medida ilegal, pois, conforme advertiu o Cade, em manchete na segunda-feira 18, violou o princípio da livre concorrência, marco basilar da economia de mercado, vigente no País. Ou não é mais?

O economista Edmar Bacha, em entrevista a este blog na semana passada, lembrou que Temer teve o juízo de montar “uma equipe econômica da melhor qualidade (que) opera com relativa autonomia, dentro dos estreitos limites da atual conjuntura”. Isso só “não funcionou porque o presidente perdeu todo o seu capital político com a revelação de suas tratativas pouco republicanas na calada na noite com o empresário Joesley Batista. A partir daí o governo teve de se dedicar a barrar o impeachment, incapaz de desenvolver uma agenda econômica positiva”, disse Bacha.

O episódio lembrado pelo criador do termo “Belíndia” para definir o Brasil como parte Bélgica e parte Índia é um dos marcos de fundação dessa aristocracia de cartéis. Estes vão do pacto entre políticos governistas e da oposição, grandes empresários, principalmente empreiteiros, e burocratas de estatais, em particular a Petrobrás, e autarquias, até o compromisso ilegal do presidente para interromper a recente pane seca e o consequente desabastecimento de derivados de petróleo e gêneros alimentícios. Um dos lemas dessa situação surreal em que o quinteto Temer, Padilha, Moreira, Marun e Etchegoyen meteu o País é a frase com que o primeiro recebeu o meliante do abate Joesley Batista na garagem do Jaburu (mais adequado seria chamar o palácio de Guabiru) na calada da noite: “Tem que manter isso, viu?” Apesar da desesperada tentativa dos asseclas palacianos de desqualificarem a gravação do palpite pra lá de infeliz, ela se perdeu por lembrar outro lema, que pode valer para essa classe de roedores do erário, da lavra do presidente do MDB temerário, Romero Jucá, ao correligionário que presidiu a BR Distribuidora (de derivados e propinas), Sérgio Machado: “Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria”.

A sangria ainda não foi estancada, apesar do esforço que tem sido feito pelos chefões políticos. Mas as eleições gerais de outubro que vem não são nada promissoras em relação à atuação do combate à corrupção na polícia e na Justiça. Nenhum presidenciável deu até agora sinal de que esteja fora desse pacto. Um deles, Geraldo Alckmin, cujo PSDB foi derrotado por Dilma e Temer em 2014 e hoje é parceiro do governo, teve o descaramento de dizer que este “padece de uma questão de legitimidade”, como se o chanceler Aloysio Nunes Ferreira não fosse tucano, como ele é.

As duas frases sobre as quais se sustenta a oligarquia dos cartéis nos levam, destarte, a introduzir nessa constatação da total deturpação do Estado de Direito em estágio de defeito o Poder Legislativo. Jucá, pernambucano de Roraima, onde faz praça e troça, é um bom exemplo da transformação do governo do povo em desgoverno dos polvos. Desde que o “caranguejo” Eduardo Cunha se assenhoreou do comando da produção de leis, o Congresso Nacional passou a servir apenas a “manter o que está aí” e, para isso, a procurar fórmulas legais para “estancar essa sangria”, aplicando um garrote vil contra a ação moralizadora de agentes, procuradores e juízes federais de primeira instância.

Essa tarefa mesquinha e traiçoeira contra o povo que deputados e senadores fingem representar começou a ser cumprida com a “lei da bengala” que mantém os compadritos (apud Jorge Luís Borges) nos tribunais superiores de Contas, Justiça e Supremo. Com a vigilância sobre propinas e caixa 2 na contabilidade das campanhas eleitorais, para garantir suas vagas e as de parentes e cumpinchas, os legisladores criaram o Fundo Eleitoral, que, segundo a Folha de S.Paulo, usando dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), representa 86,5% das receitas de seus partidos.

Duas notícias, publicadas lado a lado na primeira página do Estado de segunda-feira 18, complementam a anterior. Uma dá conta de que a eleição para o Senado este ano terá número recorde de candidatos – 70% – em busca de reeleição. Em entrevista a Fausto Macedo e Ricardo Galhardo, o ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello informou que “há material para mais cinco anos de operações”. A reeleição de qualquer político que possa estar nesse “material” é uma ameaça à continuidade do combate à corrupção, sem o qual não há como o Brasil deixar de ser este trem descarrilado, cujo farol é a luz que se poderá ver saindo do túnel das urnas.

O pior de tudo é que a esperança que a sociedade passou a ter na ação das operações a que Daiello se referiu está nas mãos de quem mais as põe em risco. Os seguidores de Malesherbes, representados pelo quinteto Gilmar, Lewandowski, Toffoli e a dupla Mello, continuam a atuar como garantes não da igualdade dos cidadãos perante a lei, assegurada pela Constituição vigente, mas, sim, dos caprichos e “dodóis” dos clientes abonados das bancas que abrigam mulher, genro, amigos e antigos parceiros de convescotes e salamaleques.

Vitimados pelo desemprego, pela violência e por saúde e educação de péssima qualidade, os pobres, que nem sonham poder um dia exigir seus direitos no fechadíssimo clube da impunidade dos que são mais iguais perante a lei, pagam a conta do desgoverno do Executivo, da safadeza do Legislativo e do cômodo uso da definição de Corte para seu colegiado com os mesmos frufrus e minuetos das monarquias absolutistas. A proibição da condução coercitiva de delinquentes de colarinho-branco e a tentativa de garantir a honra de políticos desonrados proibindo fake news são exemplos recentes, mas não os únicos, de como os ministros de tribunais superiores participam, sem pudor, do golpe dos “aristo-ratos” que se locupletam como dantes nos cartéis de Abrantes.

Por: José Nêumanne, Jornalista, poeta e escritor

Ministério Público denuncia propaganda antecipada

O Ministério Público Eleitoral de Pernambuco ajuizou três ações, hoje, contra o deputado federal Fernando Bezerra Coelho Filho e o deputado estadual Guilherme Uchôa. Eles são acusados de realizar propaganda eleitoral antecipada, por meio de outdoors ou peças publicitárias. O autor das representações é o procurador regional eleitoral substituto Wellington Cabral Saraiva.

O MP requer que o TRE aplique multa aos acusados no valor de R$ 5 mil a R$ 25 mil, pela prática de propaganda eleitoral antecipada. Também foram denunciados o empresário Guilherme Uchôa Júnior, conhecido como Júnior Uchôa, e a prefeita de Brejão, no Agreste, Elisabeth Barros de Santana, conhecida como Beta Cadengue.

The Gaulle:o Brazil tá doidão!

MONTANHAS DA AL-JAQUEIRA – O cientista político The Gaulle aflorou no recinto. Ele é autor da big tese de que o Brazil é um país muito sério. Ao dar um rolé nas montanhas da Al-Jaqueira, eu perguntei: Como tá tu, The Gaulle? Ele falou: Tô ligado. E o Brazil? Está degradado em todos os cantos onde canta o carcará e onde cantava o sabiá. Tá doidão, bicho, o Brazil tá doidão!

Ele fez a crônica do Brazil delirando e levado numa camisa de força para ser atendido num posto de saúde do SUS. Sem olhar para a cara dos gemedores do Brazil, sua excelência o doutor da Medicina fez o diagnóstico coletivo: todos estão com a peste bubônica da virose. The Gaulle disse que ficou invocado. Os médicos estudam 10 anos nas faculdades e aprendem que todos os pacientes do SUS padecem de virose e fazem consultas-relâmpagos de dois minutos. doenças devem ser revogadas. Assim caminha a saúde pública no Brazil. É a medicina fake, ou fucker.

A saúde pública no Brazil é uma virose crônica, uma tortura. Aflige mais que alivia as dores. A saúde na rede privada depende do bolso do freguês. Faz parte da ditadura dos planos de saúde.

Quem irá sarar as feridas e fazer a remissão do Brazil? A depender das nossas lideranças de meia tigela, não haverá remissão. Estamos órfãos de grandes líderes e de estadistas.

O guru da seita vermelha está preso e o mundo não acabou. O principal ideólogo do cordão encarnado também entrou em cana. Um cara com mais de 70 anos, de formação revolucionária ortodoxa, 30 anos de cadeia no lombo e sem perspectivas de liberdade, o que irá transmitir aos seus devotos? Ficar resignado não faz parte da natureza dos combatentes fanáticos.

Os doutores da Medicina formam uma casta neste País. Desfilam com reizinhos na região abdominal. A casta impede ou dificulta a abertura de novas faculdades para manter a reserva de mercado. Filhinhos de papais e mamães formados em universidade públicas nas costas dos contribuintes, tripudiam sobre os desvalidos que sustentam seus privilégios. São eles mesmos que criticam os governantes e os privilégios alheios. Os bons profissionais com espírito humanitário e senso de ética são minoritários nessa casta.

The Gaulle assistiu à entrevista da sinhazinha de nariz de Pinóquio à TV Al-Jazeera para o mundo árabe, vasto mundo habitado por espíritos da paz e harmonia e também moinhos de guerra. Qual a mira do nariz de Pinóquio? De guerras bastam nossas tragédias do dia a dia.

Morrendo de amores pelo guru da seita vermelha, a sinhá propôs  cortar o pescoço da vereadora Marília Arraes para levar o apoio do cordão encarnado à reeleição de Paulo Câmara em Pernambuco, sob a condição de o governador trabalhar em favor do indulto para o chefe da camarilha atualmente preso em Curitiba. Liderança política em ascensão, Marília já beijou as barbas vermelhas e hoje seu pescoço está sendo usado como moeda de troca.

Por: José Adalberto Ribeiro, jornalista