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Já ninguém mais nos oprime: pastor, pai, lei, algoz?
“E então? Vencemos o crime? Já ninguém mais nos oprime: pastor, pai, lei, algoz?”.(Belchior)
Numa sala fechada, com ar insalubre, donos do mundo e de nossas vidas discutem o “nosso” futuro – sem a nossa presença. Generais, altas patentes, sempre bem intencionados, direcionam os nossos passos para solos confortáveis e seguros. Preocupados, pois, sugerem uma ideia: a pulverização dos homens e de suas ideologias. Reconhecem a pureza do homem e a vê se esvair logo formem grupos, desenvolvam pensamentos e percam o medo de usar a voz. Bem por isso – e para o nosso bem, por óbvio -, sabem que se deve operar desde logo. Desde a mais tenra idade, nos bancos escolares, deve-se apontar a direção correta – e única – às crianças, aproveitando da ainda pureza genuína de seus corações. Ensina-se que dois e dois são quatro, que a história é linear e ordeira, que se deve amar a pátria e acreditar, acima de tudo, em suas instituições: justiça é o que o juiz diz, a melhor forma de governo é a já adotada etc. Destarte, ao chegarem à universidade, nada de crítica ou suspeita impertinentes: todos castrados e felizes.
Poderia ser o começo de um romance ou o roteiro de um filme – e o é deveras. No entanto, ainda assim, o romancista e o diretor não podem olvidar da “realidade”; bem por isso, não o fazem. Identificando o objeto, demo-lo nome: Z – A orgia do poder. Filme baseado no romance homônimo de Vassilis Vassilikos e dirigido por Costa-Gavras. Nas linhas que se seguem, procuramos discorrer sobre o filme fazendo aproximações com o Direito.
No limiar do filme, quando os militares discutem sobre a necessidade de pulverização dos homens e de suas ideologias, um ponto importante nos salta aos olhos, qual seja: a universidade como local para aplicar tal pulverização. Destarte, importante lembrar do que nos diz Luís Alberto Warat: o ensino (jurídico) é a fonte do Direito [1]. É através do ensino que se impõe determinado conhecimento, fazendo com que os futuros juristas tomem suas ações com base no que fora apreendido em sala de aula. Diz-nos Warat que ensinar é impor, é invadir, doutrinar, disciplinar, controlar, desumanizar. Ou seguindo Marcuse, ensinar é formar um homem unidimensional. E no Direito, esse caráter unidimensional é tão patente quanto latente; como se, para agir dentro das “possibilidades jurídicas”, tivéssemos que adotar sempre a mesma postura, transformando-nos em “juristas robotizados” [2].
Ivan Illich [3], ao sugerir uma sociedade sem escolas, chamou-nos a atenção para o antagonismo entre escolarizar e humanizar, ou seja, escolariza-se para desumanizar-se. Quiçá, no Direito, mais do que em qualquer outra área, o que encontramos são seres escolarizados, “desumanizados” e disciplinados para agir conforme os interesses do Estado, possibilitando a perpetuação desses valores impostos pelos donos do poder. Quando, no filme, os militares vaticinam sobre a importância de começar a controlar desde a escola e universidade, é para não dar margem à discussão e a criação de novos valores. Daí que alguém sentencia: “vivemos num país em que a imaginação é suspeita”. Decerto, não se pode pensar sob pena de questionar o já estabelecido; por isso então a escolarização, a doutrinação. “E se eles escolherem ser livres, aqui?” – perguntam ao general. É a liberdade dos contestadores que o Império (Warat) teme!
Importante dizer, já que estamos a falar de Direito a partir do filme, a importância do ventre mágico engendrado nas salas de aula universitárias. Seguindo as lições do mestre Warat, ventre este que possibilita a suspensão da “realidade” e dos conflitos que integram o nosso meio. Dessarte, resguarda-se os futuros juristas desse ambiente, colocando-os num mundo de faz de conta, onde reina a paz e felicidade cabal. Qual no filme, tudo vai se arrumando sem transparecer, de tal maneira que os conflitos passem a ser ocultados. O controle produzido pela escola de Direito faz com que vejamos o mundo tal qual os funcionalistas: um lugar onde a ordem é a paz e a inércia e que “toda mudança social radical é uma disfunção, uma falha no sistema, que não consegue mais integrar as pessoas em suas finalidades e valores” [4]. Assim, passamos a olhar o conflito como manifestação de patologia social.
Sendo, pois, o ensino jurídico a principal fonte do Direito, ela se manifesta ao produzir o que o Warat chama de sentido comum teórico dos juristas [5]. Sentido este que o próprio autor define como “um conjunto de representações, imagens, noções baseadas em costumes, metáfora e preconceitos valorativos e teóricos, que governam seus atos (dos juristas), suas decisões e suas atividades”. Desse modo, é a partir de sentido comum que as lições, vomitadas pelos professores, desempenham um grande papel dentro da eficácia controladora, elaborando uma espécie de concepção única do Direito. Daí em diante, todos os valores-ídolos são adotados pelos bacharéis que, ao saírem da universidade, propalarão, aos quatro cantos, a igualdade, a liberdade, a fraternidade, a uniformidade, a segurança etc.
Só há revolução com riscos. No filme, o deputado diz conhecer todos eles. Em sendo assim, no que concerne ao Direito, uma pergunta insiste em pulular: não será esses riscos que extingue o número de combatentes? Seguindo a lição do mestre Luís Eduardo, chega uma hora em que devemos escolher um lado, eleger uma posição. E essa escolha acontece todos os dias: o juiz que tem de sentenciar para um dos dois lados; o advogado que segue seus valores para tentar o “impossível” etc. Lembrando Sartre, temos de reconhecer as nossas limitações para não nos socorrermos do “benefício da dúvida” [6]. Até porque é a escolha entre lutar, mesmo em meio a todos os riscos, e não lutar que revela o homem cuja ideia não aderira ao corpo. É, pois, necessário aderir a um lado e saber que, a partir daí, um rochedo cairá atrás de nós na estrada e a destruirá; não poderemos mais voltar [7].
Outrossim, superado o reconhecimento dos riscos, necessário, também, transpor os limites da ingenuidade. “Agir legalmente”, eis o discurso dos incautos. Como “agir legalmente” contra os inescrupulosos? Obediência no desobedecer? Conduzir-nos adstritos à legalidade criada pelo nosso próprio inimigo? Não sendo o Estado o povo, há se lutar com as próprias armas e criando outra “legalidade”.
A partir do filme, façamos a seguinte pergunta: para que e quem o Direito? Na cena em que os organizadores do comício vão à sala dos militares em busca de autorização para realizar o evento, o coronel lhes diz: “minha decisão se baseia em relatórios competente”, acrescentando, “sou neutro”. Ora, não são esses, dentre outros, os valores-ídolos do Direito: a verdade e a neutralidade? A imagem de uma justiça neutra e justa. Por isso – mais uma vez – para quem? Encontramos, quiçá, na pergunta do deputado, uma resposta para tal pergunta: “por que são sempre os nossos que são mortos?”. Em outra cena, o general fala em “valor jurídico”. Mas o que é que tem tal valor senão o que eles próprios dizem haver?
Por outro lado, olhando o Direito através da personagem do magistrado, vislumbramos o combate entre a oportunidade de “sucesso” pela subserviência e a oportunidade de “trapacear os próprios trapaceadores”, como diria o mestre Luís. Em meio a esse conflito, o general pergunta ao juiz: “vai desacreditar a polícia e a justiça?”. Vê-se, nesse jogo entre Direito e Política, a preocupação com a vil aparência responsável por manter erigidas e intactas as colunas da ordem. No entanto, há se perguntar: ainda são elas credíveis? Quanto à Justiça, se quisermos responder a esta pergunta, perguntemos a resposta ao morador de rua, ao presidiário e a todos os pobres coitados entregues a sorte da caridade.
Já no final do filme, é dito ao magistrado: “é o único responsável por sua consciência”. E, talvez, seja esse o papel do juiz: responsabilizar-se pelas suas ações. Por que não? Por que eximir o sentenciador de sua sentença? Qual no filme, os juristas devem ter plena consciência que não prestam nenhum favor à sociedade senão que cumprem com o papel de transformador, dentro de suas limitações, para com o seio social. Os juristas não tem compromisso com a lei exceto quando esta estiver compromissada com a liberdade.
De acordo com o que fora suso escandido, restar-nos-á, apoiado no poeta Leminski, errar o alvo. Errar o alvo que nos prepararam para atingir. Agir, qual Bartleby [8], preferindo não fazer o que já fora predeterminado. Substituir o controle pela poesia e a verdade pela estilística da existência [9]. Enquanto juristas, há que se pensar, despido de toda essa roupagem imposta, qual o nosso papel. Como o juiz do filme, devemos lutar pelo o que acreditamos, ainda que o fim já esteja decidido, ainda que estejamos fadados ao insucesso. Por que não, como Galeano, abrirmos as veias dessa “sociedade mascarada”? Por que não esquecer o funcionalismo e optar por tratar os conflitos abertamente?
Precisamos, portanto, reconhecer que até na ordem há desordem; aprender com Edgar Morin que aquela pede esta que, por sua vez, culmina na organização – não esquecendo que essa relação é cíclica. Passemos, pois, de seres ancilosados, exangues para seres militantes, irrequietos e violentos, posto que ser violento é romper com o que está estabelecido. Assim sendo – só assim -, poderemos ouvir o mesmo que foi dito, pelo advogado – no filme -, sobre o magistrado: “o juiz não se amedrontou”. Ou isso, ou ficaremos com a sentença do poeta Belchior: era uma vez todos nós!
Por: Breno S. Amorim
[1] WARAT, Luís Alberto. Sobre a impossibilidade de ensinar o Direito – Notas polêmicas para a desescolarização do Direito, p. 432.
[2] AMORIM, Breno S. Juristas robotizados. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24313/juristas-robotizados.
[3] ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas: trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 1985.
[4] SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. 5ª ed. Editora Rt, 2010, p. 84.
[5] WARAT, Luís Alberto. Epistemologia e ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
[6] SARTRE, Jean-Paul. Sursis, p. 134.
[7] Paráfrase a Sartre, Sursis, p. 149.
[8] MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário. Trad. por Cássia Zanon. Porto alegre: L&PM, 2008.
[9] WARAT, Luís Alberto. Idem.
Crônicas Edmar …Prefiro as janelas
Hoje, pela manhã, encontrei um colega de trabalho entusiasmado com sua recente publicação no facebook, anunciando sua preferência pelas “portas”, sejam elas “largas, estreitas, grandes, pequenas, bonitas, feias, simples ou sofisticadas”, pois nelas encontrava uma “saída de forma digna, honrada, permissível, equilibrada, livre…”.
Aurélio Amorim Buriti é um apreciador de poesias e costuma ser admirado pelas frases curtas e poéticas postadas na sua rede de relacionamentos. Neste texto, ele confessa que sua inquietação não permite investir nas “janelas”, sempre o corrigindo, cobrando-o, mesmo quando se perde “na ilusão das mais belas vistas, dos janelões dos antigos casarões”.
Achei a postagem bem escrita, mas, de imediato, revelei minha preferência – as janelas. Estranhando minha “posição”, não quis ouvir minha contradita, exigindo que eu fizesse um texto defendendo as janelas. Porém, não vou fazer uma “defesa”, mas um breve apelo:
Buriti, não se acostume demais com as saídas honradas, permissivas. Ponha um pouco de meninice e mistério em teus passos, escape do equilíbrio e, se puder, escape de você mesmo. Só nas janelas se percebe horizontes; as portas são pragmáticas, podam nossas asas, não há leveza para quem se arrasta.
Evite a certeza das portas. É preciso às vezes escorregar na ilusão, acreditar no salto de quem não quer perder a eternidade dos próximos segundos. Precisamos também ser incorrigíveis, nem sempre se lançar é uma fuga – pode ser um encontro. As janelas são frestas que cabem nossos sonhos, esperas e prantos. Muitas vezes, as portas não nos cabem, nem mesmo a vigília do nosso choro.
Nas janelas se permitem sorver a brisa da lua e a saudade do mar; nas portas são proibidas as serenatas e as preces do povir.
Colega, perdoe minhas divagações. Acredito até que sequer divergirmos, talvez o mais importante nem seja o vão que escolhemos, mas, sim, pregar a urgência da travessia, querer ir a algum lugar, um abrigo que nos ultrapasse e mate nossa sede andarilha.
Por; Edmar Conceição, http://www.escritica.com/#!edmar-conceicao/c1edt
Não entendo, não engulo este latim *
Li há uns dois anos, um livro intitulado “Prova, provão, camisa de força da educação”. Eu, que durante o tempo de escola, não devotava minha atenção para o que transcorria em sala de aula, ao chegar à universidade e observar o “modus operandi” do nosso sistema educacional, não julguei pertinente uma “autoreprimenda”.
A escola – quem haverá de desdizer? – é absolutamente prejudicial, erva daninha vendida como maçã sem veneno. Sim, o livro supramencionado. Com as lacunas da memória, recordo-me do autor sustentar uma total ruptura com o que aí está, interior à nossa educação. Tal me veio à memória, quando eu rabiscava uma prova – infantil, como quase todas. O professor queria saber se eu era capaz de repetir o que ele dissera, em meio aos nossos cochilos, em sala de aula. “O que é isso?” – perguntava o maestro. “Isso é isto” – respondo, a um passo da genialidade.
Que (não) me perdoem os mestres, mas não há como levá-los a sério. Caso o ato de apreender e repetir fosse pertinente, o Abujamra, ator que tanto gosto, teria criado algo. Mas, não. Nietzsche, para refletir como convém, teve de abandonar a “universidade”, o idealismo alemão. Cioran, outrossim, descobriu os ludíbrios da filosofia e encetou caminhada por outras veredas. Na literatura, Graciliano, como diz o professor Luis Eduardo, foi brindado com a sorte de frequentar minimamente a escola.
Além: não bastasse a parvoíce perpetuada através da dinâmica aula-prova, ainda somos agraciados com os “professores carrascos”, anunciados por Werneck. São eles que, dentro da estrutura do ensino privado, representam os “mimos” das faculdades, engordando os cofres destas com meta pré-fixada: 70% de reprovação de cada turma. No fim das contas, os “julgadores” exercem suas vaidades, com arrimo no regimento, muito embora possuam certa insuficiência intelectiva.
Ora, conto-lhes, enfim, uma “fofoca acadêmica”. Numa dessas seleções para professor, depois de uma aula brilhante, profunda, um dos avaliadores sentenciou: nota quatro. Interrogado, ante a surpresa dos demais, o primeiro respondeu: “achei muito chata”. Se não compreendo, pois, não acho que devo estudar mais. Já que tenho poder de decisão, nota quatro. Se o relato é verídico? Como você, eu também preferia que não fosse.
“Emergimos do mar para indagar, Abel.”
* Verso retirado do poema “Recusa”, Drummond in Boitempo II.
Breno S. Amorim, estudante de Direito.
O violão de Dilermando Reis
“Você gosta de ouvir violão? Seu Raulino gostava desse disco. Leve para você, é bom ouvi-lo tomando uma cervejinha”.
Foi com esses cuidados que tio Evandro presenteou-me este belo LP do violonista Dilermando Reis. Logo ele, cercado de tantos Chico Buarque, Caetano Veloso e Nelson Gonçalves, apresentou-me uma discografia desconhecida, ilustrando a capa do vinil “Gotas de Lágrimas” com uma bela mulher em pranto.
Tio, confesso que não estou bebendo aquela “cervejinha” que tanto gosto, cheguei a pouco da faculdade e a madrugada que se rompe pede doses fartas do melhor “amigo engarrafado do homem”, como bem recomendava Vinícius de Moraes com seus “uisquezinhos”.
Embora o ruído da antiga vitrola seja persistente, neste momento, além de um par de ouvidos enfeitiçados com a maestria de cada acorde, estou munido de uma caneta, papel e o entusiasmo de quem acredita na locomotiva da poesia, ainda que os trilhos sejam escorregadios e incertos.
Propositalmente, escolhi uma rapsódia infantil que, aos poucos, cantarola uma calmaria no vão que se abre dentro de mim, como se cada dedilhada do músico pudesse desatar os nós que prendem minhas raras meninices, abrindo, sem pressa, um quintal perdido e uma escrita sustentada de esperanças.
A próxima faixa musical, acertadamente, chama-se “Nossa Ternura”. Cativa-me essa bela valsa, trazendo uma leveza meiga nesta crônica, exigindo-me uma destreza em cada letra que me lanço, como se a poética dependesse de suas asas frágeis para que possa levitar um sonho perfeito.
Do outro lado do disco, há uma valsa chamada de “Eterna Saudade”, com tons mais melancólicos, quase nos arrancando a lona do tempo, como se saltitasse na minha pele o ardor de quem perdeu o equilíbrio no trapézio de suas promessas, de quem se esquiva entre uma estação em ruínas e ainda espera uma carruagem quimérica.
No entanto, é a primeira canção que me comove: “Gotas de Lágrima”. Mesmo com um canteiro de metáforas ao meu lado, já faz horas que tento descrever algo e não consigo, apenas sentindo um embalo inesperado, capaz de derramar o que resta de mim nesta lua de outono que, na ameaça do alvorecer, despede-se como uma rabiola prateada, talvez também emocionada com o orvalho que sai de minha vitrola.
Um brinde ao bom gosto de Seu Raulino. Obrigado pelo presente, tio. Bravo, Dilermando Reis, graças a você sinto-me como Maiakovski, confundindo a ciência da anatomia, pois sou todo coração.
Edmar Conceição é cronista do site: http://www.escritica.com
VENHA CONFERIR O LITERPRAÇA
PETROLINA – Grupo de alunos do Curso de Letras da UPE, realizarão no próximo dia 08 de maio o festival LITERPRAÇA, na Praça 21 de setembro, a partir da 15:h.
No evento haverá declamação de poemas, Exposição de livros, cordéis e poesias, todos disponibilizados para a leitura e consulta pelos presentes durante o evento.
Além disso, haverá também show ao vivo com musicalização de poesias para a plateia. Os organizadores convidam toda cidade para participar desse evento engrandecedor da cultura de Petrolina.
Singela Homenagem do Cidadania Ativa a todos os Trabalhadores desse Brasil Injusto.
“O trabalhador só se sente a vontade no seu tempo de folga, porque o seu trabalho não é voluntário, é imposto, é trabalho forçado.” Karl Marx
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Carlos Drummond de Andrade