Tag Archives: Poesia

Ignota, no entanto brilha

Felina, na desconfiança

Pressentido tudo

No presságio dos pélagos

Em busca de algum signo

Que possa explicar

em breu

em chuva,

narinas e olhos

em fúria

em lâmina, cortando a superfície

para revolver a mina explosiva

abrolhos

Felina, na confiança felina

Sutil e densa

Sempre além

E assim, ela, brilha nela mesma

Quando é tudo

Desde que tudo exploda

Que tudo transcenda

Que tudo seja tudo

Que o bosque seja pássaro

Que a noite seja estrela

Que o rio seja água

Que no paladar a laranja

Lavre a voz adstringente

Lavre a voz luminosa

Lavre a voz na foz no fogo

nos vãos

em pleno dia

buscando a foz

A voz pela voz

Para esplender

Para ferir

Para sangrar.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Não farás perguntas

BrenoÉ provável que queiras um filho. E, então, bobamente feliz, quererás o teu filho. Farás de tudo para que ele tenha no rosto sempre o desenho de um riso largo, não cariado. Dirás, na presença de teu filho, coisas belas, magníficas, inexistentes. Quererás um filho, menino forte e ágil, quererás esse filho bobamente feliz. A ele, quando crescido, não farás perguntas. Ao revés, de todas as interrogações, cuidarás em mantê-lo distante, numa dessas alturas onde nada se escuta. E, então, o teu filho ignorará a possibilidade de fazer pergunta a si próprio, conversando com plantas e bichos – que não questionam. Quererás teu filho sempre em riso descerrado, longe de meninos sem dentes e de pés sujos. Porque teu filho terá a alvura de qualquer coisa celeste. Bobamente feliz, quererás o teu filho. Apartado de livros, de palavras que façam pensar sobre imagens obscuras. Porque quererás teu filho sempre próximo ao céu. E de tudo farás chegar ao teu filho o quinhão do triunfo, a fortuna da vitória exposta em dia de Natal a outros dois imaculados. Carregará a sina de ter de sorrir ao lado de anjos e harpas de glória, o teu filho. E, então, bobamente feliz, darás a teu filho um designativo único, majestático, desses que, ao longe, se distinguem os traços de alguém que ri. É provável que queiras um filho e a ele farás participar o doce de uvas não envenenadas, pisadas por pés etéreos para vinho. Quererás o teu filho bobamente feliz, o desenho de um riso largo, não cariado, e, então, suprimirás todas as perguntas, os silêncios que bosquejam a silhueta de uma interrogação. É provável que queiras um filho.

Por: Breno S. Amorim

Leia mais em: https://esquinasinconciliaveis.wordpress.com/2017/05/21/nao-faras-perguntas/

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HOMEM COMUM

Ferreira-GullarSou um homem comum

de carne e de memória

de osso e esquecimento.

e a vida sopra dentro de mim

pânica

feito a chama de um maçarico

e pode

subitamente

cessar.

Sou como você

feito de coisas lembradas

e esquecidas

rostos e

mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia

em Pastos-Bons

defuntas alegrias flores passarinhos

facho de tarde luminosa

nomes que já nem sei

bandejas bandeiras bananeiras

tudo

misturado

essa lenha perfumada

que se acende

e me faz caminhar

Sou um homem comum

brasileiro, maior, casado, reservista,

e não vejo na vida, amigo,

nenhum sentido, senão

lutarmos juntos por um mundo melhor.

Poeta fui de rápido destino.

Mas a poesia é rara e não comove

nem move o pau-de-arara.

Quero, por isso, falar com você,

de homem para homem,

apoiar-me em você

oferecer-lhe o meu braço

que o tempo é pouco

e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco

e aí estão o Chase Bank,

a IT & T, a Bond and Share,

a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,

e sabe-se lá quantos outros

braços do polvo a nos sugar a vida

e a bolsa

Homem comum, igual

a você,

cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.

A sombra do latifúndio

mancha a paisagem

turva as águas do mar

e a infância nos volta

à boca, amarga,

suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens

comuns

e podemos formar uma muralha

com nossos corpos de sonho e margaridas.

Ferreira Gullar – (Brasília, 1963)

Isto Posto…. Ferreira Gullar: TRADUZIR-SE!

Ferreira-Gullar1Ontem ficou mais pobre o nosso Brasil. Não do vil metal surrupiado à surdina pelos sacripantas do Congresso Nacional, que armam e detonam diariamente “a bomba suja” da miséria, da opressão, da expropriação do fruto do trabalho de homens simples que escavam sucos dolorosos na terra com suas mãos toscas.

Mas, sim, ficou mais pobre da poesia brotada da dor do outro, da poesia feita por quem suporta o mundo, e tão somente traduzida pelo poeta que, ao espantar-se proclama “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo./ Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão”.

Ficamos sim, Brasil, mais pobre de poesia. Principalmente daquela poesia que jamais quis se apartar do mundo. E dos infortúnios da vida aflorava como alento, ao cantar sobre “usinas escuras, em que homens de vida amarga e dura produzem açúcar branco e puro com que adoçamos nosso café todas as manhãs”.

E ademais, uma parte do Brasil também morre com o poeta Ferreira Gullar, porque o próprio sentenciava com exatidão da licença poética “Se morro o universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto se apago a lâmpada: os sapatos – da – ásia, as camisas e guerras na cadeira, o paletó -dos – andes, bilhões de quatrilhões de seres e de sóis morrem comigo”.

Assim, o país que dia a dia fica menor e mais triste pela indecisão em querer traduzir-se, amarga mais uma perda inestimável, de uma parte sua que era só vertigem, mas se traduzia na linguagem da poesia, a fim de fazer menos ásperas as imprevisibilidades da vida que nos espanta.

Isto posto, “A Arte existe, PORQUE a vida não Basta!”

Por: Adão Lima de Souza

Morre Ferreira Gullar, aos 86 anos

Ferreira GullarO escritor, poeta e teatrólogo Ferreira Gullar morreu na manhã deste domingo (4), no Rio de Janeiro, aos 86 anos. A causa da morte ainda não foi divulgada. Ele estava internado no Hospital Copa D’Or, na Zona Sul do Rio.

Gullar era o quarto dos 11 filhos Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart. Ele nasceu em São Luís (MA), em 10 de setembro de 1930, com o nome de José Ribamar Ferreira.

O sobrenome materno adaptado ao português foi adotado somente pelo escritor aos 18 anos, quando começou a publicar poesias. Ativo, Gullar se afiliou ao Partido Comunista após a instauração da ditadura militar, em 1964. Neste período, se exilou em Buenos Aires, onde escreveu “Poema sujo”, uma das suas principais obras.

O escritor voltou ao Brasil somente em 1977 sendo preso e torturado pelo Departamento de Ordem Política e Social – DOPS. Gullar foi libertado dias depois, após forte pressão internacional.

Em 2002, foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura. A indicação foi endossada por nove especialistas de três países: Brasil, Portugal e Estados Unidos.

Um homem

Breno“A hora de partir soou para mim.” (Mallarmé, Stéphane. ‘Ele deixa a câmara e se perde nas escadas’)

A casa semidespovoada. Uma rede, geladeira pequena, escrivaninha e cadeira. Alguns livros espalhados pelo piso. O grande silêncio de quem divide a própria solidão consigo. Não há espelho. Há muito não vê o próprio rosto. Tateia os traços faciais no afã de reconhecer o rapaz de tempos outros, longínquos.

*

Como nasce um personagem? De que ventre, com qual ato de amor ou rompante? Decerto, não surge duma caneta, folha esbranquiçada, ociosidade. Todo personagem é táctil, carrega as dores cotidianas, tem sangue. Grita, ama, desama, mata, morre. De onde brota esse desdobramento? De um desejo sufocado, duma inaptidão? Dizemos “tal personagem sofre”, porque já não podemos desencobrir nossa ferida? E, no entanto, não é de todo desconhecido, uma vez parido, ganha vida própria, reclama livre-arbítrio. Apontamos dado caminho; ele, ao revés, desdenha do alvitre, segue por outra vereda, abisma-se por entre ruas desconhecidas. Que é um personagem?

Algumas tribos australianas têm grande cuidado com o nome. Se tal for semelhante a uma palavra e o seu dono morrer, ela acabará supressa, substituída por outra. Necessário, está visto, precaução. Com o designativo particular, afugenta-se o algoz, inscreve-se no músculo bombeante de alguma moça, assina-se a obra interminável. Joaquim, ei-lo.

*

“Um ser humano é um ser humano”, lê, força na voz, caminhando dum lado para o outro do parco espaço. Repete. Torna a repetir: “Um ser humano é um ser humano”.

Todo homem tende a tornar-se misantrópico. Quem não já lamentara a desdita de não ter nascido Raskólnikov? Com que medo aquele senhor refreara a ânsia do rapaz de outrora, que pensava ser Zaratustra? Ir ao pináculo, a cidade estrepitosa deixada para trás, encontrar consigo próprio, poder gritar sem o auxílio da almofada, longe dos homens, nunca mais a palavra…

Por isso, esta casa, esta rede, esta geladeira miúda, estes livros espalhados, a escrivaninha pequena, a cadeira desgastada. Por isso, a casa semidespovoada, o silêncio inarredável… Por isso, Joaquim, a sua solidão, o homem que é homem sem atavios, penduricalhos.

*

O que caracteriza a fuga? Quem foge, foge de quê? Deserta quem parte, não quem fica? A palavra ativa uma óptica. Diz-se e fica sendo – apenas para quem fala. Do outro lado, talvez não haja sequer ouvido atento. Aquele que pronuncia pensa ter mudado o mundo, a ordem das coisas, nomeado algum fragmento do inapreensível. A ele, no entanto, a indiferença de quem já não mais escuta, de quem, também, pode falar e que, por tal, não compreende. Cada vocábulo é uma sentença – para a boca que o enuncia. Para o destinatário, confusão, excrescência lançada num desvão.

Joaquim repassa, na memória, os muitos sons emitidos em sua direção. Enquanto caminha, vozes resolutas intentam mostrá-lo o disparate de seus passos, a impertinência duma cabeça repleta de quimera. “Pudera, essa ociosidade acabaria em tolice!”, diziam os que lhe queriam bem. “Largar tudo, sequer um olho a esguelar-se para trás… loucura, ingratidão.”

Os que nos querem bem não nos querem bem. No velório central, assassinos choram a morte de assassínios seus. As mãos sempre ao peito, a cabeça baixa, a fala mansa, sempre solícita. Os que nos querem bem nos matam com a vida imposta, o beco sem saída. Joaquim, desgastado pela ladainha diurnal, não desconhece. Os mortos, estes que vivem, não descansam. Querem levar-nos aos seus túmulos, servir-nos chá, falar do tempo, dos gols da rodada. Os mortos teimam, estão nem aí para as flores dos vivos. Buscam desalumiar a cidade por completo, as praças, o fulgor das esquinas. Os mortos não morrem.

*

Apenas Adélia era afago. Ela, unicamente, a possibilidade do inimaginável. As conversas de fim de tarde, as mãos de Joaquim nas coxas de Adélia, os beijos chamejantes, as pausas para o suspiro. Ais.

Mas Adélia partira. Também ela persuadida a viver a vida protocolar, exangue, a caminhar por entre as mesmas ruas de sempre – a previsibilidade dos dias. Adélia tinha preço, vendera-se barato. Joaquim decepcionado, sua fagulha única tornada em nada, a silhueta que se desfazia – pariforme.

Com que punhado de dor pode um homem aprender a ver, a tornar a si? Quem foge, Joaquim? Tu ou os teus, com as suas cartilhas de vida?

Estamos sempre sós. Duchamp desentende-se com os cubistas, segue sozinho, engendra noiva despida por celibatários. Na parede, Joaquim observa a reprodução da obra, a confusão dos traços. Tem de ser só, compreende, contar apenas consigo próprio.

Lembra o café – fervendo.

*

Falta-lhe vocação para santidade. Não quer ver do alto, como quem se apercebe acima de todo o resto. Sabe-se parte do monturo, conhece as flores desabrochadas na planície.

Tampouco olvida a lição freudiana, não representa o tal eremita. A realidade, esta combinação de falas e percepções, não é sua inimiga, o lugar de onde promana todo o seu sofrimento. Não. Se rompera com alguns laços, nada houvera com o que chamamos realidade. Agora mesmo, essa criança que, sentada ao chão, come restos de comida, achados no lixo, é-lhe táctil, sensível. Teus três recursos para amainar o peso da vida, Freud, de nada servem a Joaquim.

Não o envolve a ciranda da felicidade. Pelas calçadas, a correria de quem quer ser feliz – e paga por isso. Acordam cedo, o beijo no filho deixado na escola, pontual no trabalho. Só bem tarde regressar ao lar, reencontrar a criança, beijá-la novamente e perguntar pela tarefa do dia. Aos sábados e domingos, a felicidade, o riso de quem se sente em dia com a vida.

*

A cidade é dual: desencontro e colisão.

Cartazes na parede informam a Joaquim sobre a sucessão dos dias, fazem-lhe participar do entusiasmo dos citadinos despersonalizados. Espetáculo de teatro, Companhia Andante. Show da banda Rockstar. Aprenda a cozinhar com a sra. Rosa. Aprenda inglês em poucos meses. Madame tudo vê traz seu amor de volta – com vida. Culto de jovens às 18h30min. Dentre todos, um arranca-lhe riso excessivo: Vença você também: novas turmas em maio.

Observa. Na praça em frente ao fórum, senta num banco envolto por uma quaresmeira. Lindas mulheres para lá e para cá, seus saltos altos, os cabelos serpenteados, seus perfumes adocicados.

Entre um e outro passante, a azáfama. Os pedestres imitando os carros, rivalizando com eles. Joaquim repara num grupo de senhores. Todos engravatados, pastas na mão, com algum ar de satisfação – incompreensiva. Diverte-se. Imagine, fosse aderir ao desejo dos familiares e amigos, bem poderia estar ali, em meio aqueles senhores. Também envaidecido, o peito a inflar-se? Tenta imaginar a vida daqueles senhores, os seus diálogos. As lições de linguística na mente, acredita: “Para eles, ainda o lado ingênuo da tradição gramatical do ocidente, ainda a tolice de crer numa relação de essência, a palavra cadeira desde sempre identificada no objeto para assento”.

Ao seu lado, senta uma colegial. Cabelos negros, olhos esverdeados, face lívida. Retira da bolsa um livro e um estojo de óculos. Joaquim, de soslaio, tenta alcançar o título gravado na brochura. Os conjurados, Jorge Luis Borges.

– Dê-me licença, quantos anos tem a senhorita?

Tinha 17, último ano de escola. Joaquim lembrou da leitura de Kundera: cá, a percentagem de inesperado.

– O nosso triste costume de ser alguém…

A mocinha sorriu, timidamente. Era do próprio Borges, quarto poema do livro. Tríade.

– Também hoje é dia do patíbulo, da coragem e do machado.

Despede-se.

Breno S. Amorim

Sobre que alicerce ergues a tua casa?

”(…) Até sermos acordados por vozes humanas. E nos
[afogarmos.” 
(Eliot, T. S. ‘A canção de amor de J. Alfred Prufrock’ )

BrenoNo espaço luminoso da biblioteca, Cecília reorganiza os livros na estante. Quase fim de expediente. Raios cróceos invadem a sala e pousam sobre as estantes. Na seção de artes, devolve o livro sobre Duchamp. Em seus dedos, a sujidade das brochuras. A poeira do tempo.

Cotidiano. Cecília é erguida, às seis horas, pelo peso do hábito. Peso entorpecedor. Susto matinal, o despertador que toca. A alvura do teto – o mesmo de todos os dias. Banheiro. Cozinha. Chave. Porta. Um aceno para o silêncio da casa despovoada. Tráfego. Semáforos. Buzina. A estridência dos dias. Ao menos um lenitivo, o som do carro a tocar. Sempre o mesmo itinerário, as árvores invariáveis, os berros diurnais dos citadinos. A preocupação com o ponto a bater, hora certa, infranqueável.

Não a confrange, porém, o trabalho. Lá, onde o hábito perde a força. Desde criança, Cecília se deleita em meio aos livros. Cercar-se deles, por tal, representa pleno regozijo. Decepcionara a família, os seus planos grandiloquentes, seus projetos estatuídos sem a participação da própria incumbida. Contrafeitos, os familiares julgavam-na cruel, pois se já houvera aviso renitente: serás grande, doutora. Bibliotecaria, ora, que disparate!

A luminosidade nunca lhe chega cedo. Necessário enfrentar o desabrochar do dia, a sua repetição. De sorte que o dia sempre se inicia ante a escrivaninha, o movimento dos frequentadores, o arrastar de cadeiras. O seu paraíso – onde as pessoas sabem da possibilidade do sussurro, onde predomina o silêncio sem a necessidade do despovoamento. Os jogos de olhares, as intenções demonstradas sem ruído, os sorrisos que contêm grandes narrativas.

Dentre as inúmeras pessoas que vão até o seu balcão, sempre há as que, de algum modo, encontram espaço nas paredes de sua memória. Não precisa muito. Um mão que lhe dirija a carteirinha e um livro cuja admiração lhe é incontestável – apenas. Assim, conhecera Arthur. Passos comedidos, cabeça descaída, entregara à Cecília uma brochura pesada. Largo sorriso, o dela. Cinéfila, com que euforia não recebera Hitchcock/Truffaut: entrevistas! A fila a esperar, enquanto Cecília e Arthur falavam a propósito de cinema, da Nouvelle Vague, do Cinema Novo, de Glauber Rocha. Um dia inaugural, menos para Arthur do que para a bibliotecária. E, no entanto, ei-lo a prometer o retorno, a conversa posterior à leitura.

Retornara. Não poucas vezes. Cecília ainda mais aficionada pelo trabalho. As reminiscências eram suficientes para clarejar o dia, logo cedo. Mesmo o despertador não alcançava o susto de outrora. Da alvura do teto, fizera céu desanuviado, pintara sol com lápis de cor imaginativo. O amor. Evitava racionalizar. Conjecturar sobre essas questões do peito queria parecer-lhe bruteza, estupidez. Entregue, o alarde das buzinas chegava aos seus ouvidos como música – Bach, quem sabe?

Tudo é pretexto, Arthur recordava o que dissera seu amigo. Buscava coragem para ir ter com Cecília. Os livros já não se lhe apresentavam como desculpa suficiente. Impossível ler um livro por dia. Tanto mais impraticável apagar, de sua memória, o desenho do rosto de Cecília, a silhueta de seu corpo. Caminhava pela avenida principal da cidade. Pelas calçadas, mendigos desdiziam as mentiras espalhadas pelos outdoors, pelas falas do prefeito. Os discursos cândidos não lhes enchiam a barriga. Distraidamente, Arthur lançara uma moeda. Também ele queria esconder o próprio monturo? Um ato abstraído e um contentamento ao peito? Arthur, o arquétipo de citadino.

Como clarão que irrompe inesperadamente, enxergou, na parede, um cartaz divulgando a exibição de clássicos do cinema francês. Olhou para o céu, descrente, e agradeceu. O pretexto.

Tem pressa. Ultrapassa os passantes, esbarra em barracas. Segue. Pretexta:

– Cecília, um convite… – diz, ofegante.

– Boa tarde! – ri um riso gostoso.

– Vi, há pouco, que exibirão Jules et Jim. Será num tal cinema alternativo, até então desconhecido.

– Truffaut? – e ri novamente. Já assisti.

– Sim, supunha. Mas sempre é bom retornar aos clássicos. Para os cinéfilos, então…

– Tudo bem! – o riso ainda na boca.

Foram. Conquanto assistido pelos dois, o filme se lhes parecera inédito, inexplorado. Neste dia, Cecília dormiu tarde. Arthur lhe deixou em casa. Ao se despedirem, ele não suportou a covardia do abraço que podia não ser. Enlace. Cecília se revirava na cama, o cheiro dele invadindo o quarto. Seis horas. Toca o alarme e ela levanta para continuar o sonho – de olhos abertos.

Biblioteca. Arthur some por três longos dias. Impaciente, Cecília deixa de notar os títulos das brochuras que passam para empréstimo. Vê, unicamente, a cor das capas – neste instante, todas pariformes. Fim de expediente. Agora, a luminosidade faz-lhe lembrar do astigmatismo. Maldize-na. Do rádio, a voz de Ângela castiga: ‘Sua presença destrói todos meus desenganos/ Minha ausência causou-lhe uma série de danos’. Dado o seu queixume, invertia o último verso. Quão longe, aquela casa, guarida de medo e súplicas – contidas.

Arthur aparecera, como tudo que vive. Cecília refrea a objeção, quase a pular da boca. Ora, a expectação é sempre de quem ousa engendrá-la, torná-la táctil. Cecília sabia, pois que silenciara. Os cumprimentos corriqueiros, as mesmas perguntas iniciais e, novamente, um convite. Arthur queria conversar. Havia algo a ser dito.

‘És casado, Arthur? Por que me dizes isto?’ – sufocava a própria dor no peito. ‘Por que seria importante?’, castigava-se ainda uma vez. O sempre comedido Arthur, desconcertara-se. Seu corpo nunca coube em lugar algum. Bancário, protocolar, a vida nunca foi algo que lhe importara deveras. Sempre a calcular, mensurando o que se pode perder e o que se pode ganhar. Mas tem hora que falta pilha na calculadora, os números se embaralham e, ora, resta o coração. Num rompante, confia à Cecília seus desejos e sentimentos. Lembra Guido – conversa de cinéfilos – e reproduz o diálogo, por três vezes, com Dora. Cecília ri, embaraçada. As carnes se conversam.

Ei-la mais uma vez sorridente. Agora, de quando em quando, ao sair para o trabalho, acena não mais para o silêncio duma casa desértica. Uma outra mão lhe devolve o aceno, ao dizer-lhe, prazenteiro, ‘até mais, Dora’.

Porque morada de medo, Arthur, ante o encontro diário com a própria mulher, racionaliza o que sente por Cecília. Conversa com Miguel, seu amigo, e tem de escutar a dureza de quem dá eco ao coração.

– Arthur, estas coisas são assaz simples. Cecília é única, uma chance irrepetível. Com ela, todas as cidades aparentam Brasília. Que te importa o casamento de então, se jungidos pelo medo da vida, pelo conforto da segurança? Não te pareces inabilidade para o amor? Casaste, é verdade. Mas apenas uniram duas fortunas. Com Cecília, unirão duas indigências. A vida sem excrescências, acredite-me.

Impraticável o despejo de verbos ante ser empedernido. A pilha fraca da calculadora logo é substituída. Arthur vive numericamente. Relaciona-se como quem computa os lucros que poderiam ter sido, suas horas em dólar.

Miguel insiste. Lembra a leitura dum filósofo francês e assevera, procurando eloquência na voz:

– Surgindo-nos o amor, Arthur, necessário coragem. É preciso transpor os pontos de impossibilidade. Todos eles. Se te recusas à amar, terás que esperar por longos anos, até que apareça outro amor  com a mesma força. Não, tolice tua. Não és capaz de esperar, não. Tua incapacidade forja aptidão inalcançável.

Irredutível, de nada serve o alvitre do amigo. Vai ao encontro de Cecília, quer encerrar, de uma vez por todas, esta estória despropositada. Aferira, assustara-se com a possibilidade do não-lucro – ‘mas se minha mulher me tem tanto amor’. Correr o risco – recordava Miguel: ‘Amor é risco, Arthur!’ – de ser menos amado, ter de enfrentar a insegurança, não tinha mais idade para estes disparates. 32 anos, veja lá! Mulher já em casa, guardada, direito adquirido. Que lhe importa o amor que não tem? Tudo é questão de costume – a insustentável leveza dos dias! Mesmo a boca de Cecília não vale a aventura de procurar viver a terra. Batia seu dedo nos botões numéricos da calculadora.

Cecília sufoca um choro. Conserva-se silente por algum tempo. Arthur quer ouvi-la, o silêncio lhe aturdindo.

– Arthur, compreendo-te. Cheguei em tua vida e, como no conto de Cortázar, fui tomando os teus cômodos. Quis te livrar da casa, teu abrigo aquecido. Pensei em te dar minha vida como quem, num rompante, lança mão de um convite para a vida mesma, em estado bruto. Tu, fustigado pelo frio que faz do lado de fora, foi reconstruindo o teu lar. Que hei de te dizer, Arthur? Reergueu a tua casa, bem se vê. Sabes, porém, que o alicerce dela é o medo?

Calado, a tudo escuta sem que simule uma mínima objeção. Escuta aquelas palavras e recorda outras, ditas por Miguel:

– Tens de perder este teu medo de ver cessado o medo, Arthur. Como explicar a tua fuga? Preferes permanecer em braços lânguidos à deixar-te levar ao encontro duma boca que te incute coragem?

Cecília, ainda aceso o peito, caminha por vielas outras, várias. Quer fazer, do seu amor, outra coisa que não espera e cansaço. Recorda Arthur, sua hesitação incontida – mesmo no ato do não -, suas conjecturas imperdoáveis. Miudezas. Rememora Borges, aquela brochura vermelha. Cada homem é dois? O desperto e o que dorme? Arthur nunca acordará – a injustificável distração ante a vida. Esta modalidade soberba do morrer.

Olha ao derredor. A confusão das ruas, as casas – abrigos de medo. Quantos Arthur encondidos pela cidade? Seus olhos transpõe as paredes. Nota uma sala, muito bem ornada. Num canto, um homem lê o jornal do dia, a xícara no criado-mudo. Noutro, uma mulher usa a ponta do dedo para menear o tablet. Grande silêncio. Entre os dois, Cecília entrevê o medo, o conforto, o torpor – essas vidas asfixiadas.

Outra vez, Arthur, este fantasma, penetra-lhe a cabeça. Névoa. Com seu riso irônico, Cecília faz parar um transeunte:

– Não sabes?

– O quê? – devolve, contrariado.

– Arthur morreu de segurança. Sufocado.

E ri o riso dos vivos.

Breno S. Amorim

Dia da Poesia

poesiaPETROLINA – Dia da Poesia, comemorado em todo país na próxima segunda-feira (14 de março), em homenagem ao poeta Castro Alves – que nasceu nesta data no ano de 1847, será lembrado em Petrolina durante toda esta semana com muitos versos e músicas.

A programação começa às 7h30, na segunda-feira (14), no pátio do Colégio Plenus – Orla, com a exibição de um vídeo, encenações teatrais e recital poético.

De acordo com a Diretora Pedagógica do colégio, Sílvia Santos, que vai abrir os trabalhos recitando poetas brasileiros, a programação prossegue até a sexta-feira (18) com a participação de alunos e professores em recital poético – musical.

Durante toda a semana – as atividades da manhã começam às 7h30 e as da tarde às 13h30, os alunos também vão vivenciar o projeto Viva a Leitura, através de pesquisas, debates e apresentação de trabalhos literários.

No encerramento da Semana da Poesia (sexta-feira), o músico Nilton Freittas faz uma apresentação especial, em homenagem aos grandes poetas/músicos e também aos alunos.

DIA DA MULHER: Aviso da Lua que Menstrua

 O blog Cidadania Ativa, por meio destes versos de autoria da atriz e poetisa Elisa Lucinda, homenageia todas as mulheres neste que é seu dia. Acrescenta ainda que estamos filiados a todas as ações que visem combater  a violência contra a mulher, as atitudes discriminatórias, sejam por diferenças de gênero ou fruto da perversidade dos que idealizam subterfúgios para sustentarem condições de desigualdade inaceitáveis num mundo construído pela união entre homens e mulheres em busca da felicidade.

Por fim, informa que o cidadania Ativa está a disposição das mulheres que busquem espaço para divulgarem sua ideias.

Elisa Lucinda

Moço, cuidado com ela!

Há que se ter cautela com esta gente que menstrua…

Imagine uma cachoeira às avessas:

cada ato que faz, o corpo confessa.

Cuidado, moço

às vezes parece erva, parece hera

cuidado com essa gente que gera

essa gente que se metamorfoseia

metade legível, metade sereia

Barriga cresce, explode humanidades

e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar

mas é outro lugar, aí é que está:

cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita…

Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente

que vai cair no mesmo planeta panela.

Cuidado com cada letra que manda pra ela!

Tá acostumada a viver por dentro,

transforma fato em elemento

a tudo refoga, ferve, frita

ainda sangra tudo no próximo mês.

Cuidado moço, quando cê pensa que escapou

é que chegou a sua vez!

Porque sou muito sua amiga

é que tô falando na “vera”

conheço cada uma, além de ser uma delas.

Você que saiu da fresta dela

delicada força quando voltar a ela.

Não vá sem ser convidado

ou sem os devidos cortejos…

Às vezes pela ponte de um beijo

já se alcança a “cidade secreta”

a Atlântida perdida.

Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.

Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas

cai na condição de ser displicente

diante da própria serpente.

Ela é uma cobra de avental.

Não despreze a meditação doméstica.

É da poeira do cotidiano

que a mulher extrai filosofia

cozinhando, costurando

e você chega com a mão no bolso

julgando a arte do almoço: Eca!…

Você que não sabe onde está sua cueca?

Ah, meu cão desejado

tão preocupado em rosnar, ladrar e latir

então esquece de morder devagar

esquece de saber curtir, dividir.

E aí quando quer agredir

chama de vaca e galinha.

São duas dignas vizinhas do mundo daqui!

O que você tem pra falar de vaca?

O que você tem eu vou dizer e não se queixe:

VACA é sua mãe. De leite.

Vaca e galinha…

ora, não ofende. Enaltece, elogia:

comparando rainha com rainha

óvulo, ovo e leite

pensando que está agredindo

que tá falando palavrão imundo.

Tá, não, homem.

Tá citando o princípio do mundo!

Por: Elisa Lucinda

Ardências indolores

Breno“E tu, por que tornar da dor ao meio?”
(Alighieri, Dante. A divina comédia)

Ao longe, avisto um homem. Talvez não um homem espesso, solidamente homem. Miragem é que não há de ser. No deserto, vê-se, imaginativamente, poças d’água. Faz calor. Não tremeluz a minha vista, conquanto. Um copo, violentamente abastecido, impossibilita o embaciamento do que se me apresenta. O homem, ei-lo.

Neste instante, ele vaga pelos bares. Escolhe um e entra. Há barulho, algazarra, arrastar de cadeiras. Não obstante, posso ouvi-lo: fala sobre os livros que leu. Cita um autor, página 231, parágrafo terceiro. De chofre. É ele o homem que, durante o dia, encafua-se atrás de uma mesa, refrigério absoluto, a imprimir ordens via telefone. Posso reconhecê-lo, protocolar, quando do ocaso do sol – e aos finais de semana -, vai ao bar e, entre um gole e outro de cerveja, derrama-se em canto: E no escritório, em que eu trabalho, e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor… Artifícios enevoados, devaneios que não resistem ao esvaecer do álcool. O homem cujos pés jamais percorreram um quarteirão, ante o frenesi de ouvidos atentos, conta causos, malandaças, desventuras… Extraídos de livros múltiplos, assina-lhes com nome próprio. Delira com delírios alheios.

Há momentos em que homem e personagem confundem-se. Deliberadamente, por suposto. Durante o dia, o homem é sempre pragmático, corriqueiro, calculadora itinerante, preocupado com outros dias – inexistentes. À noite, Gregor Samsa o inveja a metamorfose: és hora de perfumaria, desprendimento manufaturado. Há homens que são muitos. O poeta Manoel de Barros dizia-se muitas pessoas destroçadas. Nosso personagem, porém: dois em um, por ocasião. Mesmo o conforto sufoca e, sem abdicar de tal, ele engendra ardências que não tocam a pele. Sofre, confortavelmente. E tudo é dor e beleza, aos finais de semana.

Breno S. Amorim