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HOMEM COMUM
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
Ferreira Gullar – (Brasília, 1963)
Isto Posto…. Ferreira Gullar: TRADUZIR-SE!
Ontem ficou mais pobre o nosso Brasil. Não do vil metal surrupiado à surdina pelos sacripantas do Congresso Nacional, que armam e detonam diariamente “a bomba suja” da miséria, da opressão, da expropriação do fruto do trabalho de homens simples que escavam sucos dolorosos na terra com suas mãos toscas.
Mas, sim, ficou mais pobre da poesia brotada da dor do outro, da poesia feita por quem suporta o mundo, e tão somente traduzida pelo poeta que, ao espantar-se proclama “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo./ Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão”.
Ficamos sim, Brasil, mais pobre de poesia. Principalmente daquela poesia que jamais quis se apartar do mundo. E dos infortúnios da vida aflorava como alento, ao cantar sobre “usinas escuras, em que homens de vida amarga e dura produzem açúcar branco e puro com que adoçamos nosso café todas as manhãs”.
E ademais, uma parte do Brasil também morre com o poeta Ferreira Gullar, porque o próprio sentenciava com exatidão da licença poética “Se morro o universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto se apago a lâmpada: os sapatos – da – ásia, as camisas e guerras na cadeira, o paletó -dos – andes, bilhões de quatrilhões de seres e de sóis morrem comigo”.
Assim, o país que dia a dia fica menor e mais triste pela indecisão em querer traduzir-se, amarga mais uma perda inestimável, de uma parte sua que era só vertigem, mas se traduzia na linguagem da poesia, a fim de fazer menos ásperas as imprevisibilidades da vida que nos espanta.
Isto posto, “A Arte existe, PORQUE a vida não Basta!”
Por: Adão Lima de Souza
Curso de corte e costura: kitsch sob medida
‘’Por querer trazer-te, filho,/ para a entranha do sorvete,/ para longe do real,/ para as páginas do azul,/ para as cores da linguagem,/ para os lábios do silêncio,// fiz-me pária dos apátridas,/ fiz-me algoz dos sem-vozes,/ fiz-me o ponto do final./ Fui-me.’’ (Nauro Machado, Poema)
Cioran, filósofo romeno, ao esboçar traços sobre a genealogia do fanatismo, diz-nos que a necessidade que o homem tem de mitologia triunfa sobre a evidência e o ridículo. De imediato, tal se nos afigura bastante pertinente a este bosquejo de ensaio.
Há sempre um risco em falar do próprio tempo. Os que nos cercam, em polvorosa, veem a nossa quietude como disparate. Todos correndo e vocês – dois ou três – aí sentados, buscando palavras, revirando sintaxe? Não notaram que estamos todos, exceto vocês, salvando o mundo? Assim nos interrogam, esses novos templários.
Uma palavra: kitsch.
O silêncio lacera. Acutila a (falsa) harmonia que o estrépito nos presenteia, obriga-nos ao peso da clareza a propósito de nós mesmos. À leveza, no entanto, oratórios e templos. Tão mais aprazíveis – este, o imperativo – as alturas, os pés distantes do chão, as feridas longe do sal da terra. E tudo isso com barulho, estardalhaço, balbúrdia: anulados pela fala. E tudo isso com arrogância, falso Absoluto, erguendo um templo por dia.
Uma música: Kitsch Metropolitanus.
Deliberadamente, abdicamos, neste instante, da crítica com viés artística, engendrada pelo Belchior. Importa-nos relacioná-la ao contexto (reiterado) e às observações de Kundera, precisamente as contidas em A insustentável leveza do ser.
O kitsch é um ideal estético. Consoante Kundera, há um acordo categórico com o ser, o qual exsurge para negar a merda, incutindo-nos mesmo que ela inexiste. Bem por isso, o kitsch exclui de seu horizonte tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável. Os grupos, mais do que ninguém, sabem de tal. Não só. Na verdade, aproveitam este instrumento em busca de visibilidade, prepotência etc. etc. Ato contínuo, possibilitam o psitacismo, provocam a repetição inconsciente – e triunfam. (Ora, sem psitacismo não há grupo.)
Este ideal estético, esclarece Kundera, ‘não se interessa pelo insólito, ele fala em imagem-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor’. Em sequência, orienta, reduz todas as possibilidades a apenas uma, os caminhos não mais se desdobram: vereda única. ‘O kitsch’, diz-nos o autor, ‘faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças correndo no gramado!’.
Não obstante, os que integram os grupos, pelo gosto do auto-engano, preferem falar em autonomia, autenticidade – justo eles, que não as conhecem.
Cá, parece-nos acertado evocar (já era hora!) a composição do Belchior. ‘Que tal usar brilhantina?/ No país da vaselina’, pergunta o poeta. E calha muito bem aqui. Vaselina, ora, acabou se tornando gíria para designar indivíduo hábil no trato, que acomoda muitíssimo bem suas ideias aos interesses do momento. Algo parecido ao que disse Groucho Marx, comediante norte-americano: ‘Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros’. Mas não é tudo. Além da vaselina, o adepto do kitsch metropolitanus necessita pavonear-se, evitar o olvido dos holofotes.
Imediatamente, entoa:
‘Que gente fina! gentinha…
Rainha em puxar tapete
Não posso entrar numa sala
Que eles vêm de cassetete
Kitsch metropolitanus
Essa moçada promete
Garotos clones mutantes
Com que gastar meu confete?’
Cá, a faceta totalitária do kitsch. Se eles vêm de cassetete, Belchior, tal se deve à possibilidade de ameaça. Tudo o que aterroriza o kitsch é banido da vida. Os grupos, distinguindo apenas um caminho, o da Verdade Suprema e inquestionável, afugentam qualquer discordância. Ora, já aqui se percebe, todo grupo, orientado pelo kitsch, não perdoa a individualidade de cada qual, extermina a liberdade particular, em nome de um todo que ele próprio não crê absolutamente. Falam em liberdade plena e, em passo contrário, edificam a figura do líder, boca que enunciará os desejos de todos (?). Ato contínuo, fazem do interesse particular (aprenderam com Ulpiano!) algo supostamente geral, homogêneo.
O kitsch, amigo Belchior, contorna imagem de látego.
De resto (o desfecho é sempre contumaz), importa-nos dizer que, ‘nenhum de nós é sobre-humano’, afirma Kundera, ‘a ponto de poder escapar completamente ao kitsch’. Necessário, ainda assim, conservarmos, em nós, o homem que interroga e não aceita facilmente o dito e repisado, verdades arranjadas às pressas. Este homem, afinal, por não abandonar incerteza e dúvida, é o único adversário do kitsch totalitário.
Breno S. Amorim
Singela Homenagem do Cidadania Ativa a todos os Trabalhadores desse Brasil Injusto.
“O trabalhador só se sente a vontade no seu tempo de folga, porque o seu trabalho não é voluntário, é imposto, é trabalho forçado.” Karl Marx
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Carlos Drummond de Andrade