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SOBRE O MÉTODO DE PAULO FREIRE
“A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”
Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel.
Para Paulo Freire, não há como apartar o processo de aprendizagem e de alfabetização da crítica. A apreensão das palavras não se dá no vácuo, fora da necessária contextualização. O ato ler, quando adstrito à neutralidade axiológica, é alienante. Já a leitura, feita no entrecruzar da palavra e do mundo, envolve a apreensão crítica da realidade.
Se Husserl propunha uma variação imaginativa entendida como a imaginação de um determinado objeto de estudo em todos os contextos possíveis para apreensão de sua essência, Paulo Freire, por um processo metonímico, buscava por inserir a palavra na contiguidade político-social, articulando o processo de alfabetização no contexto prático do aprendiz, alargando o horizonte até a percepção das coordenadas político-sociais que caracterizam uma formação social.
Entendendo a relação dialética entre palavra e mundo, buscava superar a forma alienante de alfabetização em que as palavras são emanadas de contextos abstratos, desconectados da realidade em que o aprendiz está inserido, esvaziando-se o ato de ler da potência política criadora que lhe é constitutiva.
Desde Jakobson, a linguagem tem dois eixos: 1) o metafórico -da similitude- e o metonímico- da contiguidade.[1] É próprio da análise crítica enfatizar não o processo metafórico, mas o metonímico, ou seja, as relações topológicas de vizinhança, realizando-se um processo contrário à fetichização, desvelando-se, no cotidiano, os elementos críticos da realidade. Ao alfabetizar um pedreiro, escolhendo-se a palavra ‘tijolo’, todos os elementos da produção do objeto até as relações de produção são compreendidas a partir da palavra. Aí já se desvela que alfabetizar é sim um ato político. Toda a experiência do aprendiz é convocada, pronunciada de forma a expressar-se numa forma de conhecimento, numa apreensão pela palavra do que em vivência está em outro nível de aprendizado. Um saber, para usar o termo de Sartre, oriundo do cogito pré-reflexivo. No ato de ler, dentro da perspectiva crítica, as pré-estruturas de apreensão pré-temática do mundo são trazidas à tona e mobilizadas para a crítica.
Karl Marx, quando analisa o fetiche da mercadoria, quer mostrar que um objeto, ao ser apreendido fora das coordenadas que lhe deram ensejo, produz efeitos alienantes e manifestos numa verdadeira fantasmagoria objetiva de forma que as relações de produção são visualizadas como relação entre duas coisas inanimadas e a própria relação social é fantasiada objetivamente como relação entre coisas. A alienação, por mais que distancie os seres sociais de sua realidade, integra a própria realidade, constituindo uma objetividade fantasmagórica. Por isso, a importância do trabalho crítico para, desfazendo a fantasia ideológica, revele o real.
A crítica, em Kant, envolve a análise das condições de possibilidade do conhecimento. Em Marx, significa, inicialmente, remontar todo o processo social às condições sócio-históricas que lhe engendraram. Nesse sentido, o livro “A Miséria da Filosofia” é exemplar, pois, critica o procedimento de Proudhon de reduzir um modo de produção e sua forma complexa a dois sujeitos abstratos, a saber: o produtor e o consumidor. Proudhon analisa a produção, olvidando as condições históricas que a engendraram. Esquece, pois, a produção histórica do modo de produção.
A ideologia significa justamente essa ilusão objetivamente explicável. Mesmo sendo ilusão, contém elementos da realidade a que alude e, nesse aludir, traz os rastros das condições de sua própria explicação. Nisso, a análise crítica, ao fazer o mergulho nas condições do entorno da ilusão ideológica, revela a estrutura mesma do mundo. Nesse contexto, o método de Paulo Freire é de natureza eminentemente crítica. No superar a visão mágica da palavra, revelando-se as relações de contiguidade social no ato de alfabetizar, acolhe a pronúncia do aprendiz, revelando-lhe o saber que já detinha em outro nível. O aprendiz, já sabendo, ao entrar no universo da palavra, politiza-se, descobre as relações de poder que engendra sua condição, articula o mundo de forma a superar o fatalismo que quer fazer da vida um lugar de resignação.
A premissa básica de Paulo Freire, na linha de Gramsci, é que todo cidadão é filósofo, seja porque, ao viver em sociedade, incorpora um conjunto de representações, seja pelo aprendizado da linguagem, a qual adensa sempre uma visão de mundo: a linguagem é um sistema modelizante. Partindo dessa premissa, rompe com a visão aristocrática para o qual o conhecimento é uma relação hierárquica em que o aluno de forma passiva recebe as luzes do sábio entronizado. Parte, pois, da igualdade das inteligências e da necessidade de romper as distâncias entre o intelectual e o povo.
O ódio a Paulo Freire se deve à premissa teórica que, partindo da relação dialógico-crítica, agasalha uma viva paixão pela igualdade. No ato performático de apostar na igualdade das inteligências se produz efeitos democratizantes, desvelando-se que o ato de comunicação, uma vez imbuído de dialogicidade, acolhe o outro excluído como legítimo produtor do próprio conhecimento e construtor da própria emancipação. Isso também tem claros efeitos políticos. Na modernidade periférica, a colonialidade de poder, por meio dos aparelhos ideológicos do Estado colonizado e colonizador, embebe as formas sociais de visões hierarquizadas para produzir o efeito ideológico de naturalização do patriarcalismo, do racismo e das injustiças econômicas. Não se produz tantas desigualdades e tantas contradições sem a indução de imagens hierarquizantes das relações sociais produzindo efeitos de naturalização da distribuição colonial injusta dos lugares e dos bens. No ato de ler e de alfabetizar, Paulo Freire descobre os caminhos pelos quais se podem encontrar possibilidades de emancipação e do desnudar de como as hierarquias produzidas são frutos das instâncias de deliberação e resultado interacional da dinâmica sócio-econômica.
Conforme Afirma Althusser:
“Na história da cultura humana, nossa época ficará marcada pela prova mais dramática e mais laboriosa de todas, a descoberta e a aprendizagem do sentido dos gestos mais simples: ver, escutar, falar e ler – esses gestos que põem os homens em relação com suas obras e essas obras atravessadas na garganta que são ‘ausências de obras’ ‘’[2]
O que Paulo Freire articula, de forma inusitada, é a possibilidade daqueles cujas gargantas tinham como única permissão emitir gritos guturais ascender, desde sua própria experiência com o mundo, à leitura do mundo numa obra crítico-libertária. Aqueles, cujas expressões das injustiças sociais moravam sempre numa interjeição pungente e muda, desabrocham na plenitude da palavra.
Juntamente com Althusser, Paulo Freire foi um dos que mais contribuíram para a compreensão do ato ler que, deixando de ser uma mera execução formal de signos, passa a ser um ato político de compreensão do modo como uma formação social funciona, desnudando-se seus mecanismos de exploração ideológica, política e econômica.
Se o vir à palavra que, segundo os gregos, conforma o homem se opõe à linguagem gutural pelo qual aos rostos sofridos expõem ao ser os estertores das formações sociais excludentes, uma vez vencido no oprimido o opressor que pode hospedar, o vir à palavra vem entremeado da crítica, da emancipação que consiste em dizer a palavra no engajamento da compreensão crítica da realidade. Se à ordem injusta interessa reduzir os protestos do povo à interjeição muda, Paulo Freire, apostando na igualdade, faz da alfabetização um ato de partilha crítica em que os oprimidos se descobrem portadores da chave da própria emancipação na partilha comum de um possível mundo justo já partilhado nas armas da crítica.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] Há que fazer estudos sobre a primazia das metonímias no discurso crítico. No escritor crítico-realista Graciliano Ramos, por exemplo, a presença das metonímias é abundante. Realce-se que tanto a metáfora quanto à metonímia são analógicas. Sobre o sentido analógico do signo, ver o capítulo 2, 3 e 4 da obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.
[2] ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne; ESTABLET, Roger; MACHEREY, Pierre; RANCIÈRE, Jacques. Lire Le Capital. Paris: La Découverte, 2008, p. 6.