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MAOÍSMO, HEGEMONIA E EMANCIPAÇÃO SOCIAL

A Bartolomé de Las Casas

Mao Tsé-Tung foi pensador genial em cujo pensamento a noção de estratégia é inerente aos próprios conceitos. Oferecia pensamentos argutos e diretivas políticas adensadas em fórmulas geniais. Um mestre insubstituível da cartografia política. ”Resolver as contradições no bojo do povo e resolver a contradições no bojo do partido” é uma diretiva que oferece uma cartografia conceitual para nos libertar da desorientação política e apresenta o mapa necessário de toda construção transformadora. No âmbito do povo, resolver as contradições significa unificar as classes dominadas na produção de uma efervescência democrática capaz de frear intentos despóticos e num bloco de poder coeso, capaz de autocrítica enquanto mediação mobilizadora e, no âmbito do partido, evitar a danosa infiltragem e a cooptação para o imperialismo, evitando-se o fetichismo político de forma que o partido se torna o instrumento de mediação do interesse geral do povo. Um povo unido constrói partidos capazes de traduzir em termos de decisões político-econômicas seus interesses universais.

A diretiva genial, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci.

Um dos problemas da luta social é a distorção dos conceitos e a incompreensão da forma com que se realiza a luta de classe. Na América Latina, a conjuntura é sempre mais complexa do que na Europa. Os governos de oposição consentida já tem o apoio secular da aristocracia financeira, dos grandes proprietários de terra e da pequena burguesia, especialmente a acadêmica que, sob o verniz de progressismo, é extremamente conservadora porque não abdica de seus privilégios obtidos pela lógica do prestígio e, muitas vezes, pela aparência progressista, se infiltram nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais para conter sua força expansiva. Nada mais reacionário do que o progressismo da pequena burguesia falante em suas ‘rebeldias’ performáticas vazias. Essas três classes tem aliança perpétua. Se, porventura, o país tem partidos de contradição antagônica e movimentos sociais coesos, os governos de oposição consentida, além da infiltração, buscam cooptá-los mediante benesses administrativas e privilégios camuflados, corrupção, ou, se não conseguir isso, mediante a estigmatização e a persecução penal da superpopulação relativa.

Um dos sintomas mais claro de que um governo não é de esquerda se dá quando sobrecodifica a questão econômico-social pela persecução penal dos pobres. E, nesse caso, rótulos só servem para escamotear uma estrutura profunda de repressão fascista.

O primeiro sinal do fascismo é a militarização das escolas e do cotidiano. Cria-se, sob o discurso da ordem, um panóptico sutil sobre os talentos. Nenhum fascismo se faz sem o jogo e o jugo do olhar censor sobre os talentos. Observa-se que os grandes escritores do nosso continente perceberam o panóptico colonial. Em vários contos de Córtazar se vê a forma sutil com que o fascismo, desde forma esmaecida, mas concreta, ganha figura, e, avultando-se tenebroso, desaba sobre os países. Estamos num período em que o fascismo se torna rizomático e, não dizendo seu nome, ancora-se mais sutilmente nas escolas e nas ruas, nas sondagens, na chantagem publicitária e na repressão absoluta da morte. O fascismo é o mecanismo político pelo qual se interdita o questionamento político das formações num processo contínuo e crescente de despolitização que, indo às últimas consequências, não tergiversa em instaurar a repressão pela morte. Pela sondagem militar e ilegal das pessoas, busca-se interditar àqueles que possam questionar a interdição; não sendo possível o silenciamento, instaura-se a morte enquanto mensagem cotidiana de poder obsceno: corpos empilhados nas ruas enquanto signo da ameaça.

Não obstante, seguindo Nietzsche, o fascismo nunca é ativo, mas é sempre reativo às insurgências democrático-comunitárias. Se há fascismo, é porque alguma comunidade pode se estabelecer.[1]

Em Ler em Louis Althusser, escrevo:

“A questão ‘’o que é se orientar na política?’’ emerge crucial e, ao entender que existe uma linha de demarcação justa, uma linha justa de definição, podemos evitar o diversionismo tão ao sabor do capital financeiro e devolver às formações sociais a orientação pela qual os problemas que lhe são congênitos sejam abordados e, por corolário, enfrentados corretamente.”[2]

Devolver às formações sociais a orientação pela qual possam enfrentar os problemas centrais é superar o progressismo. Os governos progressistas, sem exceção, giraram em torno de temas subalternos objetivando preservar a dependência econômica e, por mais paradoxal que seja, o desenvolvimento do subdesenvolvimento. É mais fácil iludir com bônus e bolsas famílias do que reprimir com canhões. Acontece que, quando o capital entra numa de suas crises cíclicas, aposta mais na repressão do que nas ilusões das demandas no sentido de Laclau. Ao mesmo tempo, quando começa um caldeamento teórico-prática de base popular em formações sociais de política fetichizada, a aposta é na oposição consentida. A jogada do império é criar uma espécie de duplo vínculo patológico que torna as formações sociais neuróticas no sentido da psicanálise, isto é, perdidas nas falsas antinomias de superfícies que, mantendo a aparência democrática, deixa intocáveis as bases econômicas da dependência, e mantém o jogo político como monopólio das classes dominantes. Entre os corifeus da repressão ostensiva e os fanfarrões dos bônus familiares, há uma grande cumplicidade, um solo comum: a aceitação acrítica da dependência econômica. Os progressistas integram, sem exceção, as classes dominantes. E todos sabem quem são os progressistas.          

A vitória da esquerda, portanto, depende da construção do que Gramsci chama Hegemonia, a qual deve ser capaz de escapar, numa linha de fuga para citar Deleuze, do duplo vínculo patológico. Umas das razões da melancolia política na Europa e em certos países da América Latina é a incapacidade da oposição consentida em mobilizar os setores populares que, por serem dotados de percepção arguta dos problemas concretos, não se sentem mais mobilizados para a seara política. Há uma melancolia política ancorada num extremo realismo político. Por isso, apenas partidos de contradição antagônica tem a capacidade de fazer os setores populares sentirem entusiasmo pela política novamente.

 Hegemonia, pois, consiste na capacidade de uma classe lograr apoio crescente das classes que estão na mesma situação de classe para produzir a mesma posição de classe, formando um bloco de poder que, pela força que ostenta, impede que qualquer representação se autonomize do projeto popular que a sustenta. Noutras palavras, a hegemonia é a força social que não se aliena mediante a representação de tal sorte que a representação não consegue se apartar da principiologia social que lhe deu origem. Conforme diz Marx:

“A emancipação humana não é realizada senão quando o ser humano reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais e não separe dele essa força social sob a forma de força política”[3]

Um partido é hegemônico quando a sua força política não reúne condições de se isolar e se autonomizar, de forma autorreferente, da força social que lhe deu substância. Se lograr a força social, pela intersecção da classe obreira, intelectuais orgânicos, movimento indígena, movimento campesino, movimento feminista anti-imperialista, o partido torna-se hegemônico, e a vitória é a inquebrantável. Não há como a esfera política se alienar da força social sem que sucumba nas suas pretensões ilegítimas. Nem o partido se insula na pobre autorreferência de interesses privados.

Portanto, a construção de um bloco de poder coeso e unido depende da resolução das contradições no âmbito do povo e das contradições no âmbito do partido.

A diretiva genial de Mao Tsé-Tung, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci e permite resgatar a viva paixão pela igualdade e pela política.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Para a Sigmund Freud, a neurose se caracteriza pela incapacidade de aprender. O duplo vínculo patológico fecha o horizonte de emancipação de maneira que as formações sociais ficam perdidas em círculos viciosos políticos em que há o simulacro de alternância no poder sendo que o processo político continua monopólio das classes dominantes. Neutraliza-se o antagonismo irreconciliável pelo jogo das meras diferenças. Nesse aspecto, a recepção decolonial da psicanálise é fundamental para compreensão da colonialidade do poder e das manifestações do fascismo. Da mesma forma que o superego cria estruturas reativas, não há colonialidade do poder sem a perpetuação de formas reativas de ser-em-grupo, instaurando diagramas de repressão e de vigilância. O livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, serve de preâmbulo para essas novas escavações teóricas. Pode colaborar, também, para o desvelamento das situações em que o oprimido hospeda o opressor. Fanon usa a noção de mais-valia psíquica ao ir no rastro desse grave problema para os movimentos sociais. Enfim, é possível uma reinvenção decolonial da psicanálise.

[2] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Pensar desde as margens da modernidade: a emergência de novas heterotopias. Ebook. 2ª Ed. Juazeiro: Oxente, 2022, p. 14.

[3] MARX, Karl. Ouvres Philosophiques, Tomo V, Paris: Alfred Costes, 1948, p.202.