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O RETORNO DA POLÍTICA COMO O RETORNO DO RECALCADO

A política só acontece porque na articulação dos conjuntos sociais sempre há uma fresta entre a topologia social cerrada e a emergência de novos sujeitos capazes de questionar a ordenação colonial. É sempre num enclave, numa junção disjunta, que a política retorna.  Em que enclave? No entremeio entre os que definem o campo social a partir de ascendências e hierarquias e os que, embora não contados, insurgem-se e se afirmam como sujeitos políticos e em cuja afirmação já se manifesta a clivagem social, isto é, a divisão social.

Os verdadeiros sujeitos políticos se inserem no momento em que a clivagem social se manifesta. Ou melhor, nascem no momento em que, ao afirmarem a sua existência mesma, demonstram o irrepresentável que obseda sempre o que conta numa determinada situação.

Um modo de produção para se reproduzir precisa coisificar os sujeitos sociais e o próprio caráter processual da realidade. Althusser diz que a ideologia interpela o indivíduo enquanto sujeito de tal forma que o indivíduo, imaginando-se acima de qualquer pertencimento social, vê-se como determinante último do real. Uma ilusão de autonomia que constitui a estratégia de dominação, pois, em sendo interpelado como sujeito, o indivíduo se enxerga acima da história quando não passa de um grande murmúrio no silêncio das formas sociais injustas.

Na ideologia, as imagens das formas sociais também são coisificadas. O produzir-se das formas sociais que constitui um projeto jogado, isto é, como escolha civilizatória dentre outras, entrevê-se como destino fatal. Ver o produto social sem o processo de produção é o cerne da fetichização. A política se fetichiza quando o sentido deliberativo da política é negado das formas sutis desde a repressão mais aguda à reprodução de mandatos políticos sem força e autonomia para tocar nas contradições. Só se admitem novidades reacionárias.

Dessa forma, uma formação social só se reproduz pelo trabalho diuturno de negação de seus problemas. Quando há um mínimo de tecido social, a dominação se exerce mediante a criação de noções de desorientação ou pela desnaturação de conceitos com potencial elucidador. Toda a cantilena sobre semipresidencialismo, presidencialismo de coalização, reformas superficiais eleitorais são táticas diversionistas.

O método dialético tem justamente essa tarefa infinita de criticar as noções de desorientação e, no elucidá-las, transpor a situação alienada com a indicação de um horizonte de possíveis factíveis. Pensar é transpor, diz Ernst Bloch.

Não há nada atrás das cortinas, todos os temas veem a tona. A questão é que as classes dominantes, cujo instinto de classe é apurado, desenvolvem estereótipos com o objetivo de, sob o pretexto de tangenciar os problemas, operar uma verdadeira deserção do real. Por isso, a assertiva de Mao Tsé-Tung de que ‘’não se deve esquecer nunca as lutas de classes’’ deve ser entendida no sentido de que o trabalho teórico da critica, de que a prática teórica não deve  cessar nunca e que esse exercício torna-se infinito na medida em que se propalam, pelos mais variados meios, temas e problemas e respostas de desorientação. Onde há desorientação, que haja método: trabalho incansável de elucidar a sociedade.

A subsunção material, definida por Marx, não consiste somente na reprodução do trabalho como trabalho assalariado, do trabalho como mercadoria, mas pela reprodução da subjetividade que introjete os valores sobressalentes das formações sociais capitalistas. Sem a fabricação do indivíduo insulado, mergulhado na luta pelos próprios interesses, sem compreensão do horizonte que integra, sem sentido comunitário, o modo de produção capitalista não sobrevive.

 Não há fetichização da política sem a supressão da potência política dos sujeitos. Somente por um longo processo de desidentificação com os valores predominantes que o indivíduo se emancipa. Dessubjetiva-se da lógica da dominação, subjetiva-se não mais como dobra do poder, mas como potência comunitária que, visualizando a totalidade social, apreende no ler o real o rastro da emancipação.

A melhor fórmula para definir a existência da política é a fórmula lacaniana: o recalque é o retorno do recalcado. O fato de se estabelecer representações em que as contradições são dissolvidas imaginariamente, construindo uma ‘realidade’ cuja versão é precária, é apenas um índice da existência da política. O fator determinante é a constrição de todas as formas de projetar a possibilidade de que, pelo uso público da razão, as formações sociais cheguem à compreensão de que não são obra do acaso ou do fatalismo, mas são projetos jogados, isto é, são frutos de escolhas que se materializam em instituições. Noutras palavras, o poder constituinte nunca cessa, nunca para, está sempre em movimento em todo pensador genuíno, em todo movimento social consequente, em todo partido que articula a totalidade.

É quando emerge a palavra sem murmúrio ou sibila o grito da dor contida, dizia Fanon, nos ossos dos colonizados. Surge então potências políticas que, sem temer o suplemento do poder punitivo, afirmam o comum. O recalque é o retorno do recalcado. Rebentam pensamentos metamórficos que, sob a pressão, recolhem as chispas e as lágrimas do que a palavra comunismo promete e anuncia.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.