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LIBERDADE, IGUALDADE, PROPRIEDADE E BENTHAM

A visão ‘teleológica’ da história da modernidade como evolução e das técnicas como avanços que trarão, por si só, benefícios comunitários são equívocos históricos. A narrativa de um progresso exponencial e a crença infundada de que as técnicas são neutras e, por sua natureza intrínseca, teriam um uso universal serviram para camuflar o fato, mesmo óbvio, mas entrevisto apenas por alguns filósofos, de que não há como apartar a história da técnica da história da economia e da história da política.

Marx, em Ideologia Alemã, faz uma associação entre o sistema ideológico e o mecanismo da câmara escura. Afirma:

“São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, mais os homens reais, produtores, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado das forças produtivas e das relações que lhes correspondem e compreendendo as formas mais largas que podem tomar. A consciência não pode ser outra coisa que o ser consciente e o ser do homem é o seu processo de vida real. E, se, em toda ideologia, os homens e suas relações se apresentam de cabeça para baixo como numa câmara escura, esse fenômeno decorre do processo da vida histórica, absolutamente como a reversão dos objetos sobre a retina decorre do processo de vida diretamente físico.” [1]

 Para além da ideia fecunda de que a ideologia, mesmo sendo uma fantasmagoria, não significa uma mera ilusão, pois, é uma fantasmagoria fruto das relações sociais, ancorada nas relações materiais, a relação entre o processo ideológico e o mecanismo da câmara escura não transborda do teor metafórico e permite vislumbrar a correlação intrínseca entre tecnologia e formas de dominação?

No cerne de O Capital, Marx coloca a fórmula central dessa modernidade capitalista: “Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”. Na medida em que os primeiros termos existem apenas na retórica, são anulados constantemente por estruturas de dominação total: a retórica da liberdade e da igualdade serve para camuflar as estruturas subjacentes de poder que buscam submeter as formações às injunções do poder econômico.

Não se pode esquecer a questão central de que um determinado modo de produção precisar se reproduzir a si mesmo. Numa carta a Kugelmann, em que faz observações fabulosas sobre a ciência econômica burguesa e sobre a teoria do valor, Marx deixa claro que uma formação social que não reproduz as condições da reprodução ao mesmo tempo em que produz pode perecer.[2]

Urge perguntar se a reprodução envolve o uso das tecnologias para fins de controle social? Uma formação social, tisnada de contradições, fadada a não enfrentar os conflitos que lhe são constitutivos, só se reproduz se constringir os espaços de liberdade. Ocorre que a repressão ostensiva se deslegitima facilmente. Dessa forma, as técnicas modernas, na medida em que proporcionam formas sutis de vigilância e controle social, ensejam formas de coerção que se tornam cada vez mais discretas e mais eficientes nos seus intentos.

Se Marx já antecipava que a lógica espacial e da vigilância do sistema fabril produzia a anexação da vida à operação do detalhe, mostrando que a divisão do trabalho, ao invés de gerar solidariedade como pensava Duhkheim, significava a vinculação do trabalho a uma operação parcial, retirando do trabalho caráter de arte, tornando o processo de trabalho apêndice do processo de valorização de capital, Foucault, nas sendas de Marx, identificou as formações disciplinares. O sistema fabril se esparge como paradigma por todo o corpo social através de instituições de produção da dócil-utilidade.

Em Vigiar e Punir, livro cujas tensões internas precisam ser lidas corretamente, Foucault vislumbra, no século XVII e XVIII, o surgimento de instituições que, por meio da distribuição espacial, enquadravam os corpos numa disciplina que funcionava como operador econômico, voltado a esquadrinhar os indivíduos, dobrando-os às injunções de produzir mais economicamente, diminuindo, concomitantemente, as forças políticas que pudesse desatar.  

A disciplina funciona como criadora de positividades, seja na forma de poder, seja na forma de saber: o indivíduo enquanto mônada produtiva surge das configurações dos dispositivos disciplinares. Mas existe um elemento presente no livro que até então passou desapercebido. Nos interstícios dessa obra de lucidez metálica, não se analisa apenas a disciplina-bloco que opera pelo confinamento, mas, sobretudo, a disciplina-mecanismo que engendra dispositivos funcionais que, pelo jogo do olhar, tornam o poder mais sutil, mais leve e mais eficaz. A análise do panóptico de Bentham mostra justamente as tensões da transição ou da convivência mútua entre a disciplina-bloco e a disciplina-mecanismo.

Na disciplina-mecanismo, pelo jogo do olhar e, acrescente-se, da escuta, produz-se uma forma de vigilância mais discreta, mais capilar e mais sutil, cuja materialidade se torna vaporosa em termos de origens e mais eficaz em termos de efeitos. Uma forma de poder que se materializa em seus efeitos, mas que dissipa os rastros que pudessem identificar a sua própria origem. Poder total dos efeitos, irresponsabilidade total da ação do poder. 

Foucault, numa clara remissão a Marx, registra que ‘’a máquina de ver é uma  câmara escura em que se espionam os indivíduos”[3]. Ótica e escuta total, destinadas a converter cada indivíduo, identificado como óbice aos projetos nefastos de dominação total, à margem de qualquer legalidade, um caso a ser observado, vigiado, submetido à logica do espectro total e até destruído fisicamente.

No centro da disciplina-mecanismo, a figura central é o exame enquanto mecanismo binocular de vigilância ininterrupta. O exame estabelece, segundo Foucault, uma economia da visibilidade no exercício do poder, faz da individualidade objeto do documentário da vigilância, cerca o indivíduo, de forma rarefeita e muita concreta, fazendo dele um caso de inspeção minuciosa e sem trégua das formas contemporâneas do panóptico.[4] É uma forma de poder que, atuando de forma invisível, constrange os indivíduos a uma visibilidade obrigatória para torna nula sua potência política ou de pensamento. Atualizando a fórmula de Marx: Liberdade, Igualdade, Capital Financeiro e Tecnologias subsumidas a intento de poder total é a insígnia de uma época de controle total.

Agambem, em várias passagens, afirma que, quando emergirem as singularidades que escapam à laminação do poder, virão os tanques de ferro. Já não se precisa de tanques de ferro, as novas técnicas de olhar e de escutar já chegam antes que as singularidades apareçam no horizonte político[5]. A palavra liberdade, mesmo massacrada, nunca teve uma atualidade tão gritante.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 50-51.

[2] MARX, Karl. Lettres à Kugelmann. Paris: Editions Sociales, 1930, p.  99-100, carta de julho de 1868. No texto Ideologia e Aparelhos Ideológicos, Althusser faz um uso conceitual das ideias contidas nessa carta e mostra que todo poder fusiona consenso ideológico e coerção. Podemos acrescentar que, na temática da reprodução, é preciso inserir o uso das técnicas que figuram como mecanismos de coerção mais sutis e mais eficientes que a repressão física visível.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis: Editora Vozes, 2009, p. 196.

[4]  FOUCAULT, Michel. Ob. Cit. Capítulo sobre o exame. Na obra Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020, fizemos uma análise de como o exame, agindo à margem da legalidade, chega às singularidades de forma capilar. Um poder tão sutil que opera à margem da lei. Heidegger afirma que a Terra é o aberto do qual não se pode afastar porque nele estamos imersos. Diante das técnicas modernas, a própria Terra se torna objeto do panóptico. Quem sabe estamos presenciando a necessidade de um direito do espaço cósmico e interplanetário? Nesse contexto, como saliento na obra citada, a tese do espaço jurídico vazio deve ceder às injunções da comunidade humana universal.

[5] Toda técnica é desdobramento de um sentido.

IMPERIALISMO, DEPENDÊNCIA POLÍTICA E ECONÔMICA E AS LUTAS DOS POVOS PELOS BENS COMUNS

“Se eu sou, tu és”( São Paulo)

Karl Marx, quando analisa as formações sociais capitalistas, mesmo partindo da análise da mercadoria enquanto aparência da riqueza, já registra a tendência do dinheiro em se distanciar do processo de produção de mercadoria e em assumir uma autonomia excessiva. Em O Capital afirma:

“O dinheiro afasta as mercadorias constantemente da esfera da circulação, ao colocar-se continuamente em seus lugares na circulação e, com isso, distanciando-se de seu próprio ponto de partida’’ [1]

O capitalismo, no estágio atual, se caracteriza pela autonomização completa da forma-dinheiro de tal forma que os bancos, abandonando a condição de meros intermediários nos pagamentos, passam ao monopólio de praticamente todo o capital-dinheiro. Consoante afirma Lenin:

“À medida que os bancos se desenvolvem e se concentram num número reduzido de estabelecimentos, eles convertem-se de modestos intermediários que eram, em monopolistas onipotentes que dispõem de quase todo o capital-dinheiro do conjunto dos capitalistas e de pequeno patrões, bem como da maior parte de meios de produção e das fontes de matérias-primas de um ou muitos de países” [2]

A primazia da forma-dinheiro -enquanto circulação autorreferente sem mediação produtiva- derruba inúmeros mitos liberais como a livre concorrência e a austeridade fiscal. Com a concentração de capital-dinheiro, a tendência é as grandes empresas,

com apoio dos bancos e dos governos liberais, absorverem as pequenas, criando-se monopólios em áreas centrais da economia, encarecendo os preços, determinando-se quem terá acesso a certos bens e serviços. A exportação de capitais para os países de modernidade periférica converte a dívida pública em garantia dos credores internacionais e nacionais, transformando-se os Estados, submetidos à subjugação colonial, não em garantes universais dos direitos, mas em fundos de reserva do capital financeiro internacional e nacional.

Já a propalada austeridade serve, também, apenas para produzir reservas e recursos para garantir o pagamento de dívida pública inauditada pela compressão dos orçamentos públicos mediante a redução drástica dos gastos necessários à efetivação dos direitos econômicos e sociais.  Na verdade, o discurso de austeridade revela-se falacioso, pois, mediante corte nos setores essenciais como educação, saúde, seguridade social etc, fomenta-se, ao mesmo tempo, a dívida externa inauditada e a dependência econômica[3]. Enfim, a ‘austeridade’, nesse caso, serve para a perpetuação do endividamento dos Estados.

Não há que cair na mistificação dos aparelhos ideológicos das classes dominantes: estamos em plena vigência de agressivo e encarniçado imperialismo, o qual, conforme lição imperecível de Lenin, se caracteriza não pelo primado do capital-industrial, ligado à produção de mercadorias, mas do capital financeiro.

Então, verifica-se, especialmente pela reificação da política, convertida em mediação básica das condições de perpetuação do domínio do capital financeiro, uma partilha territorial do mundo, consistente na usurpação das riquezas minerais, fontes de água, terras agricultáveis, fontes de energia e etc, presentes em territórios de nações periféricas, suprimindo os povos das condições básicas de vida.[4] É o direito à vida dos povos que está ameaçado. Mas, como as questões centrais das formações sociais são submetidas à deliberação coletiva, a luta política, por isso, coloca-se como central. Não é por acaso que o capital-financeiro busca de todas as formas reificar a política, seja mediante o silenciamento dos intelectuais e líderes populares orgânicos, seja mediante o financiamento a partidos, inclusive os de ‘esquerda’, retirando, para citar Mao Tsé-Tung, o caráter antagônico da contradição política, permitindo o surgimento apenas de ‘políticos’ comprometidos com a reprodução dos meios e condições necessárias à perpetuação da lógica rentista. O capital financeiro, por intermédio da

reificação política, tem suprimido a autodeterminação de inúmeros Estados na modernidade periférica para levar a cabo a empresa nefanda de pilhagem de riquezas naturais. Nessa conjuntura, a América Latina cumpre um papel geopolítico inestimável e a luta por autodeterminação, por isso mesmo, se confunde com a luta pelo direito à vida.

Se o capital financeiro busca reificar a política, cabe aos povos radicalizar as lutas políticas e assumir a vanguarda da luta pelos bens comuns, salvaguardando o futuro da humanidade. Já Hegel, ao defender um direito natural dialético, afirmava que os bens comuns como a água, ar e etc não podem ser submetidos à irracionalidade do domínio privado, mas à racionalidade publico-comunitária.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Vol 1. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 100. A fórmula do capital não é mais M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), mas D-D (dinheiro-dinheiro). A leitura dos 5 volumes dessa obra-prima do pensamento humano é crucial para entender todos os artifícios do capital. Marx já previra a conversão dos Estados em fundo de reserva de capital mediante a confusão entre dívida pública e bolsa de valores.

[2] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 55.

[3] No caso do Brasil, tivemos partidos pretensamente de esquerdas, consolidando, mediante financiamento de bancos públicos, monopólios no setor de alimentação. O cinismo chega ao ponto máximo de se proclamarem, mediante discurso piedoso típico dos hipócritas, pioneiros da luta pela segurança alimentar. Resta salientar a importância da obra de Josué de Castro, intelectual perseguido pela ditadura explícita (1964-1985), que lutou, de forma pioneira, pela ideia de segurança alimentar.

[4] Sobre a centralidade político-econômica da noção de território, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

UMA NOTA SOBRE A QUESTÃO DO MARCO TEMPORAL E A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS DOS POVOS ORIGINÁRIOS

Ao humanista DALMO DALLARI

A interpretação do direito, na modernidade periférica, corre o risco de ser sobrecodificada pela colonialidade do poder que, no plano da linguagem, envolve a possibilidade de colonização dos sentidos comunitários e objetivos dos textos pelas representações subjetivas e ideológicas dos intérpretes. No contexto em que a colonialidade do poder se apresenta subjacente às práticas interpretativas, pode acontecer a distorção da analítica normativa com o objetivo de revestir de aparente legalidade interpretações absurdas que constituem atentados graves à ordem jurídica, sempre articulados para promover os interesses das classes dominantes em detrimento do sentido textual, intertextual e histórico do direito vigente.

Quanto à analítica jurídica, o jusfilósofo Lourival Vilanova, de forma profícua, estabeleceu que toda normas tem quatro âmbitos de validade: 1) o pessoal; 2) o temporal; 3) o material e 4) o espacial.(1)

A semiologia jurídica demonstrou que é possível, por meio da apropriação privada da linguagem, alterar os âmbitos de validade da norma com o objetivo de atingir situações, fatos e pessoas que estavam fora do alcance do espectro normativo ou limitar ou suprimir indevidamente um direito consagrado mediante a inserção de notas ou características que, não integrando a norma, são embutidas por meio de falácias criando-se a impressão epidérmica de que aqueles elementos imantam as normas quando são impostos pelo intérprete, afetando-se a consistência interna do direito para produzir efeitos externos prejudiciais a determinados grupos.

No caso das normas que reconhecem os direitos dos povos originários, as normas da constituição vigente – inscritas no art. 231- se referem sempre às terras tradicionalmente ocupadas e aqui o advérbio tradicionalmente, pelo seu teor literal, indica, clara e evidentemente, as terras que originariamente já são ocupadas pelos povos originários.  O âmbito de validade temporal das normas do art. 231 remonta ao que originariamente pertence aos povos originários, inexistindo, no texto normativo, qualquer modulação temporal limitada ao marco específico da data da promulgação da constituição de 1988 ou outro marco ligado àquela data.

A validade temporal das normas consagradoras dos direitos territoriais dos povos originários não tem qualquer relação com o marco temporal a partir da promulgação da constituição – 5 de outubro de 1988- ou com qualquer outro critério vinculado àquela data. Inserir um marco ad hoc atropela o texto constitucional, altera o âmbito de validade temporal das normas referidas e vulnera a força normativa da constituição.

A questão é ainda mais grave quando é público e notório que a questão dos registros de propriedade no país sofre de absoluta falta de transparência e é questão pendente e padecente de atuação escorreita pelo Estado. A economia do projeto de lei 490/2007 mal disfarça que, valendo-se dessa indeterminação, a falaciosa noção de marco temporal objetiva expropriar as terras dos povos originários. O projeto de lei não passa pelo cotejo constitucional e constitui afronta aos três níveis básicos da interpretação jurídica, quais sejam: o textual, o estrutural e o histórico.

A metodologia jurídica permite identificar as interpretações que se inserem no arco hermenêutico -as possibilidades interpretativas legítimas- e as que, mediante a colonização dos sentidos, inserem notas ou aspectos alheios à tessitura textual da norma, criando-se novos textos, confundindo-se a atividade interpretativa- do judiciário- com a criação jurídica-legislativo.

Conforme salientava Pontes de Miranda, a topologia das normas – o lugar em que estão inseridas- pode servir de norte para a interpretação. Nos Atos das Disposições Transitórias Constitucionais consta regra sobre a demarcação das terras indígenas, a saber: “Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.

A questão da demarcação, portanto, se insere no direito constitucional transitório que visa a estabelecer uma continuidade segura entre o passado anterior à constituição e o futuro de tal forma que o indigitado marco temporal vinculado à promulgação da CF de 88 vulnera, além do art. 231, o direito transitório e se revela como um sofisma destinado não só a restringir mas também a suprimir os direitos povos originários por meio da desfiguração do direito vigente.

Causa pasmo que, após quase 33 anos, a norma do art. 67 voga no limbo jurídico das normas desprovidas de eficácia jurídica. Mas sempre é tempo de colher a constituição pela palavra e fazer valer sua força normativa. (2)

  • A importância da Arquitetônica Jurídica Analógica decorre da necessidade de articular as categorias epistemológicas que ensejam a aplicação segura do direito. Sobre os três níveis da interpretação jurídica ver o capítulo I, sobre a colonialidade do poder como obstáculo hermenêutico à eficácia das normas constitucionais ver o capítulo 2 e 8, ambos do livro “As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.
  • O caráter performativo da constituição não se confunde com gesto vazio, mas serve para enfatizar a necessidade de engajamento social no uso público da razão e do intérprete na comunidade de comunicação instaurada pela constituição, realizando de forma objetiva os sentidos comunitários nela talhados. É o que o filósofo espanhol André Ortiz chama de hermenêutica da implicação em que a subjetividade do intérprete, em vez de se fechar, abre-se à historicidade objetiva do texto.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.

ALBERTO GUERREIRO RAMOS: A DESTINAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA MODERNIDADE PERIFÉRICA

A FIDEL CASTRO E A TRAN-DUC-THAO

“Os antagonismos essenciais da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na polaridade, estagnação e desenvolvimento, representados por classes sociais de interesses conflitantes, e ainda entre nação e antinação, isto é, um processo coletivo de personalização histórica contra um processo de alienação”

A redução fenomenológica encontra seu motivo na meditação do cogito. Descartes começa por colocar em questão todos os objetos que se apresentam aos sentidos e, para evitar uma regressão ao infinito, chega ao reconhecimento de que se pode duvidar de tudo, mas não de que se duvida. A dúvida metódica desemboca na afirmação de uma verdade inquestionável: o cogito enquanto substância que pensa. Pelo exercício da dúvida metódica, o cogito enquanto instância da certeza é fruto dessa suspensão da apreensão dos objetos exteriores.

Em Edmund Husserl, a redução, mesmo partindo do cogito, avança no sentido de compreender que o questionamento radical do mundo objetivo não significa a diluição da objetividade, mas a apreensão da correlação originária entre consciência e mundo.  A atitude natural na medida em que se torna inquestionada e tornada hábito impede o descortinar da relação originária com o mundo. Por isso, a redução significa o questionamento constante da atitude natural na pretensão de buscar readquirir a situação originária da relação entre consciência e mundo. (1)

A própria atividade científica, ao esquecer que surge das demandas da vida operante, acaba por se alienar completamente. Não se trata apenas de que os princípios operatórios subjacentes à construção de um sistema não são conscientes ao próprio sistema, mas da relação da ciência e o mundo da vida. Em Husserl, o mundo da vida é limitado a uma esfera espiritual, esvaindo-se em materialidade. Já Alberto Guerreiro Ramos confere à redução fenomenológica um novo campo de imanência e o mundo da vida ganha materialidade. A redução sociológica consiste, pois, em depurar um objeto de estudo dos referenciais que o emolduram para permitir sua apreensão correta nas particularidades concretas.

No contexto marcado pela colonialidade do poder, o efeito de prestígio de imitar certos autores se torna maior do que a busca genuína da compreensão. A redução sociológica, ao se insurgir contra o mero decalque teórico acrítico, desoculta um objeto do sistema de referências produzido pelo contexto colonial, desembaraçando-o de todos os obstáculos epistemológicos, garantindo-se a percepção adequada dos fenômenos na inteireza de seu contexto.

Por isso, Guerreiro Ramos reivindicava a necessidade premente de se empreender um uso sociológico da sociologia, buscando superar a identificação simplista do trabalho teórico ao mero acúmulo de informação da literatura estrangeira em cuja literalidade estariam os dados concretos da realidade nacional. Os esquemas teóricos, hauridos na literalidade emergida de outros contextos, são impostos à realidade a ser observada, gerando efeitos deletérios na apreensão da realidade.

Alberto Guerreiro Ramos define a redução em três sentidos básicos: 1) a redução como método de assimilação crítica da sociologia estrangeira; 2) a redução como atitude parentética, isto é, como elevação à consciência dos fatores que determinam uma situação, permitindo uma intervenção consciente e producente a efeitos prefigurados racionalmente; 3) A redução como crítica do saber oficial vigente. (2)

Em síntese, a redução sociológica é uma atitude metodológica voltada ao desenvolvimento da capacidade de o sociológico de se desembaraçar dos pressupostos alienantes e desorientadores do colonialismo mental para poder estabelecer uma linha justa das questões centrais às formações sociais a que integra. Requer, sobretudo, uma compreensão da relação complexa entre a universalidade e a particularidade. Nem substancializar o universal de forma a negar a necessidade de apreensão da realidade em seus aspectos mais capilares. Nem hipostasiar o particular de forma a associá-lo à dispersão lógica do que é insuscetível de apreensão teórica. Trata-se de entender a universalidade concreta.

Louis Althusser já tinha assinalado que o fazer ciência já traz implícito um conjunto de princípios operatórios que, no mais das vezes, são inconscientes e que, por isso mesmo, determinam a percepção de um determinado fenômeno. Diante disso, afirma a necessidade de uma linha de demarcação que seja idônea a estabelecer a forma com que o saber científico seja funcional à formação social de que faz parte o sociólogo, permitindo uma autoconsciência social dos problemas para mais bem articular as soluções.

A redução sociológica, tendo em vista o contexto colonial, estabelece uma linha justa de demarcação, habilitando o sociológico, na medida em que for capaz de penetrar na dinâmica concreta das nações periféricas, a se tornar um momento de autoconsciência social e, pela elucidação que elabora junto às massas, um indutor do processo histórico de autodeterminação. O exercício da crítica do saber hegemônico revela-se essencial. A transplantação acrítica de teorias estrangeiras impede que as formações sociais periféricas entendam o seu próprio processo econômico-social. Vejamos um exemplo: Giovanni Arrighi, renomado economista, afirma em livro propalado: “A democracia parlamentar nunca se sentiu em casa na semiperiferia”.(3) Trata-se de enunciado ideológico que confunde causa e efeito, pois deixa de auscultar quais as razões pelas quais a democracia não se realiza nos países periféricos. Procurar as razões significaria deparar com o imperialismo e a necessidade de pensar a realidade. O enunciado seria correto se afirmasse que o centro capitalista sempre busca coarctar a emergência democrática nos países periféricos, por meio de golpes ou por meio de guerras híbridas.

A redução sociológica compreende que a batalha das ideias não é idealismo, mas está inserida na cruenta refrega política. Na modernidade periférica, as ideias tem pesada materialidade. Guerreiro Ramos o sabia e a redução sociológica foi um grito para que, na dispersão a que são forçadas as formas sociais periféricas, uma unidade pudesse ser produzida na força da ideia e da virtude sonhando que as massas emergissem em organizações de disciplina coletiva. A sociologia, nesse contexto, erige-se como instrumento de autodeterminação dos povos.

  • O sentido da redução como resgate da vida prática não somente aproxima, mas leva muitas vezes ao marxismo. Trand-Duc-Thao, esse grande filósofo vietnamita, é exemplo dessa energia interna da fenomenologia a se encaminhar ao marxismo. Trata-se de um dos maiores filósofos da história cuja obra deve ser estudada e pensada.
  • Obras do inesquecível mestre baiano: RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica. Rio de Janeiro: 1965; RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.
  • ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petropólis, RJ: Vozes, 1997, p. 232. Na verdade, justamente quando as formações sociais que, na divisão internacional do trabalho são periféricas, se engajavam na luta por autodeterminação logrando desenvolvimento, surge a ideologia do não desenvolvimento. Um sociólogo até escreveu que se deve buscar alternativa ao desenvolvimento. Não há que tergiversar: as formações sociais devem, desde que numa integração do metabolismo ser humano e natureza, buscar o desenvolvimento econômico. Pretendo, em trabalhos futuros, demonstrar as repercussões da redução sociológica nos mais variados campos.

Por: Luís Eduardo Gomes Nascimento, advogado e professor da UNEB.

CONSTITUIÇÃO É O NOME DE QUÊ?

A Vanderley Caixe Filho

A constituição não é um significante primeiro, mas deve ser considerada como tal na medida em que instaura um campo de ações linguísticas possíveis. Aqui já aponta para o caráter performático da constituição. A perfomatividade não pode ser confundida com um gesto vazio, mas como abertura de mundos possíveis. A constituição, como livro, para usar Caetano, permite ‘lançar mundos no mundo” A constituição não se reduz a uma forma lógica desprovidada de materialidade. Há muito se tenta equacionar a relação entre normalidade e normatividade. Se toda normatividade implica na criação de esquemas e categorias, no rastro delas, está a constância de certos fatos, portadores da normatividade. A normatividade ancora-se na faticidade. Essa relação transporta-se para dentro da normatividade que, imbuída da faticidade, não se mumifica numa racionalidade abstrata e a si, num céu de conceitos a priori, nem também se dispersa a ponto de uma facticidade qualquer ou construída falaciosamente possa corroer a tessitura textual e intertextual do direito. A faticidade juridicamente relevante é aquela que a normatividade agasalha, não uma suposta opinião publicada por órgãos de imprensa comprometidos com as classes dominantes. A dialética entre norma e fato não deve ser operacionalizada para que haja uma corrosão do texto nem para produzir uma normatização apócrifa dos fatos, como diz Müller, mas, para permitir que o trabalho do texto, que se dá no insterstício do sujeito e do objeto, se produza superando os obstáculos hermenêuticos numa espiral interpretativa voltada a produção de sentidos partilháveis no comum.(1)

A constituição como evento se revela como poesia, isto é, como indicação não de um dado naturalizado, como abertura a mundos possíveis. A constituição, como ato simbólico, é a tentativa de superar contradições, por isso, não se enrijece em significados fixos nem se dispersa em sentidos frouxos, mas abre um campo analógico em que a luta pelos sentidos se produz. Manter acesa a gênese da constituição é crucial para preservação do sentido literal possível. Na medida em que o texto se produziu no trabalho coletivo e social, nele mesmo, na sua visibilidade mesma, está presente a luta de várias gerações, lutas tingidas de sofrimentos intensos, de gritos e martírios do povo, das ‘raças’ lançadas em zonas de não ser. Como ler a constituição sem ver no seu rastro as expectativas frustradas dos povos negros e indígenas? A constituição não encobre o outro, mas, por força da instauração de uma discordância concórdia, permitir que o outro negado mostre seu rosto histórico. É o seu sentido. Não obstante, a colonialidade do poder impede que a constituição seja, como diz um escritor edificante, um novo começo. De que começo se trata? Existe um começo? Como falar de começo sem atentar para uma tradição fundada na exceção e na violência? Como falar de começo sem atentar para a necessidade de remover os obstáculos hermenêuticos ao fazer da Constituição? Na modernidade periférica, fendida em espaço de ser e espaço de não-ser, a igualdade, mesmo a formal, não se concretiza, e uma antinomia gritante se apresenta: a declaração formal de igualdade e práticas violentas de exclusão territorial, física e simbólica. Eis uma antinomia que mostra o nosso começo: nos territórios nutridos pela mais-valia, a lei; nos territórios explorados, a violência mais bruta. A colonialidade, diz Fanon, compartimenta o espaço, grava os seres de acordo com a cor da pele, submete-os a uma exclusão perversa e não demonstra racionalidade: é um exercício de poder no estado bruto.

É preciso retomar com vigor a ideia de Müller de que a textificação é faca de dois gumes que pode ser canalizada tanto para a colonização dos sentidos quanto para construção correta dos sentidos sempre aberta à alteridade. Como interpretar o enunciado de Muller de que os textos se vingam? Invocamos aqui Engels, discípulo fiel de Hegel, que, no Anti-Durign, afirma: “Os proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na aparência, que não se circunscreva à orbita do Estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-se extensiva a vida social e econômica.” (2)

Colher a constituição pela palavra significa estabelecer uma relação dialética entre experimentação e interpretação: instaurar, lembrando André Jean-Arnaud, uma prática jurídica social entendida como a ‘’atividade social que, quando confrontada ao processo de produção material e ao princípio de luta de classes, procura transformar as relações sociais regidas pelo direito em vigor.”(3)

Se a colonialidade se opõe à emergência do trabalho do texto enquanto instância que se exprime para além do subjetivismo e do objetivismo, devemos repetir o gesto de Espinosa. No tratado teológico-político, diante da apropriação privada da interpretação bíblica, instaura um conflito de interpretação (4) ao criar um método que permita a qualquer um encontrar, no trabalho do texto, o falar comum em que se estriba a produção dos sentidos. O processo de interpretação e o processo de controle da aplicação do direito não pode ser limitado às instâncias de poder que, não raro, desgarram-se da razão comum e necessária, sobrecodificam sentidos hegemônicos sobre o texto.

Neste cruzamento, o direito é interpelado pela política. No Brasil, é preciso, mais do nunca, insistir na distinção, desenvolvida com Jacques Ranciere, entre poder e política. Existem duas formas de contar a comunidade. A primeira só conta os grupos construídos e erigidos por diferenças de nascimento, raça e gênero, e de funções e lugares que constituem o corpo social. A segunda envolve a parte de parte alguma, a inscrição política dos não contados (4). O poder colonial é uma engrenagem do primeiro tipo. Nessa lógica, os lugares estão previamente determinados pela ascendência de forma que toda a institucionalidade é parasitada, vergando-se aos interesses das classes dominantes. Para superar isso, somente colhendo a constituição pela palavra, isto é, pela torção hermenêutica que coloque o comum acima da branquidão como propriedade.

  1. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2013. É preciso entender a normatização apócrifa em sentido mais amplo do que proposto por Müller. No processo penal, a apropriação privada da linguagem permite que fatos atípicos sejam qualificados como típicos, isto é, permite a normatização apócrifa dos fatos. Daí a importância crucial da epistemologia da prova.
  2. ENGELS, Friedrich. Anti-duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 89
  3. ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Porte Alegre: SAFE, 1991, p. 163.
  4. Sobre o conflito de interpretação consultar: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. Nesse livro, dentre tantas novidades, inaugura-se, no Brasil, a hermenêutica jurídica analógica como forma de combater a afasia linguística que nos assola hoje.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento,  Advogado e Professor da UNEB