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SOBRE O MÉTODO DE PAULO FREIRE

“A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”

Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel.

Para Paulo Freire, não há como apartar o processo de aprendizagem e de alfabetização da crítica. A apreensão das palavras não se dá no vácuo, fora da necessária contextualização. O ato ler, quando adstrito à neutralidade axiológica, é alienante.  Já a leitura, feita no entrecruzar da palavra e do mundo, envolve a apreensão crítica da realidade.

Se Husserl propunha uma variação imaginativa entendida como a imaginação de um determinado objeto de estudo em todos os contextos possíveis para apreensão de sua essência, Paulo Freire, por um processo metonímico, buscava por inserir a palavra na contiguidade político-social, articulando o processo de alfabetização no contexto prático do aprendiz, alargando o horizonte até a percepção das coordenadas político-sociais que caracterizam uma formação social.

Entendendo a relação dialética entre palavra e mundo, buscava superar a forma alienante de alfabetização em que as palavras são emanadas de contextos abstratos, desconectados da realidade em que o aprendiz está inserido, esvaziando-se o ato de ler da potência política criadora que lhe é constitutiva.

Desde Jakobson, a linguagem tem dois eixos: 1) o metafórico -da similitude- e o metonímico- da contiguidade.[1] É próprio da análise crítica enfatizar não o processo metafórico, mas o metonímico, ou seja, as relações topológicas de vizinhança, realizando-se um processo contrário à fetichização, desvelando-se, no cotidiano, os elementos críticos da realidade. Ao alfabetizar um pedreiro, escolhendo-se a palavra ‘tijolo’, todos os elementos da produção do objeto até as relações de produção são compreendidas a partir da palavra. Aí já se desvela que alfabetizar é sim um ato político. Toda a experiência do aprendiz é convocada, pronunciada de forma a expressar-se numa forma de conhecimento, numa apreensão pela palavra do que em vivência está em outro nível de aprendizado. Um saber, para usar o termo de Sartre, oriundo do cogito pré-reflexivo. No ato de ler, dentro da perspectiva crítica, as pré-estruturas de apreensão pré-temática do mundo são trazidas à tona e mobilizadas para a crítica.

Karl Marx, quando analisa o fetiche da mercadoria, quer mostrar que um objeto, ao ser apreendido fora das coordenadas que lhe deram ensejo, produz efeitos alienantes e manifestos numa verdadeira fantasmagoria objetiva de forma que as relações de produção são visualizadas como relação entre duas coisas inanimadas e a própria relação social é fantasiada objetivamente como relação entre coisas. A alienação, por mais que distancie os seres sociais de sua realidade, integra a própria realidade, constituindo uma objetividade fantasmagórica. Por isso, a importância do trabalho crítico para, desfazendo a fantasia ideológica, revele o real.

A crítica, em Kant, envolve a análise das condições de possibilidade do conhecimento. Em Marx, significa, inicialmente, remontar todo o processo social às condições sócio-históricas que lhe engendraram. Nesse sentido, o livro “A Miséria da Filosofia” é exemplar, pois, critica o procedimento de Proudhon de reduzir um modo de produção e sua forma complexa a dois sujeitos abstratos, a saber: o produtor e o consumidor. Proudhon analisa a produção, olvidando as condições históricas que a engendraram. Esquece, pois, a produção histórica do modo de produção.

A ideologia significa justamente essa ilusão objetivamente explicável. Mesmo sendo ilusão, contém elementos da realidade a que alude e, nesse aludir, traz os rastros das condições de sua própria explicação. Nisso, a análise crítica, ao fazer o mergulho nas condições do entorno da ilusão ideológica, revela a estrutura mesma do mundo. Nesse contexto, o método de Paulo Freire é de natureza eminentemente crítica. No superar a visão mágica da palavra, revelando-se as relações de contiguidade social no ato de alfabetizar, acolhe a pronúncia do aprendiz, revelando-lhe o saber que já detinha em outro nível. O aprendiz, já sabendo, ao entrar no universo da palavra, politiza-se, descobre as relações de poder que engendra sua condição, articula o mundo de forma a superar o fatalismo que quer fazer da vida um lugar de resignação.

A premissa básica de Paulo Freire, na linha de Gramsci, é que todo cidadão é filósofo, seja porque, ao viver em sociedade, incorpora um conjunto de representações, seja pelo aprendizado da linguagem, a qual adensa sempre uma visão de mundo: a linguagem é um sistema modelizante. Partindo dessa premissa, rompe com a visão aristocrática para o qual o conhecimento é uma relação hierárquica em que o aluno de forma passiva recebe as luzes do sábio entronizado. Parte, pois, da igualdade das inteligências e da necessidade de romper as distâncias entre o intelectual e o povo.

O ódio a Paulo Freire se deve à premissa teórica que, partindo da relação dialógico-crítica, agasalha uma viva paixão pela igualdade. No ato performático de apostar na igualdade das inteligências se produz efeitos democratizantes, desvelando-se que o ato de comunicação, uma vez imbuído de dialogicidade, acolhe o outro excluído como legítimo produtor do próprio conhecimento e construtor da própria emancipação. Isso também tem claros efeitos políticos. Na modernidade periférica, a colonialidade de poder, por meio dos aparelhos ideológicos do Estado colonizado e colonizador, embebe as formas sociais de visões hierarquizadas para produzir o efeito ideológico de naturalização do patriarcalismo, do racismo e das injustiças econômicas. Não se produz tantas desigualdades e tantas contradições sem a indução de imagens hierarquizantes das relações sociais produzindo efeitos de naturalização da distribuição colonial injusta dos lugares e dos bens.   No ato de ler e de alfabetizar, Paulo Freire descobre os caminhos pelos quais se podem encontrar possibilidades de emancipação e do desnudar de como as hierarquias produzidas são frutos das instâncias de deliberação e resultado interacional da dinâmica sócio-econômica.

Conforme Afirma Althusser:                                                                             

“Na história da cultura humana, nossa época ficará marcada pela prova mais dramática e mais laboriosa de todas, a descoberta e a aprendizagem do sentido dos gestos mais simples: ver, escutar, falar e ler – esses gestos que põem os homens em relação com suas obras e essas obras atravessadas na garganta que são ‘ausências de obras’ ‘’[2]

O que Paulo Freire articula, de forma inusitada, é a possibilidade daqueles cujas gargantas tinham como única permissão emitir gritos guturais ascender, desde sua própria experiência com o mundo, à leitura do mundo numa obra crítico-libertária. Aqueles, cujas expressões das injustiças sociais moravam sempre numa interjeição pungente e muda, desabrocham na plenitude da palavra.

Juntamente com Althusser, Paulo Freire foi um dos que mais contribuíram para a compreensão do ato ler que, deixando de ser uma mera execução formal de signos, passa a ser um ato político de compreensão do modo como uma formação social funciona, desnudando-se seus mecanismos de exploração ideológica, política e econômica.

Se o vir à palavra que, segundo os gregos, conforma o homem se opõe à linguagem gutural pelo qual aos rostos sofridos expõem ao ser os estertores das formações sociais excludentes, uma vez vencido no oprimido o opressor que pode hospedar, o vir à palavra vem entremeado da crítica, da emancipação que consiste em dizer a palavra no engajamento da compreensão crítica da realidade. Se à ordem injusta interessa reduzir os protestos do povo à interjeição muda, Paulo Freire, apostando na igualdade, faz da alfabetização um ato de partilha crítica em que os oprimidos se descobrem portadores da chave da própria emancipação na partilha comum de um possível mundo justo já partilhado nas armas da crítica.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Há que fazer estudos sobre a primazia das metonímias no discurso crítico. No escritor crítico-realista Graciliano Ramos, por exemplo, a presença das metonímias é abundante. Realce-se que tanto a metáfora quanto à metonímia são analógicas. Sobre o sentido analógico do signo, ver o capítulo 2, 3 e 4 da obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.

[2] ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne; ESTABLET, Roger; MACHEREY, Pierre; RANCIÈRE, Jacques. Lire Le Capital. Paris: La Découverte, 2008, p. 6.

DA RESISTÊNCIA À DEMOCRACIA NAS FORMAÇÕES SOCIAIS COLONIAIS

A democracia é um regime de visibilidade aberto em que qualquer um pode emergir sem a necessidade de ostentar títulos, seja a riqueza, seja uma suposta superioridade. Nas formações marcadas pela branquidão como propriedade, aparece como um grande escândalo, pois significa a emergência de grupos não contados conforme a ascendência e a hierarquia, significa dizer que à branquidão não se confere o privilégio exclusivo de governar e que os não contados integram a comunidade política. Fácil inferir que, na modernidade periférica, o que caracteriza as lutas políticas constitui um confronto aberto contra a resistência- no sentido psicanalítico- à democracia e em prol da emergência dos que tem como título a ausência de título e ostentam a corporalidade viva, que luta por dignidade. As lutas políticas são deflagradas para que se possa constituir a luta política genuína e democrática.


Como a colonialidade do poder incute a superioridade da branquidão, instaura-se uma verdadeira patologia: os que ostentam a branquidão se veem como predestinados exclusivos aos atributos universais da humanidade e se arrogam a condição de privilegiados e únicos capazes de representar o todo social e, portanto, de governar. Engolfados no narcisismo das pequenas diferenças, perdem qualquer alteridade, isto é, qualquer disponibilidade ao outro que não se enquadra no rol de propriedades- sejam biológicas, sejam culturais- com que se identificam, acicatando, como corolário, maquinarias de exclusão simbólica e territorial. É o que Alberto Guerreiro Ramos chamava de patologia do branco.


Nesse contexto, as eleições, como momento importante da democracia, figuram como um verdadeiro fantasma, o fantasma de que, pela aleatoriedade que lhe é constitutiva, o exercício do governo acabe indo para mãos dos que não são os ‘predestinados’, isto é, os grupos não contados pela laminação unívoca da ordenação colonial e que podem, pelo exercício do poder, alterar e transmontar a distribuição colonial dos bens, incluídos os simbólicos.


A política, então, se torna um processo totalmente controlado pelas oligarquias brancas reacionárias, tendo por característica a reatividade à qualquer emergência popular. Não há que se enganar: nas formações sociais coloniais, as oligarquias brancas são violentas e resistem violentamente à emergência democrática, à emergência do qualquer um: o qualquer um sem título que desarma a lógica hierárquica da branquidão como propriedade.


Como conjurar a aleatoriedade das eleições? Pela criação de um sistema cerrado, sutil ou explícito, de exclusão. Jacques Rancière assinala que os Pais-Fundadores não viram nenhuma contradição em erigir o homem proprietário como o único capaz de fazer da esfera pública um lugar infenso a interesses particulares. Ingenuidade? Marx, por sua vez, já na análise semiológico-política das declarações francesas do século XVIII, entreviu a contradição entre o homem, que luta pelo próprio interesse, e o cidadão, que deve figurar como elevado membro da comunidade.

Enquanto o homem luta pelos próprios interesses, faz dos outros meios para atingi-los, o cidadão, enquanto membro da comunidade, deveria agir conforme o interesse público. A contradição, segundo Marx, se resolve pela predominância do interesse privado real sobre o interesse público etéreo e ilusório. Nas formações sociais coloniais, não há esfera pública, o comando já é imediatamente dominado pela lógica privada (1). As eleições são tomadas justamente para conjurar o risco da emergência dos não contados. Conforme salienta Fanon, o poder, nas colônias, é privilégio dos dotados de branquidão e identificados com os valores imperialistas.


A democracia, portanto, constitui o escândalo que embaralha a ordem do discurso. Não é só pela situação discursiva em que aqueles que normalmente são privados da palavra emergem na esfera na pública pelo discurso que a democracia é temida e odiada, mas também pela iminência de que o uso da palavra, ao torcer e suplantar o monopólio do simbólico pelas oligarquias brancas, estimule, esporeie, fomente a constituição de um bloco de poder nacional-popular. É pelo exercício da palavra ou dos gritos de martírio que o povo assoma na seara pública apresentando-se, à luz da lógica colonial, como ameaça à ‘benfajeza’ ordem dos privilégios seculares. A mera emergência de um não contado é vista como ameaça e se verificam manifestações, patentes ou latentes, de racismo. Por isso, conforme salientei no livro As antinomias do direito na modernidade periférica, nas formações coloniais, a única política admitida pelas classes dominantes é a despolitização mediante o silenciamento, pelos mais variados meios, dos que enunciam os sintomas e as contradições das formações sociais.


Mas não há que desesperar da política. A emergência das massas em organizações de disciplina coletiva sempre é possível e, desde que se estabeleçam, pela luta, critérios seguros de verificabilidade da constituição do poder, o jogo pode mudar: as massas silentes podem assomar no vigor da poesia e da criação política de novas formas de ser e de viver.


Espargiu-se, até mesmo pela vulgata marxista, a noção de um Gramsci culturalista e domesticado. Mas Gramsci por ele mesmo não pensava em termos de cultura; como pensador da conjuntura, pensava em termos de poder e entendia a práxis como a busca, diuturna e incansável, pela constituição de um bloco de poder, nacional, popular e revolucionário (2). Lembrando Hegel, o ser humano, ao construir uma casa, usa os elementos da terra para se proteger da própria terra. Então, trata-se de criar um bloco de poder capaz de enfrentar e superar a branquidão como propriedade.

Notas:

1 Assiste razão a Dussel ao enfatizar Fichte como modelo de intelectual para a América Latina. Para Fichte, em momentos graves e difíceis da nação, cabe ao filósofo assumir o risco de, lutando pela instauração de uma verdadeira esfera pública, ser um momento reluzente e complexo de autoconsciência.


2 Para Gramsci, os partidos se tornam pessoas históricas quando se transformam no crisol da unidade entre teoria e prática, entendida como processo histórico. Não há qualquer transformação social sem que se verifique uma efervescência teórico-prático no âmbito dos partidos, sindicatos e movimentos sociais. No caso do Brasil, ainda impera o enunciado popular do período do Império em que havia dois partidos – o liberal e o conservador: ‘’Nada mais conservador do que um liberal no poder, nada mais liberal do que um conservador no poder”. No período ditadorial explícito (1964-1985), tivemos o partido do sim (MDB) e o partido sim, senhor (ARENA). Nada mudou. Mas nada impede o surgimento ou a configuração de partidos antirracistas, anticoloniais e anticapitalistas, constituídos em laboratórios para pensar e articular a totalidade social. Conforme dizia Guerreiro Ramos, os fenômenos sociais são totais, exigindo a superação da perspectiva fragmentária tão ao sabor do império.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB

O RETORNO DA POLÍTICA COMO O RETORNO DO RECALCADO

A política só acontece porque na articulação dos conjuntos sociais sempre há uma fresta entre a topologia social cerrada e a emergência de novos sujeitos capazes de questionar a ordenação colonial. É sempre num enclave, numa junção disjunta, que a política retorna.  Em que enclave? No entremeio entre os que definem o campo social a partir de ascendências e hierarquias e os que, embora não contados, insurgem-se e se afirmam como sujeitos políticos e em cuja afirmação já se manifesta a clivagem social, isto é, a divisão social.

Os verdadeiros sujeitos políticos se inserem no momento em que a clivagem social se manifesta. Ou melhor, nascem no momento em que, ao afirmarem a sua existência mesma, demonstram o irrepresentável que obseda sempre o que conta numa determinada situação.

Um modo de produção para se reproduzir precisa coisificar os sujeitos sociais e o próprio caráter processual da realidade. Althusser diz que a ideologia interpela o indivíduo enquanto sujeito de tal forma que o indivíduo, imaginando-se acima de qualquer pertencimento social, vê-se como determinante último do real. Uma ilusão de autonomia que constitui a estratégia de dominação, pois, em sendo interpelado como sujeito, o indivíduo se enxerga acima da história quando não passa de um grande murmúrio no silêncio das formas sociais injustas.

Na ideologia, as imagens das formas sociais também são coisificadas. O produzir-se das formas sociais que constitui um projeto jogado, isto é, como escolha civilizatória dentre outras, entrevê-se como destino fatal. Ver o produto social sem o processo de produção é o cerne da fetichização. A política se fetichiza quando o sentido deliberativo da política é negado das formas sutis desde a repressão mais aguda à reprodução de mandatos políticos sem força e autonomia para tocar nas contradições. Só se admitem novidades reacionárias.

Dessa forma, uma formação social só se reproduz pelo trabalho diuturno de negação de seus problemas. Quando há um mínimo de tecido social, a dominação se exerce mediante a criação de noções de desorientação ou pela desnaturação de conceitos com potencial elucidador. Toda a cantilena sobre semipresidencialismo, presidencialismo de coalização, reformas superficiais eleitorais são táticas diversionistas.

O método dialético tem justamente essa tarefa infinita de criticar as noções de desorientação e, no elucidá-las, transpor a situação alienada com a indicação de um horizonte de possíveis factíveis. Pensar é transpor, diz Ernst Bloch.

Não há nada atrás das cortinas, todos os temas veem a tona. A questão é que as classes dominantes, cujo instinto de classe é apurado, desenvolvem estereótipos com o objetivo de, sob o pretexto de tangenciar os problemas, operar uma verdadeira deserção do real. Por isso, a assertiva de Mao Tsé-Tung de que ‘’não se deve esquecer nunca as lutas de classes’’ deve ser entendida no sentido de que o trabalho teórico da critica, de que a prática teórica não deve  cessar nunca e que esse exercício torna-se infinito na medida em que se propalam, pelos mais variados meios, temas e problemas e respostas de desorientação. Onde há desorientação, que haja método: trabalho incansável de elucidar a sociedade.

A subsunção material, definida por Marx, não consiste somente na reprodução do trabalho como trabalho assalariado, do trabalho como mercadoria, mas pela reprodução da subjetividade que introjete os valores sobressalentes das formações sociais capitalistas. Sem a fabricação do indivíduo insulado, mergulhado na luta pelos próprios interesses, sem compreensão do horizonte que integra, sem sentido comunitário, o modo de produção capitalista não sobrevive.

 Não há fetichização da política sem a supressão da potência política dos sujeitos. Somente por um longo processo de desidentificação com os valores predominantes que o indivíduo se emancipa. Dessubjetiva-se da lógica da dominação, subjetiva-se não mais como dobra do poder, mas como potência comunitária que, visualizando a totalidade social, apreende no ler o real o rastro da emancipação.

A melhor fórmula para definir a existência da política é a fórmula lacaniana: o recalque é o retorno do recalcado. O fato de se estabelecer representações em que as contradições são dissolvidas imaginariamente, construindo uma ‘realidade’ cuja versão é precária, é apenas um índice da existência da política. O fator determinante é a constrição de todas as formas de projetar a possibilidade de que, pelo uso público da razão, as formações sociais cheguem à compreensão de que não são obra do acaso ou do fatalismo, mas são projetos jogados, isto é, são frutos de escolhas que se materializam em instituições. Noutras palavras, o poder constituinte nunca cessa, nunca para, está sempre em movimento em todo pensador genuíno, em todo movimento social consequente, em todo partido que articula a totalidade.

É quando emerge a palavra sem murmúrio ou sibila o grito da dor contida, dizia Fanon, nos ossos dos colonizados. Surge então potências políticas que, sem temer o suplemento do poder punitivo, afirmam o comum. O recalque é o retorno do recalcado. Rebentam pensamentos metamórficos que, sob a pressão, recolhem as chispas e as lágrimas do que a palavra comunismo promete e anuncia.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

DA MONTANHA QUE TEMOS QUE VENCER COM URGÊNCIA

Comunistas do mundo, uni-vos

A José Ramos Tinhorão, em nome de quem envio um abraço fraternal a dois poetas decoloniais.

“Toda questão de ordem ideológica, toda controvérsia no seio do povo não pode ser resolvida senão por métodos democráticos, métodos de discussão, de crítica, de persuasão e de educação; não se pode resolver nada por métodos repressivos e coercitivos’’ 1

A assertiva de Umberto Eco de que um texto, quando se desprende das condições de sua emissão, flutua no vácuo é errônea. Primeiro, porque um texto sempre traz junto a si, ainda que de forma tênue, rastros das condições em que foi gestado. Segundo, porque todo texto, ao ser emitido, entra num horizonte indeclinável que determina e condiciona a sua recepção. Abundam exemplos na literatura. A obra-prima Grande Sertão: Veredas- que criou um novo idioma dentro do próprio idioma- foi recepcionada como uma mera novela picaresca de bandos de desordeiros em conflito. Avalovara, de Osman Lins, é tão inovadora no que concerne a forma e, consoante a cibernética, a forma já é mensagem, que até hoje a obra é, absurdamente, ignorada. É nessa problemática que surge a teoria literária da recepção.

A estética da recepção, como corrente literária, busca compreender o modo como um texto produz seus efeitos não num sentido mecânico como a palavra pode sugerir, mas como o texto, na medida mesma em que estrutura de forma a priori sua própria leitura, cria mundos. O fato de a estética da recepção ter enfatizado a importância da subjetividade na recepção do texto não sucumbe ao psicologismo nem confere importância exagerada à subjetividade que, supostamente, seria o alfa e o ômega da interpretação.

Os efeitos do texto são prefigurados pelo próprio texto ainda que a participação da subjetividade que o recepciona seja decisiva nesse papel. Não bastasse isso, nenhuma leitura ocorre fora da mediação de um horizonte de expectativa no qual os textos vão se deparar e ou brilhar na sua grandeza ou, muitas vezes, naufragar tristemente. Por exemplo, a obra de Lima Barreto que desnuda com toda força as contradições pungentes do Brasil revela como um olhar-se no espelho e o reflexo não é nada formoso. O horizonte de expectativa, no contexto brasileiro, por conseguinte, mostra-se totalmente infenso à obra desse gênio que já demonstrara em contos e romances que o racismo deixaria de ser biológico para tornar-se cultural, antecipando muitos filósofos e questões hoje prementes. Quantos autores geniais criaram obras que, de tão ricas, foram incompreendidas? Outras quantas de tão desafiadoras, de forma silente, foram censuradas?

Gadamer define horizonte como o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. O conceito não é satisfatório porque incide num espontaneísmo que ignora o influxo das lutas políticas e das lutas pelas palavras no embater social e que, no fundo, as grandes lutas de classe é o desacordo acerca da percepção da realidade. O filósofo japonês Kojin Karatani quando criou o conceito de Paralaxe quer mostrar que os conflitos de interpretação já demonstram que o real é um topos em que o futuro das formações sociais se desenha e se desenrola (2).  O próprio conflito de interpretação revela a não coincidência do real consigo mesmo e a abertura mesma dos possíveis.

Podemos definir horizonte como regime de visibilidade e de invisibilidade instaurado pelas relações de forças que integram qualquer formação marcada pelas lutas de classes. O horizonte de expectativa define, de forma prévia, o que é visível e o que é invisível.

Muitas vezes o regime de invisibilidade é de forma sutil; outras, de forma violenta. Tudo como o escopo de impedir a elucidação das formas sociais e das mazelas que lhe são evidentes. Nessa cumeada, qual o horizonte de expectativa da constituição brasileira vigente? No que aqui importa, releva que a Constituição de 1988 é referta em direitos sociais, impôs freios ao sistema do capital financeiro com normas de eficácia plena- que fora totalmente desregulamentado- e criou um sistema protetivo do trabalho e seguridade social ampla envolvendo previdência social, saúde e assistência momentânea até o debelar, por políticas públicas, da pobreza e das condições miseráveis em que vive, infeliz e tragicamente, parcela relevante de nacionais como nós num país de riquezas inestimáveis. Como uma constituição dessa jaez é recepcionada num país em que o conceito de nação é restrito às oligarquias brancas com a exclusão, mediante permanente estado de exceção, dos povos que nos formam?

Ocorre que tamanha projeção generosa se depara com uma montanha íngreme- a colonialidade do poder- cuja superação requer o esforço descomunal de várias gerações. A colonialidade estabelece várias divisões desde a divisão entre o trabalho manual – que é, erroneamente, objeto de desprezo e o trabalho intelectual: ocorre a racialização das atividades manuais; a divisão sexual na exploração do trabalho feminino, no livro Os Quilombos como novos da terra apresento a hipótese de que a classe operária é tendencialmente feminina como forma sutil de efetivar a precarização dos salários; a divisão etária, suprimindo das crianças o direito de desenvolver sua potência para serem exploradas como mão-de-obra escrava;a violência contra os gêneros diferentes; a foraclusão da questão de gênero e o desatar da violência que decorre disso.

 No plano político, o sistema é tão deficiente que impede, salvo raras exceções, a emergência de lideranças populares; o próprio termo populismo é usado de forma distorcida para lançar pecha em quem se arvora com coragem em defensor dos povos; os políticos e os intelectuais que entendem e colocam às claras e com veemência a questão colonial são objeto de campanhas intensas de estigmatização e tidos como caudilhos machistas. O caso emblemático é do grandioso político Leonel Brizola, trabalhista autêntico e crítico ferrenho do modelo econômico colonial que nos afunda na tragédia social. No plano ideológico, a branquidão se vê como o estuário exclusivo das qualidades universais da humanidade e, os outros, são bárbaros cujo direito à vida é desprezado e, quando demonstram algum talento exponencial, são rechaçados brutalmente(3). No Brasil, a colonialidade constitui um horizonte de expectativa contrario às projeções constitucionais.

A saída não é a iconoclastia dos que, como Augusto dos Anjos, ao criticar o fetichismo, destruiu os próprios sonhos (4). A questão é estabelecer o método de elucidação, organizar a sociedade e, criando a disciplina coletiva, colher a constituição pela palavra, efetivando-a para salvaguardar a humanidade com um futuro compartilhado.

A colonialidade do poder é a grande montanha que temos de vencer e é urgente.

  • TSÉ-TUNG, Mao. Le Petit Livre Rouge. Paris: Éditions seuil, p. 35. Uso o negrito e indico com precisão a fonte para que saibam um pouco quem foi um dos mais libertários seres humanos da humanidade.
  • Quem compreendeu a filosofia de Mao Tsé-Tung sabe que, nas fímbrias de um discurso, às vezes perfunctório, é possível captar o real. Marx dizia que apreendeu economia política estudando a linguagem dos ‘liberais’.

Quando o presidente Fernando Henrique disse que a constituição é um empecilho à governança-palavra que não diz muita coisa- revela que a política que desenvolvera foi no sentido de frustrar as esperanças da constituição. Não é um discurso liberal. O liberalismo é um mito ocidental porque não existe nenhuma burguesia que não seja estatal. Basta ver as subvenções. Toda burguesia é estatal.

Além disso, Mao Tsé-Tung dizia que o liberalismo é apenas um nome vazio para dividir a nação e destruir a disciplina coletiva. E, quando uma nação está desorientada, a tarefa mais urgente é criar o método de elucidação. Criemo-lo, juntos e unidos.

  • KARATANI, Kojin. Transcritique: On Kant and Marx. London: The MIT Press, 2003.
  • O exemplo de Carolina de Jesus, Lima Barreto, Alberto Guerreiro. Itamar Assumpção, Maria Firmina, Luiza Mahin, Mariele Franco são emblemáticos.
  • Excerto do poema Vandalismo de Augusto dos Anjos:

“E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!”

É preciso manter os sonhos. A vida é, também, doce, amigo. E no dia que em encararmos Lima Barreto será  um momento de esperança.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

MARIATÉGUI E A TAREFA LATINO-AMERICANA

“Aquele que sai da contemplação e desce à realidade pode colher mil flores”, Mao Tsé-Tung.

O dogmático, na fabulosa definição de Mao Tsé-Tung, é aquele que impõe à realidade sempre cambiante esquemas teóricos prévios, ignorando a necessária articulação entre a universalidade e a particularidade. Rechaça-se o positivismo acrítico que supõe uma realidade dada e imutável, como contraposição vazia do pensamento, e, ao mesmo tempo, o idealismo que se evade em conceitos altaneiros sem qualquer capacidade de se enriquecer com a realidade. O apelo teórico da dialética é que, saindo da posição plácida da contemplação, o teórico dirija-se à realidade porque, se souber ver, há de colher mil flores. É um chamamento poético para haurir na realidade os elementos para a transformação.

Engels, em livro sobre Feuerbach, afirma que a proposição hegeliana de que o “real é racional e o racional é real’’ não é a santificação do que existe enquanto tradição arraigada e opressiva, mas a mirada da disjunção entre o velho e o novo porque o real não coincidindo completamente consigo mesmo pode dar ensejo a algo novo.

A tarefa latino-americana é, portanto, profundamente dialética. José Carlos Mariatégui mostrou que aplicar esquemas prévios rígidos para uma realidade sempre movente não enseja teorias adequadas e anunciava a tarefa latino-americana: romper com a concepção colonialista da tradição e promover uma leitura crítica da tradição e a colocação da questão da raça em termos econômicos e sociais.

O movimento crítico da tradição não se confunde com a nostalgia romântica de um tempo primevo e paradisíaco, mas se trata de uma reintegração histórica e uma ruptura da tradição unívoca e monolítica, exigindo, então, uma inflexão no pensamento marxista que deve enfrentar a questão indígena, tema inexistente no marxismo europeu.

As formações sociais da América Latina, para retomar o conceito de René Zavaleta,  são “abigarradas’’ em que a questão da raça, gênero e classe estão imbricadas, repercutindo no plano econômico, político e ideológico de forma que a análise dogmática, além de efeitos nefastos de compreensão, engendra efeitos políticos nefastos (1).

Afirma Mariategui:

“O problema das raças serve na América Latina, na elaboração intelectual burguesa, entre outras coisas, para encobrir ou ignorar os verdadeiros problemas do continente. A crítica marxista tem a obrigação inadiável de coloca-lo em termos reais, desprendendo-o de toda tergiversação ou pedantismo. Económica, social e politicamente, o problema das raças, como o da terra, é, em sua base, o da liquidação do feudalismo” (2).

A questão da raça na América Latina está jungida à questão do imperialismo. As classes dominantes – oligarquias brancas- introjetam os ‘valores’ do imperialismo e não nutrem qualquer alteridade em relações aos povos originários, fomentando um conceito fechado de nação da qual apenas os dotados dos atributos da branquidão participam.

A ênfase no narcisismo das pequenas diferenças- pigmento da pele, origem étnica- serve para acicatar políticas de inimizades que se expressam, sobremodo, na investida do capital representado pela oligarquias sobre os territórios dos povos originários, na subsunção de formas arcaicas de produção e na maquinaria de políticas criminais de morte.

 Mariatégui discutiu o tema da terra no modelo teórico do feudalismo. Na verdade, se articularmos, como Marx o faz no Manifesto do Partido Comunista, a descoberta da América como elemento central na constituição da modernidade e do capitalismo, o tema do feudalismo precisa ser superado pela análise de como o modo de produção capitalista, desde sua gênese, subsume o escravismo colonial, seja dos negros nos sistemas de plantação, seja dos índios na encomenda e outras formas arcaicas de produção. E, no evolver, no surgimento das sociedades industriais, não só discutir a questão do exército industrial de reserva, mas a continuidade da acumulação primitiva pelas oligarquias brancas pelo modelo extrativista do próprio estado e pela política de desapossamento dos povos originários (3).

No livro Os quilombos como novos da terra, demonstramos que a acumulação primitiva do capital é uma tendência intrínseca e contínua do capitalismo e que consiste na expropriação violenta, sutil ou explícita, contínua e sistemática da base fundiária dos camponeses e dos povos originários. O capitalismo, para se reproduzir como modo de produção extrativista do trabalho, busca, de todas as formas, a expropriação da base fundiária dos camponeses e, na América Latina, dos povos originários para formar contingentes que serão inseridos na sobre-exploração do capital ou subsumidos na políticas de morte.(4)

Já em 2008, no texto A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, tínhamos enfatizados que, diante do corte unívoco das formações sociais ocidentais, tudo que foge da estruturação colonial do poder, é lançado na irracionalidade e na patologia. A tentativa de encontrar o crime em traços antropológicos cumpre a função hegemônica de estabelecer o Outro excluído como a figura fantasmática do mal e da potencial ameaça. Os arranjos ideológicos e imagéticos dessa concepção são propalados cotidianamente de forma a constituir um imaginário que justifique um arremedo de legítima defesa que, sob o pretexto de afastar o mal, instaura políticas de mortes. Se o outro excluído coloca em questão a forma social excludente, apresenta-se, de acordo com a ideologia colonial, como ameaça à ordem da propriedade privada e à pilhagem estatal pelas classes dominantes.

A própria desordem social, causada por determinações sociais e econômicas, é manipulada para reforçar os efeitos da ordem colonial. Em vez de buscar compreender as razões das injustiças, todas as contradições são lançadas ao plano da patologia: o conflito é catalisado pela lógica ideológica, sendo apresentado como problema de índole moral-individual. A política criminal que ganha compleição estatal em alguns cantões da América Latina é orientada pela noção nefasta de traços antropológicos e, imbuída de acendrado racismo, instaura políticas de inimizades que redunda na produção sistemática da morte.

Na verdade, a velha cantilena liberal da liberdade negativa é decantada para fazer de uma questão econômica uma questão de ordem individual. Hegel ao colocar a questão econômica no sistema de ética, inverte a posição liberal e afirma que não há que falar em liberdade sem a concretização dos direitos materiais, dentre esses o direito de manter-se em vida, exigindo-se, portanto, profundas alterações de ordem econômico-social.

A tarefa latino-americana, na linha de Mariatégui, articula-se com a necessidade ver o enclave da raça, gênero e classe na lógica dialética sem qualquer dogmatismo e pensar estratégias de profundas transformações política e econômicas.

  • É difícil traduzir a expressão ‘abigarrada’ de forma que é mais profícuo preservar a riqueza que tem no original.
  • MARIATÉGUI, José Carlos. La tarea americana. Buenos Aires: Prometeu Livros, CLACSO, 2010.
  • Há que fazer uma análise foucaultiana de obras que, a pretexto do desenvolvimento, são feitas em terras dos povos originários, expropriando-os dos seus territórios, cuja dimensão ultrapassa a relação de posse com a terra.
  • Sobre a subsunção de formas arcaicas de produção pelo capital e sobre o giro descolonizador ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.