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SOBRE PRESCRIÇÃO PENAL E PUNIBILIDADE
“O direito se define pelas regras da semiótica’’, Santiago Nino
Nas discussões dogmáticas sobre as categorias jurídicas centrais da teoria do delito, verifica-se que a discussão sobre a punibilidade foi olvidada e obumbrada por uma chusma de categorias que, envolta em mistérios feitos para diletantes de si mesmos, desarticulam o campo da dogmática penal para tornar confusa a interpretação e aplicação do direito penal.
Eros Grau afirma, erroneamente, que a intepretação e a aplicação do direito são a mesma coisa. Interpretar é retirar sentidos de um texto. Aplicar é interpretar diante de um conjunto fático que necessita ser formalizado e qualificado juridicamente. São momentos diferentes de uma mesma arte.
Afirma Kelsen:
“o direito a aplicar é uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”[1]
Ocorre que a qualificação jurídica depende do esquema normativo necessário e elementar à construção da jurisprudência ou do precedente.
A dogmática penal costuma definir o crime como fato típico, antijurídico e culpável. Desde Kelsen, na medida em que o ilícito é criação jurídica, resulta absurdo chamar um fato- que contraria ao conjunto de normas- de antijurídico. Nesse contexto, há decretar o fim da expressão antijurídico no direito penal.
A invocação da expressão injusto penal mais confunde do que esclarece. Analisando o conjunto, parte da dogmática penal afirma que o crime é fato típico, ilícito e culpável.
Eugenio Raul Zaffaroni e Pierangeli defendem o conceito de tipicidade conglobante. Assertoam:
“Isto nos indica que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa.” [2]
Norberto Bobbio, ao criticar a teoria inerente ao tema da completude do ordenamento referente à teoria do espaço vazio, afirma que: ” Parece que a teoria do espaço jurídico vazio nasce da falsa identificação do jurídico com o obrigatório’’[3]
Pensamos que a teoria conglobante fica prisioneira do modal proibido. O direito é um conjunto de proibições, obrigações, permissões e atribuições de competências.
O que se desvela essencial para o descortinar do horizonte necessário à visada adequada da questão é ver que a ordem jurídica, em seus mais variados níveis, não pode ser insulada na ideia de tipicidade conglobante. Primeiro: o direito se realiza de forma típica. Segundo, afirmar que uma forma de realização inerente a um fenômeno se expande a outros níveis é redundante; terceiro, aferir os níveis adjudicados pela dogmática penal ao fato criminoso como conglobante nada tem que ver com tipicidade; quarto, os níveis estabelecidos estão erroneamente estabelecidos; quinto: estando erroneamente estabelecidos, é preciso suprimir os errôneos e encartar o que podemos chamar, com base em Guerreiro Ramos, teoria protonormativa do delito.
Por enquanto, podemos ressaltar que é necessário incluir, na linha de Basileu Garcia, a punibilidade. O direito penal, ao final, é a supressão de uma faculdade natural, isto é, a liberdade de ir e vir, e deve ser cientificamente válido para coarctar o que, segundo a natureza das coisas, é atributo ineliminável do ser humano.
Incide sobre a questão examinada os institutos da prescrição e da decadência da pretensão punitiva, estatal ou não. O conceito de prescrição penal envolve a inércia do titular da pretensão punitiva e o transcurso do tempo, perecendo a pretensão.
Para Clóvis Bevilácqua a “prescrição é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não-uso delas, durante um determinado espaço de tempo.”
A prescrição da pretensão punitiva está inserida no aspecto temporal que emoldura a norma jurídica penal. Na medida em que o aspecto temporal é quantitativo, há que verificar as homologias do domínio jurídico da punibilidade.
Sem adentrar nos méritos das peculiaridades da situação específica, realizando, de acordo com Lourival Vilanova, a formalização lógica, citemos excerto da sentença, que configura verdadeira jurisprudência, prolatada pela Ilustre magistrada Rafaele Curvelo Guedes dos Anjos, integrante dos quadros efetivos do Tribunal de Justiça da Bahia, a saber:
“Compulsando-se os autos, verifica-se que a pretensão punitiva do Estado está prescrita em relação aos delitos dos crimes contra a fauna (art. 29 da Lei 9.605/98), que tem pena abstrata de 06 meses a 01 ano, prescrevendo em 04 anos, e do crime de posse de droga para consumo (art. 28 da Lei 11.343/06), tendo em vista que a imposição e a execução das penas impostas aos usuários e dependentes de drogas, prescrevem em 02 (dois) anos, conforme art. 30 da Lei 11.343/06.
Em relação ao delito de posse de arma de fogo (art. 12 da Lei 10.826/03), a pretensão punitiva do Estado está antecipadamente prescrita, vez que esse crime tem pena abstrata de 01 a 03 anos, prescrevendo em 08 anos. Todavia, dada às circunstâncias do caso e a primariedade técnica das partes rés, em caso de aplicação de pena, esta não seria superior a 02 (dois) anos. Para essa pena in concreto, a prescrição ocorreria em 04 (quatro) anos, na forma do art. 109, do CP.
Logo, considerando que entre a data do recebimento da denúncia e hoje passaram-se quase 06 anos e não houve outra causa interruptiva, verifica-se lamentavelmente a ocorrência da prescrição antecipada.
Não obstante à ausência de previsão legal e existência de argumentos contrários à aplicação do instituto, vê-se que a aplicabilidade da prescrição em perspectiva apoia-se no princípio da economia processual, da instrumentalidade das formas e da celeridade da justiça.”
A intepretação que se apresenta, ao romper os lugares comuns, revela que o tema da prescrição é intrínseco ao atributo da punibilidade, e, na lógica formal que transcorre a decisão, na medida em que diferencia corretamente os institutos incidentes, tem efeitos políticos libertários e mostra que a linguagem, ao transformar o real, pode transformar os espaços e ampliar a ampliar a liberdade[4]. Enfim, é uma jurisprudência que, na exegese adequada, na articulação correta da ponderação no sentido de Recaséns Siches, revela que o tempo da prescrição está encartado no predicado punibilidade enquanto característica central da conduta ilícita, e a liberdade de muitos já tarda.
Hoje, é uma questão de uso público da razão e, lembrando Pontes de Miranda, o homem é o que, porque sabe mais do que os outros animais, corrigir-se.[5]
[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 9. ed. rev. e atual. São Paulo (SP): Revista dos Tribunais, 2011.
[3] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, página 272.
[4] Sobre a importância da interpretação nas lutas pelos sentidos e pela liberdade., ver a obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, Ebook.
[5] MIRANDA, Pontes de. Tratado da Ação Rescisória: das sentenças e de outras decisões. Campinas: 1998.
A CRISE DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A QUESTÃO FULCRAL DAS FONTES CRIADORAS DE VALOR
Ao Camarada Stálin
Marx enuncia que uma formação social entra em crise quando o modo de produção não corresponde mais ao desenvolvimento das forças produtivas. No caso do modo de produção capitalista, o enunciado de Marx entra numa espécie de conurbação, pois, ainda que na sua gênese o capitalismo tenha desenvolvimento de forma inaugural e exponencial as forças produtivas, vemos, a olhos vistos, uma crise geral do conhecimento que se manifesta de forma plena no plano da crise da produção.
Fizemos a distinção, ainda em crisálida na teoria de Marx, entre valor e fontes criadoras de valor. Na medida em que a circulação de mercadorias não explica o surgimento do valor, Marx verbaliza que são duas as forças criadoras de valor: natureza e trabalho vivo. Em sendo Aristóteles uma das fontes axiais do pensamento dialético, podemos averbar que são seis as fontes criadoras de valor: natureza, trabalho vivo, ciência, tecnologia, técnica e arte.
Hoje, a crise se entronca na crise do pensamento científico e da ausência de tecnologias voltadas não só ao incremento da produção, mas à produção da produção. De forma clara: a repressão do pensamento engendrou uma crise da tecnologia e, por corolário, da produção. O que pesa sobre o modo de produção capitalista é que não produz mais.
Gramsci enuncia, de forma genial, que a tecnologia, mesmo que oriundas das injunções militares, acabavam por se destacar, expandindo-se para outras áreas, sobremodo, à produção. Por isso, em razão do descompasso preludiado, as grandes potências possuem o monopólio de tecnologias de espionagem e não as voltadas à produção. Digamos de forma clara: a crise do capitalismo é a crise da produção. E por qual razão? O baixo desenvolvimento científico, o qual se revela claramente na ênfase da lógica do prestígio. Em épocas de desenvolvimento científico, o conhecimento é operante e pragmático, isto é, voltado à resolução dos problemas que emergem da vida em coletividade e não show business.
Nesse sentido questão central foi esboçada por Alberto Guerreiro Ramos ao enunciar que todas as questões passam pela teoria das organizações e pela redução tecnológica.
A irracionalidade do capitalismo contemporâneo não resolve a questão. O fato de o capitalismo financeiro tentar se autonomizar em face da produção leva, claramente, à implosão do próprio sistema financeiro e demonstra mais claramente que a atual crise do capitalismo. Como reprimiu as forças produtivas não produz mais.
O problema do modo de produção capitalista é um problema de produção. Um modo de produção quando não mais produz não pode ser chamado de modo de produção. Por isso, sem ironia, podemos dizer que o capitalismo não é mais um modo de produção e coloca em risco a humanidade.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
A ATUALIDADE DO GESTO ESTRUTURALISTA E O DECLÍNIO DO CAPITALISMO
“O desenvolvimento rápido da troca é a característica da época em que escreve Sismondi” Lenin
Às vezes, é salutar estabelecer um debate traçando um paralelo. O livro O estruturalismo e a miséria da razão de Carlos Nelson Coutinho padece de várias fraquezas teóricas. Subjaz ao livro a repetição acrítica de Lukács contra o então emergente estruturalismo. A ideia central é colocar a ontologia social de Lukacs contra a ênfase que, segundo o autor, o estruturalismo coloca nas questões epistemológicas, recaindo muitas vezes em um realismo ingênuo e metafísico. O autor refuta Saussure de forma hilária.
Para Saussure, a língua é forma e não substância. Para um olhar acurado, Saussure usa a palavra substância no sentido metafísico de um todo orgânico, unívoco. Nelson Coutinho, por sua vez, invoca alguns autores para defender que a língua é substância, conferindo ao termo um sentido diverso do enunciado por Saussure.
Ao autor brasileiro escapou o essencial: Saussure, ao enunciar corretamente que a língua é uma forma, adota o viês sincrônico, deixando de lado o diacrônico. É este o problema do estruturalismo que permaneceu incompleto: às interessantes e instigantes análises internas dos sistemas não se seguiram as análises históricas que pudessem explicar a transição das formas.
Na parte em que trata de Althusser a coisa piora. Os conceitos mais importantes de Althusser são deixados de lado talvez porque Nelson Coutinho não tinha muito conhecimento de psicanálise. A noção fecunda de causalidade metonímica e a reinvenção do conceito freudiano de sobredeterminação nem sequer são mencionados.
É um clichê dizer que Althusser tenha lido Marx desde o jargão estruturalista. Mas para além disso, pode-se verificar que entre Lukács e Louis Althusser existem mais pontos de encontros do que divergências. Na verdade, os conceitos de um se enriquece com o do outro sem incorrer em ecletismo, esta prótese retórica de quem se acostuma ao monolitismo.
Marx, sobretudo em O capital, trata as questões da forma de maneira muito similar ao estruturalismo. Não é novidade as aproximações entre as análises do signo em Saussure e a análise da forma-valor em Marx. Recentemente, Kojin Karatani confirmou a força desta analogia.
Enfim, não devemos subscrever acriticamente o que se produz em outras partes do mundo, mas também devemos encetar uma critica que, antes de tudo, possa compreender corretamente o que se critica.
Em 1953, uma cartilha polêmica já dizia da necessidade de superar a sociologia enlatada.
E o gesto genial de Karatani não tem sido a possibilidade de esboçar a grande lógica, mas, ao enunciar as inúmeras paralaxes do momento, entender a necessidade histórica do estruturalismo. Sentimo-nos familiares a este gesto.
São muitas confluências: a inserção do Estado e da Nação como elementos chaves da análise econômica, numa pequena discordância com Marx que se esclarece quando da análise diacrônica da questão; a compreensão das várias formas históricas do capitalismo ou a transição das formas dos modos de produção; um melhor ajustamento da questão do comunismo primitivo e do modo de produção asiático; a compreensão fundamental de que os modos de trocas e os modos de produção não são antíteses, mas desenham a necessidade de novos estudos e a própria releitura da obra de Marx para desvelar esse aspecto; a libertação da antropologia para compreensão das graves questões econômicas; a inserção, numa linha hegeliana mesmo inconsciente, do sistema ético junto aos sistemas de trocas; a compreensão das razões das crises cíclicas do capitalismo. O capitalismo reprime as contradições, mas hoje as contradições implodem o capitalismo. São pequenas observações sobre obra que me lembra Lenin falando sobre Engels: cada frase condensa uma tese. Em dois parágrafos, refuta Negri e Hardt para mostrar que, no núcleo do capitalismo, num lance teórico crucial para a adequada compreensão do presente, não é a multipolaridade que prevalece, mas a existência de várias formas de imperialismos que, num longo período de consenso, esbatem-se e debatem-se perdidos na contradições e implosões internas. A China esfacelada pelo chauvinismo incompetente e iletrado, a Rússia impotente e incapaz de retomar o legado da ciência operária que a tornou hegemônica em setores essenciais, os EUA em desintegração econômica e social interna e diante da implosão do sistema financeiro que encabeça e os emergentes em estado de crisálida.
E algo que podemos acrescentar é que, no capitalismo, os nacionalismos que prevalecem são identitários, isto é, de má-identidade. As hegemonias são identitárias. Hegel chama de má identidade aquela que não se abre às diferenças e estabelece o outro como inimigo. Sem esquecer que, na história, há o nacionalismo operário.
Trata-se do maior pensador da atualidade cuja obra abre caminhos novos, novos paradigmas, inclusive de leitura, e novos horizontes políticos e econômicos. É uma clivagem na filosofia para que o verdadeiro universal emerja na sua limpidez e força.
Enfim, podemos dizer, conforme disse a um jurista argentino em 2007, que o século XXI será o século do marxismo. O Capital, de Karl Marx, é o embrião indeclinável e ineliminável de várias ciências e, sobretudo, da economia política marxiana que ainda está por fazer. Marx elaborou as ferramentas conceituais essenciais, cabe-nos desenvolvê-las para que mais bem possa retinir o brilho inconteste da dialética.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
O DILEMA DA PANDEMIA
No que concerne à pandemia, três ações são complementares e necessárias:
1) resolver o dilema do prisioneiro através do retorno à atividade econômica industrial e o controle sanitário dos vírus;
A suspensão da atividade econômica e o mero retorno da atividade econômica sem controle sanitário do vírus são variações falsas de um problema que deve abordado de maneira ampla.
“Marx, em carta a Kugelmann, mostra que o trabalho vivo é a fonte criadora de valor ao conjeturar sobre os efeitos de uma greve prolongada e indeterminada: o que aconteceria com um país se os trabalhadores em geral deixassem de laborar por um período de um ano? A nação pereceria, conclui Marx.”
2) para depois, encontrar o princípio da replicação do vírus, pois, dos estudos do materialismo dialético sobre o ser genérico e o estar em homeostase com a disposição desse ser, depreende-se a natureza monstruosa do coronavírus (retrovírus), o qual configura uma verdadeira bomba biológica na medida em que, avançando em proporção geométrica, destrói os mecanismos do ser genérico manter-se em vida. Já tínhamos destacado que nova variantes irão surgir.
e, no meio do torvelinho, 3) o risco no plano interno e externo, decorrente da totalidade numérica prevista pelo jogo de soma zero:
“Trata-se de um jogo de soma zero em que todas as escolhas, mesmo múltiplas, representam a mesma escolha de fundo: a da valorização do valor futuro da forma-dinheiro destacada da forma-mercadoria”
No plano interno, a desindustrialização e maior financeirização leva ao risco da falência; Na América Latina, muitos estão entregando as nações aos bancos internacionais.
No plano externo, as flutuações geram instabilidade para o sistema monetário e o risco de países sem parque industrial irem à falência.
O que caracteriza o capitalismo na fase monopolista é a exportações de capitais: o capital não tem pátria e, ao circular na sua forma autorreferente mediante exportação, busca a subjugação colonial dos povos. O livro Por Uma Renovação Marxista da Teoria da Dependência descreve essa tendência de forma completa e, ainda que de forma elíptica, indica caminhos de liberdade.
Todos os caminhos, sem a intervenção nacionalista-popular, levam ao controle das populações e a construção de hegemonias.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
OS DESAFIOS DO MARXISMO NA AMÉRICA
Marx, pela influência do legado do idealismo alemão, não sucumbiu ao positivismo que hipostasia os fatos na medida em que os capta de forma desajuntada e propôs uma nova ciência (realizando o sonho de Vico).
As mistificações que pairam sobre Marx não decorrem somente do fracasso da apreensão de uma obra monumental que deve ser estudada linha a linha com rigor e profundo amor, mas do medo de que haja uma compreensão no nível cotidiano das reais relações do modo de produção capitalista.
Lukacs, um grande continuador, em Histoire et Conscience de Classe, mostra que a ciência burguesa fixa em coisas sólidas os efeitos das relações humanas em movimento. Apreender o movimento, ou para usar Hegel, o fundamento implica em mostrar como as antinomias e as contradições só são apreendidas quando se solicita a totalidade aberta.
Todo discurso ideológico, ao contrário do que se diz, não opera por lacunas. Ao revés, o discurso ideológico, ao reificar a realidade, precisa ocultar as lacunas; precisar produzir a conta-por-um para rechaçar a aparição que desestabiliza toda a estrutura.
A ideologia da técnica faz do saber econômico um lugar ínvio à lógica democrática que rechaça o argumento da autoridade ou da especialização reservada. Destina-se a economia aos reprodutores do capital, passando a ser o lugar de uma mística cujo acesso é exclusivo dos iniciados na linguagem mística, inacessível, teoricamente inconsistente, mas cheia de efeitos retóricos, produzindo o efeito de verossimilhança de um saber coerente e verdadeiro, apenas no efeito retórico.
A renovação marxista da teoria da dependência ainda está por fazer em seus níveis mais profundos. A América Latina, mesmo inserindo-se no capitalismo mundial integrado, teve experiências históricas cuja leitura sintomal colabora decisivamente para consolidação de modelos econômicos salutares e igualitários. E aqui não foram criações cerebrinas, mas experiências históricas de formações sociais, a exemplo do que ocorreu no Brasil, do período Vargas de 30 até 45, e na Argentina, no período de Juan Peron, nas décadas de 40 e 50, do século passado.
São tentativas de uma formação social adquirir autonomia que merecem um balanço histórico na linha althusseriana da leitura sintomal.
Getúlio Vargas desenvolveu a linha da industrialização com substituição de importações e trouxe muitas questões em termos de problematização da dependência. Juan Peron, por sua vez, tangenciou outra dimensão da questão.
Vale dizer que só por comodismo colocamos épocas históricas sob o signo dos mandatários do poder. Naquele momento, de muitas contradições, inclusive repressão política, foram as formações sociais no seu todo, incluídos a classe operária e os intelectuais orgânicos, que, na luta, fizeram avançar num processo dialético profundo. Não é fácil ser marxista.
Em 1964, o Brasil vivia uma intensa criatividade e efervescência política: a teoria da dependência e o pujante movimento operário. O Brasil entrava em uma crescente consciência de si mesmo impulsionada contra os arranjos estruturais da propriedade e do racismo. Foi esse movimento pujante que o golpe interrompeu e cujas reverberações ainda povoam o imaginário, as institucionalidade e o cotidiano hoje. Foi essa vulcânica aparição do novo vivo que foi interrompida. Nesse sentido, como dizia Marx, as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos como um pesadelo. Pesadelo que tentou conjurar os signos do novo que nos cabe captar e levar à frente com a luta pela ressurreição das lutas fracassadas em cujas fulgurações as lágrimas dos torturados nos interpelam. O Brasil reprimido em 1964 precisa ser reativado na nossa práxis.
Marx afirma:
“Um trabalhador, na usina de algodão, produz somente algodão? Não. Produz capital”
Se, entre mercadorias heterogêneas, não há como recortar um elemento comum a não ser o trabalho e, vincando a distinção entre a determinação do valor pelo salário e a determinação do valor pelo trabalho objetivado, a criação de valor tem por fonte primacial o trabalho. Adam Smith já salientava o trabalho como fonte da riqueza.
Tal descoberta, para além de qualquer sentimentalismo, constitui um marco científico indeclinável. E, considerando a heterogeneidade estrutural da América Latina, a renovação da teria da dependência ainda está no início. Os problemas emergentes da dependência e da busca das formações sociais adquirirem personalidade histórica permite ver os problemas econômicos de uma maneira diversa da economia burguesa e realizar uma torsão teórica inovadora.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
A FARSA DO PLANO REAL
A Ruy Barbosa Oliveira, cuja vocação pública faz enorme falta
Os subscritores do plano real escreveram que: 1) a vinculação dos preços de mercadorias e serviços ao dólar teria efeito deflacionário; se não fosse trágico pelos efeitos deletérios que provoca nos interesses nacionais, seria risível a assertiva; 2) a diminuição e a desburocratização de impostos geraria concorrência entre as mercadorias e serviços importados em cotejo com os nacionais, tendo como fundo compartido o dólar, e, portanto, a diminuição dos preços de mercadorias e de serviços. Na verdade, desata a destruição da economia nacional e prejuízos incalculáveis aos setores exportadores e às trocas comerciais, ante a realidade cambiante da dinâmica internacional.
Na verdade, o plano real é uma farsa; uma forma ardil e artificiosa de, por meio de linha de menor resistência, combater a inflação à custa da economia popular e do achatamento, sutil e indisfarçável, do poder aquisitivo. É uma farsa para submeter o Brasil aos efeitos dominadores do dólar. O real não é existe. A moeda nacional, se seguirmos rigorosamente o marxismo ortodoxo, é o dólar.
Todos os governos que se alinharam ao plano real- o pior plano econômico da história do Brasil- são antinacionalistas e antipopulares. Na verdade, não temos burguesia nacional. Para citar Gunder Frank, na modernidade periférica, temos uma lumpemburguesia que, de forma explícita, sem qualquer pudor, subordina a economia aos interesses imperialistas dos bancos internacionais sob o domínio dos EUA.
O tal do plano real indexou a economia nacional de forma que, qualquer flutuação fronteiriça, provoca o aumento dos preços dos produtos de consumo básico, a desaceleração da atividade produtiva e prejuízos inestimáveis ao setor exportador, afetando, sobremaneira, a balança comercial, tornando a discussão sobre superávit sibilinas afirmações desprovidas de critério científico. Industrialização, economia nacional-popular e plano real são antíteses, insolúveis. Não deixa de ser irônico que o sintoma venha a público apresentar-se como solução. O plano real- que alguns se jactam de ter criado- é um plano inflacionário cujo efeito principal é a devastação da economia nacional e das relações comerciais da nação na medida em que se arrima num cenário mundial monolítico.
Na aurora da República, Rui Barbosa- jurista genial, mas de retórica empolada, criou o encilhamento, um plano econômico profundo de cunho nacional que foi boicotado pelo Império Britânico. Ah, eram tempos em que, mesmo na premência do mais cruel colonialismo, havia inteligências. O Brasil sempre está por nascer.
O plano real, na encruzilhada em que estamos metidos, cria, imediatamente, duas disjunções: a) a existente entre os setores exportadores e a aristocracia financeira, e b) a existente entre a submissão ao dólar e a necessidade imperiosa de trocas mercantis mais equilibradas de maneira que, nas oscilações do capitalismo mundial integrado, estamos a atingir a borda da falência.
A incompetência das classes dominantes, representadas por todo o espectro político, no Brasil, não cabe mais no orçamento. Uma nação cuja institucionalidade não é porosa à contradição e à crítica emperra de forma irremediável.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado, Professor da UNEB.
Ignota, no entanto brilha
Felina, na desconfiança
Pressentido tudo
No presságio dos pélagos
Em busca de algum signo
Que possa explicar
em breu
em chuva,
narinas e olhos
em fúria
em lâmina, cortando a superfície
para revolver a mina explosiva
abrolhos
Felina, na confiança felina
Sutil e densa
Sempre além
E assim, ela, brilha nela mesma
Quando é tudo
Desde que tudo exploda
Que tudo transcenda
Que tudo seja tudo
Que o bosque seja pássaro
Que a noite seja estrela
Que o rio seja água
Que no paladar a laranja
Lavre a voz adstringente
Lavre a voz luminosa
Lavre a voz na foz no fogo
nos vãos
em pleno dia
buscando a foz
A voz pela voz
Para esplender
Para ferir
Para sangrar.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
HEGEL
Em que infância adormece teu vigor de filósofo
Abraçando, voraz, a nado, todas as contradições
Que pululam neste vergel
Nesses sonhos que pervagam sobre extensões ínvias e ignotas
Pude um dia saber-te
E me vi no aberto, para o aberto
E lanças lancinantes
Golpes pérfidos
Abraços delicados
Sonhos de pureza golpearam-me
E desconfie de sublimações
Quis mesmo foi o corpo no solene de se esprair sobre o infinito
O teu espírito em movimento saindo das épocas distantes
Juntando-se aos mais próximos acontecimentos
Jornais, livros e tua fome de tudo abarcar
Desde a chama do cigarro à elipse dos planetas
Em que infância adquiriu tanta coragem
Tanta vulnerabilidade
Para poder provar da dor do saber
E do vinagre de, em plena revolução,
Ver que, na mais imperfeita das trajetórias,
Pode emergir uma grave manhã
Sem trombetas e sem alarde
Puro instrumento cortante
tropas calcando aos pés flores,
Derruindo sonhos pueris
Esgarçando esperanças vãs
Para poder fazer nuvem chuva densa
Compacta tempestade
Furações que fulminam os campos sem esperança
Para conferir-lhes o amanho do pastor
O sonho do profeta amante do silêncio
Em pleno deserto
Em peleja pelo equilíbrio
Pela justa medida
Nem pastor do ser, nem sentilena do vazio,
Mas aquele que, sob as mais prementes circunstâncias,
Tenta cingir as mais complexas constelações do presente
Júpiter, Netuno, riachos, cafezais,
Sonhando o deus do feldspato, ígneas possibilidade do sol
No meio-dia, na meia-noite, na meia-lua
Nos extremos das mil milhas, jardas, alqueires de solidão
Pousando na mão, na forma vã dos dias sem arautos
Não são os anos, os séculos dispersos?
Que fio os atravessa dando-lhes fibra e têmpera?
Que razão fulgura tecendo-os numa razão sempiterna?
Em que infância mora o teu dissabor
Por sensaborias e edificantes palavras
Quisera mesmo o profeta de verbo adunco, de intrincadas sentenças,
Emaranhados enunciados onde se possa refulgir as vastas manhãs dos descaminhos humanos transitando até a ágora universal onde bicho, planta, sargaço, limo,
Engenho, motor, ladrilhos, sobrados, trilhos e casas guardem um pouco do esplendor do sol
Foi auscultar e viu que só no fundo é possível brotar águas nuas
Quão estreita a via por onde a verdade aflora
Por isso, pergunto em que infância homizia-se teu vigor de filósofo?
Foste velho desde a infância mesmo jovem
Se tudo prorrompeu é porque te guardaste do riso fácil,
Dos arruídos solenes
Quão firme esteve em amar o difícil
Porque, se do átimo do agora, colhemos apenas o tropel inútil
A mim ensinou que é preciso amar o longe
na fenomenologia dos povos, no espírito encarnado
na via crucis,
na via de sempre renascer nas sublimes redenções dos povos em Cochabamba,
Em Pequim
Ou em um templo em Constantinopla ou transitar de novo qualquer embarcação fenícia
Em que velhice encontro a infância em que te torna mais do que um nome
Uma estrela, um amigo, um irmão, uma estrada
Em que cabe tudo quanto pude conceber, sentir, pensar
Em que rincão, em que revolução encontro o encontro
A enseada de tantas estações,
Pois melhor do que ter descoberto um outro planeta
Foi ter assentado o promontório de tanta comunhão
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
PANDEMIA, DILEMAS TRÁGICOS, DIALÉTICA E LINHA DE MASSA
A René Zavaleta e a Zhou Enlai
“Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens do que na terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só uma criatura humana?” Rei Édipo, Sófocles
O PESO DO SÉCULO
A Zhou Enlai
Diáfana presença no ar de chumbo
Mais sutil do que vento
Hidráulico, sabe a tempestade
Sabe dos campos minados onde se emaranham passado e porvir
Das longas marchas onde o possível e o fel se intricam
Pudera eu ver-te, camarada;
Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;
Nos teus ombros de leveza
Pesa a dor do século
aprendi que, no mais emaranhado dos cafarnauns, tua presença diáfana trouxe
a cã calma, a tez da aurora, o júbilo dos povos,
Pudera eu ver-te, camarada
Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;
É preciso perguntar que diagrama de poder uma teoria secretamente secreta. A ciência econômica, na medida em que se esvazia em números abstratos, ao mesmo tempo, de forma sutil, alimenta políticas voltadas ao controle, conforme dizia Battaille, do fluxo de energia sobre a terra e, outrossim, analisando as várias pressões exercidas pela ação humana, invoca o topos da escassez dos recursos e, por corolário, justifica o controle das populações.
Marx sempre criticou o topos retórico da escassez dos recursos que sempre é esgrimido para justificar dilemas trágicos inexistentes, o fatalismo inexistente das desigualdades e o controle das populações. Na verdade, o topos da escassez é a forma com que a economia burguesa clássica legitima um modo de produção que cria uma superpopulação relativa, entregue à própria sorte, deserdada do comum e desterrada do sistema de necessidades, vogando à sombra do fantasma de Malthus, perecendo por fome e por desemprego. Malthus defendia que os recursos crescem em proporção aritmética e as populações avançam em proporção geométrica. Dessa forma, os recursos disponíveis se tornariam escassos, postulando as mais variadas formas de controle das populações, desde a doença à guerra.
O topos da escassez dos recursos serve para evitar o enfrentamento do problema central: o funcionamento do modo de produção que, forjado na lógica da extração de mais-trabalho e mais-valia, leva ao esgarçamento do metabolismo ser humano e natureza e produz uma superpopulação errante e desprovida dos direitos materiais.
É necessário verificar as relações entre biologia e as ciências sociais. Na verdade, mais do que nunca é preciso fazer a genealogia da incursão biologicista nas ciências sociais. A sociologia, para além do monismo epistemológico pelo qual os modelos das ciências naturais serviriam de paradigma para as ciências sociais, na sua gênese, sofreu o desvio biologicista por Spencer e pela incorporação de um darwinismo social mediante o qual as lancinantes desigualdades encontrariam amparo no argumento de que prevalece o mais forte. Engels, em carta, averba:
“Toda a doutrina darwinista da luta pela vida é simplesmente a transposição da sociedade na natureza animada da doutrina de Hobbes sobre o bellum omnium contra omnes [ a guerra de todos contra todos], a doutrina econômico-burguesa da concorrência, juntas à teoria demográfica de Malthus”
O modo como a pandemia está sendo gestada conjuga todos esses elementos numa manifestação funesta, tétrica e sombria do controle das populações. A pandemia, então, tem sido usada e mobilizada para arruinar a economia industrial de certos países, mergulhando num caos que, a longo prazo, pela via do vírus ou da destruição econômica, desemboca no controle das populações, isto é, do corte necrófilo entre quem merece e quem não merece viver, à sombra da tétrica necrofilia do poder. A covid-19, por ser retrovírus, avança em proporção geométrica, e já se está na quinta onda, e, no horizonte sombrio, várias ondas podem vir.
Marx, em carta a Kugelmann, mostra que o trabalho vivo é a fonte criadora de valor ao conjeturar sobre os efeitos de uma greve prolongada e indeterminada: o que aconteceria com um país se os trabalhadores em geral deixassem de laborar por um período de um ano? A nação pereceria, conclui Marx .
A pandemia enquanto interrupção da atividade econômica industrial pode gerar um cenário de massacre dos povos. Trata-se de um jogo de soma zero em que todas as escolhas, mesmo múltiplas, representam a mesma escolha de fundo: a da valorização do valor futuro da forma-dinheiro destacada da forma-mercadoria. É necessário, seguindo a linha de demarcação da dialética, a linha de massa, coordenar de forma eficaz e combinada a manutenção da atividade econômica e o controle sanitário do vírus. Sem essa coordenação, o mesmo cenário, ainda que por vias oblíquas- vírus- ou concêntricas – vírus e destruição econômica, vai se desenhar sombrio: massacre de vidas humanas e populações.
A questão chave é, então, coordenar o retorno à atividade industrial e o controle da pandemia mediante regras sanitárias rígidas. Contra o jogo de soma zero, onde todos os lances expressam, com variações, a mesma escolha de fundo, como num lance teórico de Kierkegaard, escolher a própria escolha para poder produzir um mundo em que a consigna “o ser se diz de várias maneiras” seja a força motriz de um modo de produção comunitário.
Reescrevendo a divisa de Tupac Katari: resistiremos e seremos milhões.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lettres sur les sciences de la nature (et les mathématiques. Paris: Éditions Sociales, 1973, p.85. Não obstante, tiveram que palmilhar um conflito de interpretação em relação a Darwin e, somente depois de um longo debate, entenderam que, em Darwin, a evolução não é a ascendência do mais forte, mas um longo processo pelo qual as espécies criativamente produzem uma homeostase tensa com a biosfera: DARWIN, Charles. The origin of species. Hertfordshire: Wordsworth editions, 1998. Nas cartas Marx e Engels revelam o evolver da compreensão de Darwin.
MARX, Karl. Lettres à Kugelmann. Paris: Editions Sociales, 1930, p. 99-100, carta de julho de 1868.
MARXISMO E A RETÓRICA DA ESCASSEZ DOS RECURSOS
“Entre os dois mundos a trégua nos rejeita”
Pasolini
É preciso perguntar que diagrama de poder uma teoria secretamente secreta. A ciência econômica na medida em que se esvazia em números abstratos ao mesmo tempo, de forma sutil, alimenta políticas voltadas ao controle, conforme dizia Battaille, do fluxo de energia sobre a terra e, outrossim, analisando as várias pressões exercidas pela ação humana, recusa, invocando Marx, o topos da escassez dos recursos.
Marx sempre criticou o topos retórico da escassez dos recursos que sempre é esgrimido para justificar dilemas trágicos inexistentes, o fatalismo inexistente das desigualdades e o controle das populações. Na verdade, o topos da escassez é a forma com que a economia burguesa clássica legitima um modo de produção que cria uma superpopulação entregue à própria sorte, deserdada do comum e desterrada do sistema de necessidades, perecendo por inanição, fome e desemprego. O topos da escassez dos recursos, ao ocultar a forma predatória com que funciona o capitalismo, serve para evitar o tangenciamento do problema central: a questão não é da escassez dos recurso, mas do modo de produção que, forjado na lógica do mais-valor, leva ao esgarçamento do metabolismo ser humano e natureza.
Em Por uma renovação marxista da dependência (1), reiteramos necessidade de verificar as relações entre biologia e as ciências sociais. Na verdade, mais do que nunca é preciso fazer a genealogia da incursão biologicista nas ciências sociais. A própria sociologia, para além do monismo epistemológico pelo qual os modelos das ciências naturais serviriam de paradigma para as ciências sociais, na sua gênese, sofreu o desvio biologicista por Spencer e pela incorporação de um darwinismo social mediante o qual as lancinantes desigualdades encontrariam amparo no argumento de que prevalece o mais forte. Marx e Engels, por sua vez, tiveram que palmilhar um conflito de interpretação em relação a Darwin e, somente depois de um longo debate, entenderam que, em Darwin, a evolução não é a ascendência do mais forte, mas um longo processo pelo qual as espécies criativamente produzem uma homeostase tensa com a biosfera (2).
Ao desvio biologicista das ciências sociais devemos opor uma epistemologia marxista decolonial para que não haja formas silentes de construção de humanismos excludentes fundados na ideia de superioridade racial e formas de políticas inimizades contra os que são considerados inumanos (3). A retórica da escassez ocorre nesse engajamento e precisa ser desvelada para que não se legitime o controle malthusiano das populações.
Marx já assinala que o modo de produção do capitalismo só se mantém na medida em que socava as duas fontes criadores de valor, quais sejam: o trabalho vivo e a natureza. A questão não é a de escassez de recurso, mas sim de refundar o humanismo para que as formações sociais, imantadas pela requisição virtual de todos, estabeleça aquilo que Hegel chama, em A fenomenologia do espírito, de comunidade universal de bens em que se proveriam as necessidades sem distinções ou hierarquias e, para citar, superar a exploração do ser humano pela administração comunitária das coisas.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
1. NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Por uma renovação marxista da Teoria da Dependência. Juazeiro: Oxente, 2022. Se a economia, conforme salientava Engels, é a reprodução da vida, urge, primeiro, descolonizar epistemologicamente a ciência econômica para, depois, mais bem articular a libertação econômica. O livro é um ensaio fundador dessa superação decolonial da ciência econômica tradicional, versando sobre os caminhos factíveis da libertação econômica da América Latina, Ásia e África, desvelando a inflação e a dívida pública como principais instrumentos de dominação colonial e todos os deslocamentos políticos feitos para ocultar essas duas questões crucias, desde a questão das relações de trabalho às relações tributárias, num descortinar da totalidade que projeta a necessidade de refundar a economia no trabalho vivo e no metabolismo ser humano e natureza.
2. DARWIN, Charles. The origin of species. Hertfordshire: Wordsworth editions, 1998. Nas cartas em que tratam das ciências naturais, Marx e Engels revelam o evolver da compreensão de Darwin.
3. Sobre o conceito de ciência em Marx e os desdobramentos possíveis, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 202