Tag Archives: Luís Eduardo

O RETORNO ESTRUTURALISTA A SCHLEIRMACHER: A VIA DAS CIÊNCIAS DO TEXTO

A Manfred Frank e a Lauro Campos

Por sempre nos movermos no horizonte de concepções prévias, a compreensão se apresenta como um círculo no qual as visões são condicionadas. Para Gadamer, o círculo hermenêutico não é apenas uma relação formal entre o todo e a parte, uma relação mecanicista, mas apresenta um nítido sentido produtivo-material. O círculo hermenêutico se apresenta como totalidade em provimento: como a obtenção de um saber mais abrangente. Em toda interpretação atua sempre uma pré-compreensão como condição de possibilidade. A interpretação é estruturada por uma compreensão prévia. Na medida em que a interpretação consiste na mediação daqueles pré-elementos não corre o risco de sucumbir a certo irracionalismo? Como na interpretação verifica-se o vir à tona dos elementos prévios da compreensão?

Gadamer aproxima o tema da finitude (Heidegger) e o tema do negativo (Hegel). À finitude como a impossibilidade do saber absoluto da história é aditado o negativo, não como uma limitação, mas como a experiência que abre espaço para um saber mais abrangente. A finitude, como o ser-aí mergulhado na tradição que lhe acontece, implica a superação do historicismo arrimado na crença de um saber absolutamente objetivo do histórico. A finitude revela a imersão do ser-aí, a pregnância à tradição que nunca se apresenta sob a forma de objeto. A própria imagem do conhecimento se modifica. Não é mais figurada como um sujeito diante de um objeto, pois, na medida em que o ser-aí já é histórico, todo sujeito já é ser-em-situação e não num estado de sobrevoo a partir do qual pudesse, isento das determinações espaço-temporais, apresentar um domínio absoluto sobre todas essas determinações. O ser-em-situação indica que a história nunca será um objeto alheio, mas a matéria em que já se detém desde sempre o ser-aí.  A finitude enquanto historicidade rechaça tanto uma objetividade alienante quanto uma autotransparência expressa numa autopossessão completa.

A finitude, nesse contexto, demanda a crítica da fé metodológica de um saber objetivo que pudesse fazer da tradição um objeto alheio ao sujeito cognoscente. É aqui que emerge o tema da pertença à tradição. Gadamer critica a tendência do saber científico que, ao figurar o conhecimento como a posição subjetiva em face de um objeto, esquece que a tradição já opera tanto no sujeito quanto no objeto.  A tradição não é um objeto posto aos olhos de um sujeito desenraizado, em pura contemplação. Compreender, diz Gadamer, é pertencer ao ser daquilo que se compreende.

A tradição configura-se como instância de veracidade. A tradição, como comunidade de preconceitos, permite, primeiro, a distinção entre os preconceitos, imbuídos de historicidade, e os juízos da subjetividade, espelho deformante. O estímulo da tradição permite, segundo Gadamer, separar os bons preconceitos dos maus preconceitos. A produtividade hermenêutica do círculo hermenêutico tem uma riqueza produtiva na medida em que permite destacar um preconceito e aferir sua validade histórica. Destacar um preconceito não é afastá-lo dos olhos nem depurá-lo pela abstração, mas visualizar nele a força operante e produtiva da tradição.

Um dos pontos mais críticos da hermenêutica de Gadamer é estabelecer uma linha de demarcação entre o preconceito que obscurece a interpretação e o preconceito que, ao receber o estímulo da tradição, permite fundar um acordo comum. É nesse contexto que Gadamer erige a tradição como instância de validação da estrutura prévia de compreensão. Na medida em que uma pré-compreensão se estrutura no estímulo que a continuidade histórica proporciona obtém sua validade intersubjetiva.

A história efeitual significa a força operante do passado que faz do tempo não um abismo, mas, pela continuidade, reverbera nas compreensões do agora. A compreensão não se limita a reproduzir um sentido já consolidado no passado, mas à cada situação revive e revigora-se na produção de novos sentidos que, não obstante, não se desalinham dos sentidos pretéritos. A tensão entre o passado e o presente é um desafio para o intérprete que, não sendo meramente passivo, também não pode ao alvedrio criar tudo como se fosse tábula rasa. A ênfase na tradição implica em compreender a subjetividade como espelho deformante.

O problema, como assinala Luigi Pareyson, não é a subjetividade em si, mas a subjetividade que se mantém fechada e insulada e não se dispõe à alteridade da verdade que emerge da historicidade. Gadamer, também, nesse ponto, não articula uma interpretação adequada de Hegel. É certo que Hegel põe ênfase no espírito objetivo, mas não limita a atividade do sujeito a uma inserção mecânica na objetividade. Nem a objetividade em Hegel deve ser entendida como algo alheio à subjetividade. Para Gadamer, Hegel hipostasia a subjetividade transcendental de forma que todas as operações do conhecimento, em última instância, remontam à reflexibilidade da subjetividade. Não parece que essa interpretação guarde consonância com o texto de Hegel (1).

Gadamer resgata o conceito de preconceito cujo destino foi obumbrado pelas tendências do iluminismo.  O iluminismo propunha a crítica da tradição a qual sempre esteve vinculada ao poder factual insuscetível de questionamento. Dessa forma, a tradição se identifica com a opressão. Para Gadamer, tal perspectiva resulta exagerada, pois, existe uma legitimidade própria da tradição que não se conforma com o poder factual dos dominadores. Na linha da analítica do ser-aí de Heidegger, Gadamer confere ao conceito de tradição uma nova compleição e se lhe atribui a capacidade de legitimar as formas de comunhão inseridas na historicidade da linguagem. A linguagem passa a ser vista como um medium em que opera desde sempre um acordo, uma comunidade de pré-juízos. Nessa perspectiva, a tradição, em vez de figurar como instância opressiva, passa a ser cânone capaz de diferenciar e legitimar as antecipações estruturantes da histórica.

O texto, mergulhado que está na tradição, já está imbuído de estruturas prévias que orientam o intérprete. Aqui se flagra uma contradição que parece muito mal resolvida na teoria hermenêutica de Gadamer. Em várias passagens, ressalta a alteridade do texto, isto é, que o intérprete deve estar aberto ao que o texto tem a dizer, mas, ao mesmo tempo, assevera que somente pelo estímulo da tradição, pelo destaque de um preconceito, é possível asseverar a legitimidade de uma interpretação. Ao se dirigir a um texto, o intérprete não está vazio de pressuposições; na verdade, não há interpretação que não esteja inserida numa totalidade estruturante, numa totalidade de sentido de tal forma que o intérprete não encara o texto sem a mediação das estruturas prévias. Não obstante, a abertura a alteridade do texto é fundamental para que o intérprete não sobrecodifique o texto, impedindo o trabalho do texto. Como Gadamer resolve essa antinomia? Para ele, uma antecipação de sentido é fundada quando encontra ressonância no texto. Dessa forma, é o texto que valida os preconceitos – entendidos como estruturas históricas.

Mas, mesmo ressaltando a alteridade do texto, falece a Gadamer a compreensão da linguística moderna e seus aportes fundamentais para articular melhor a relação entre texto, autor e intérprete. O compreender o método como necessariamente alienante talvez tenha travado o desenvolvimento mais aprofundado das ciências do texto bem como ofuscado a compreensão das lições axiais que Schleiermacher antecipou acerca do método gramatical.

Por isso, Gadamer visualiza todo método como objetificante, tornando o objeto desvinculado da tradição a que pertence. A recusa de toda metodologia parece indicar que Gadamer nem sequer coloca o problema. Tanto é que mesmo evitando falar em interpretação correta, fugindo a toda implicação normativa de regras de intepretação, não afirma que, em toda a interpretação correta, os conceitos temáticos desaparecem naquilo que fazem falar na interpretação?

A falha do sistema de Gadamer é não situar corretamente a relação entre a subjetividade e historicidade e atribuir a todo método uma natureza reificante. Talvez por isso Gadamer tenha afirmado que os elementos subjacentes que operam na interpretação não se tornam conscientes e, mesmo diante de uma boa interpretação, desaparecem, comprometendo toda noção de método, que constitui elemento fundamental de toda hermenêutica. É preciso remarcar que a construção de métodos não significa, de per si, reificação do conhecimento, mas que a reificação que eventualmente possa ocorrer não é algo intrínseco ao genuíno método. Outrossim, nem todo método envolve um distanciamento alienante da realidade. Assiste razão a Gadamer ao afirmar que a pertença à histórica inviabiliza uma metodologia que se supõe acima dos condicionamentos. Todo conhecimento emerge de seres-em-situação, sendo enraizados na história. Não obstante, o fato de estar mergulhado na história não significa a impossibilidade de um saber objetivo e de métodos científicos dotados de objetividade.

Ainda que não tenha desenvolvido um método, Gadamer traz alguns aportes que são essenciais para a apreensão de qualquer hermenêutica. A inevitável historicidade do ser-aí significa dizer que sempre se está no horizonte de uma situação. Desde Kant, o conceito de horizonte tem vigência na filosofia alemã. ‘’Horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto”. Se em Heidegger  justamente por estarmos já numa certa compreensão do ser o ser era oculto, Gadamer demonstra que a estreiteza do horizonte estar em ver apenas o que é próximo,  limitando-se o âmbito de visão. Por isso, a boa interpretação é aquela em que o horizonte do intérprete se amplia e se alarga na medida mesma em que se movimenta e se abre ao trabalho do texto na superação dos obstáculos hermenêuticos. A ideia de horizonte também se articula com a dialética da pergunta e da resposta que Gadamer vai buscar no historiador britânico Collingwood. Ao interpelar as ações históricas dos agentes, Collingwood afirmava que toda ação histórica é a tentativa de responder às perguntas que emergem da situação. Ao perguntar a que questão os agentes históricos respondiam, é possível identificar o sentido histórico de suas ações. Ao incorporar essa tese, Gadamer afirma que a obtenção de uma situação hermeneuticamente fundada está em propor as questões que a própria tradição coloca e que ressoa nos textos. A obtenção de um horizonte não significa apartar o que está próximo, mas, por meio de um possível distanciamento, inseri-lo numa perspectiva mais abrangente. É sempre possível alargar o horizonte.

Para o intérprete, no que se refere ao aspecto gramatical, o distanciamento fundamental é a distinção entre as associações psicológicas e o significado das palavras. Desde Frege, a distinção entre representação e significado encontra cidadania na linguística. O verdadeiro intérprete suspende as representações subjetivas para partilhar em comum com o significado sempre de natureza comunitária e não só intersubjetiva. Por isso, a apropriação privada da linguagem demonstra que o intérprete não partilha da comunidade dos intérpretes, alheando-se ao ponto de avocar o direito de instaurar a linguagem a partir das próprias representações. Toda interpretação correta sempre envolve a participação num sentido comunitário. A questão que emerge é porque em certos momentos da história e sob que injunções um intérprete se arroga o direito de corroer a linguagem comum e impor suas representações como se fossem intersubjetivas. Marx, em Ideologia Alemã, afirma que a linguagem é a consciência prática e exsurge da necessidade de comunicação entre os seres humanos. A linguagem é desde sempre comunitária.

A reinvenção da hermenêutica passa pela recepção estruturalista de Schleirmacher, enfatizando-se não mais a analítica existencial de Gadamer, mas as ciências dos textos na dinâmica concreta das produções dos sentidos. Nesse sentido, Schleiermacher, na medida em que colocou a necessidade da hermenêutica não no acordo prévio, mas na urgência em resolver os ruídos de comunicação, sempre esteve atento à necessidade de erigir um método gramatical rigoroso capaz de fundar critérios para aferição de interpretações corretas e idôneas. Não deixa de surpreender que, muito antes de todo estruturalismo linguístico, Schleiermacher tenha estabelecido as premissas sólidas de uma ciência do texto. O retorno a Schleirmacher requer, portanto, superar a tradição psicológica com que sua teoria é incorretamente divulgada, para situá-la na juntura entre interpretação divinatória (autor) e interpretação gramatical (texto) e sua recepção (leitor) numa dialética fecunda e criativa em que os sentidos são produzidos de forma objetiva e comunitária sem qualquer disseminação corrosiva (2). Para este mestre, o falar comum é o remédio contra a irracionalidade que pode integrar as subjetividades fechadas e crispadas na aliedade (3).

  • A interpretação de que a filosofia remonta todo o conhecimento às operações da reflexividade do sujeito de conhecimento é equivocada. A compreensão de A filosofia de Hegel é que a subjetividade, desde que se mergulhe no ritmo da coisa, pode alcançar a objetividade e a efetividade do conceito. Longe de Hegel de resumir o conhecimento aos meandros da subjetividade insulada.
  • Friedrich Schleirmacher antecipou todas as conquistas da linguística de Saussure.
  • Aliedade é a suspensão do mundo em voo imóvel e quebra da comunidade de comunicação. A aliedade, pois, se apresenta no intérprete que impõe ao texto suas representações (subjetivas), imaginando-se acima da comunidade e da história. Desenvolvi esse conceito com base na poética de Octavio Paz, poeta da alteridade e do encontro criativo com o outro. A interpretação correta é aquela que, suplantando a aleidade, agasalha a alteridade do texto.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

ELOGIO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

A Frantz Fanon, Robert Nesta Marley e Mariele Franco (1)

Afirma-se que o século XX teve, no plano filosófico, uma destinação vinculada ao giro linguístico ou à virada ontológica. O giro linguístico se caracteriza pela ênfase na transcendência da linguagem que, entendida como medium, alberga as condições do entendimento mútuo aos quais pragmaticamente estão todos vinculados de tal forma que a corrosão dessas premissas só é possível com a destruição das próprias condições do diálogo. A linguagem figura não mais como representação do mundo, uma espécie de reflexo passivo, mas como estrutura simbólica do mundo. Essa tendência de encontrar na linguagem um terreno a salvo da colonização da razão instrumentalizada à lógica do capitalismo encontra na teoria da ação comunicativa de Habermas uma consumação plena.

A linguística moderna sempre se inseriu na relação complexa entre a semântica, entendida como teoria da referência extra-linguística, e a pragmática, que consolida a mirada nas situações concretas dos atos de fala de forma a vislumbrar um a priori compartilhado repassado por tradições culturais, decisões institucionais. Na pragmática, o mundo do inteligível é destranscendentalizado na medida em que as antecipações pragmáticas das situações de fala indica o mundo da vida como pano de fundo que condiciona a experiência social.

Haurindo em Husserl o conceito de mundo da vida, articula-o como pano de fundo das experiências sociais, como uma camada pré-temática de sentido que funciona na qualidade de posição prévia para a compreensão e para orientação social na medida em que traduz uma forma de vida redutora da contingência. Nesse sentido mais amplo, o mundo da vida serve para explicar a forma do laço social e erigir o agir comunicativo em que as interações intersubjetivas prefiguram o entendimento enquanto acordo comunitário.  O agir comunicativo, ao implicar na superação do esquema sujeito-objeto, aposta no paradigma da intersubjetividade em que os sujeitos sociais, na medida em que vinculados à pretensão de verdade, podem, mediante o diálogo, chegar ao entendimento, isto é, ao acordo sobre uma coisa no mundo.

A entronização por Habermas da categoria de mundo da vida como pano de fundo para uma ação comunicativa voltada ao entendimento mútuo e à correspondente ideia de que, na fatualidade, existe a idealização virtual do consenso constitui uma forma de fuga diante da reificação do trabalho bem como da criação de uma zona espiritual cujo efeito persuasório diminui quanto mais se torna ilusória.

A ideia de que existem expectativas contrafácticas nas quais as condições do diálogo já estão presentes e que funcionam como pano de fundo ineliminável resta idealista. Ainda que Habermas reconheça formas violentas que corrompem o discurso, a identificação da linguagem como lugar da razão que universaliza o acordo na medida em que, na instauração do visar ao outro, subjaz as condições transcendentais do diálogo e do entendimento, não ignora as relação de poder instaurada de forma violenta? Contrafático é o que, mesmo não tendo efetividade, mesmo contrariando a dinâmica dos fatos, permanece ainda válido. Não é uma forma de idealizar uma comunidade para evitar o confronto com as formas fáticas de dominação? A idealização da linguagem como lugar do acordo não corre sempre o risco de santificar a dominação, fática, dos espoliadores? Não seria a ênfase no medium linguístico uma forma de reservar uma ilusória forma de comunidade para fugir da dor de milhões de pessoas no cotidiano, isto é, da ausência de comunidade ali onde a questão da reprodução da vida é central?

Ao substituir a categoria do modo de produção pelo mundo da vida, Habermas, esse grande filósofo, se afasta completamente do marxismo. O itinerário de Habermas da teoria crítica até à noção de uma democracia consensual na forma de autolegislação concretizável mediante procedimentos em que, pela co-originariedade da autonomia privada e da esfera pública, a formação da opinião e da vontade seja a mais abrangente de forma a levar a conclusão provável de que todos aquiescem com o conteúdo produzido, indica uma aproximação com o pensamento liberal. A legitimidade se confunde com a gênese democrática das leis. Não se vê, portanto, qualquer debate da economia e das contradições da sociedade. Na verdade, o próprio Habermas afirma que sua teoria se faz para evitar o risco do dissenso. Mas, conforme diz Rancière, as formações sociais não se resolvem numa conta perfeita e que a placidez das classes dominantes pode ser interrompida pela emergência dos não contados, emergindo as contradições. Enfim, se há política é porque o dissenso pode ganhar figura, questionando a ordem colonial.

Quanto ao destino ontológico, Heidegger inaugurou, colhendo as melhores intuições de Husserl, a compreensão do ser.  A distinção entre o como apofântico enquanto terreno dos juízos lógicos estruturado na relação entre um sujeito e um predicado, o que na figuração simbólica se expressa “A é B”, e o como hermenêutico enquanto dimensão existencial que condiciona a enunciação, indica uma referibilidade à vida prática.

De fato, é um avanço reconhecer que um juízo tal como ‘o céu é azul’ não se consubstancia sem uma visão prévia, posição prévia do que seja céu e do que seja azul. Heiddeger, em diversas passagens, afirma que a vida prática, mesmo que não se expresse em enunciados, ainda sim é teórica.

Aqui, verifica-se que o como hermenêutico enquanto vida antepredicativa encerra sentidos prévios emergidos da experiência e não de celestiais conceitos, avançando para a retomada de aspectos que uma teoria do juízo é incapaz de responder. Não obstante, em Heidegger, o mergulho na vida prática sempre está associado ao prostrar-se decadente à lógica das coisas, e pela fuga diante dos afetos, como a angústia, que poderiam indicar uma abertura ao mundo e ao questionamento.

O tema do cotidiano revela-se meramente negativo na medida em que indica o mergulho no si impessoal e na fuga da questão metafísica sobre o sentido do ser. À inautenticidade de um mero viver à maneira de coisas, Heidegger opõe, ao menos em Ser e Tempo, a assunção do destino do ser humano à essência que lhe cabe: pensar o ser.

O evento, nessa senda, é apropriação do destino do ente cuja essência é pensar, não o seu sentido próprio, mas o sentido do ser. Por isso, Heidegger recusou a ideia de Sartre, presente na conferência O existencialismo é humanismo, de que o ser humano é o único ser cuja existência precede a essência, pois, primeiro existe, mas, dentro do horizonte do tempo, escolhe o que vai ser. O que Heidegger critica é o fato de Sartre reduzir a questão ontológica à questão antropológica. Portanto, a saída para vida inautêntica seria o evento de se apropriar do pensar cuja destinação é pensar o ser para além de qualquer ente ainda que somente pelo ente a questão do ser se torna visível.

Em Heiddeger, as análises do cotidiano, muitas vezes, se aproximam da análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Diante de um determinado objeto, Heidegger apreende elementos que estão articulados à experiência cotidiana numa visão mais abrangente, atingindo um sistema de referências que, apesar de não vinculados ao modo de produção, já apresenta dimensões da realidade que uma teoria do juízo não abarca.

A própria figuração do conhecimento como a relação entre um sujeito cognoscente, desprovido de historicidade, e de um objeto de estudo, destituído de movimento, é superado pelo reconhecimento da facticidade do ser-aí que, desde sempre, já está mergulhado numa visão prévia do mundo. Toda compreensão já está estruturada numa pré-compreensão. O círculo hermenêutico, diz Heidegger, não é um círculo vicioso. A questão, nesse contexto, não é negar o círculo, mas saber se inserir nele desde que as pré-compreensões sejam norteadas e voltadas à retomada das coisas mesmas. Mas em que consiste esse retornar às coisas mesmas?

A filosofia da libertação, na linhagem de Levinas e desenvolvida por Enrique Dussel, parte da ideia de que a ética é a filosofia primeira e não se concebe como construção de enunciados. Significa, sobretudo, uma atitude diante do desafio que o rosto do Outro, o Outro excluído, lança à filosofia que, rompendo a ontologia do neutro, assume a responsabilidade desinteressada diante de outrem. Se a rostidade em outros pensadores se apresenta como a figura do poder, na filosofia da libertação, ao partir desde a América Latina e das contradições lancinantes e pungentes das formações submetidas à espoliação colonial, o Rosto é sempre o rosto dos indígenas, dos negros, das mulheres, das crianças. A filosofia da libertação se engaja na totalidade aberta em que a questão da classe, gênero, raça e faixa etária demanda uma lógica analógico-dialética. É dos rostos, que colocam em questão, na premência de sua presença, desde um não-lugar, a injustiça intrínseca das formações sociais capitalistas, que a filosofia da libertação parte. (2)

Mas o responder à interpelação do Outro exige, operando-se a redução fenomenológica, chegar à vida operante, reconhecendo-se que nem todos integram a comunidade de comunicação, que a brutalidade do poder nas formações periféricas não instaura nenhuma comunidade já que prevalência do ego colonial rompe sistemática e diuturnamente as premissas básicas do discurso, dentre elas, o reconhecimento do outro como legítimo outro. A análise da limitação da comunidade da comunicação à branquidão exige um giro decolonial que, inevitavelmente, vai se ver a braços com a centralidade da discussão econômica.  

Esse giro é de fundamental importância porque o que caracteriza a filosofia denominada pós-moderna é a neutralização da questão econômica e a decorrente resignação ou, pior, da capitulação ante o capitalismo. A demonstração da limitação da comunidade da linguagem, inclusive pelas análises dos confrontos históricos, faz que a filosofia da libertação tenha visto a necessidade de estabelecer a pragmática econômica antes da pragmática linguística.

Sendo o modo de produção capitalista marcado pela lei absoluta da produção de mais-valia, isto é, pela extração de mais-trabalho, e, tendo em vista a divisão internacional do trabalho na dinâmica mundial, verifica-se que, na América Latina, a irracionalidade do capitalismo se acentua em contradições expressas em formas de exploração ainda mais intensa do que as existentes no centro do sistema-mundo.

A totalidade do capitalismo é autorreferente e se enucleia na necessidade de reproduzir as condições para a produção de mais-valia nada tendo que ver com as necessidades reais dos seres humanos. Totalidade tão fechada que a vida humana nada mais é que um mero episódio na produção de mais-valia (3). Mas todo sistema autorreferente encontra aporias e contradições que abalam sua consistência superficial e ideológica.

Desde Hegel, a concentração de riquezas sempre esteve intrincada com a produção de desigualdades. O que abala a totalidade fechada do capital é a presença da exterioridade do Outro cuja apresentação é irrepresentável na juntura da laminação unívoca da ordem e, na medida em que se organiza e busca furar os espaços pétreos das hierarquias, evidencia as injustiças e anuncia a crítica e a práxis transformadora. Toda tarefa reativa da ordem é para fazer o Outro irrepresentável apenas representado na dinâmica interna colonial sob a perspectiva do inimigo. Imagens, representações e aparatos coercitivos são mobilizados para que a verdade traumática da injustiça intrínseca da totalidade autorreferente não se manifeste nas suas fragilidades, para que se coarcte, de todas as formas, a elucidação advindas das formas organizativas das classes dominadas e dos intelectuais orgânicos.

A filosofia da libertação, portanto, encontra-se no plano de imanência em que a premissa da ética do Outro exige a critica das formações econômicas na modernidade periférica: a injunção de ouvir as vozes históricas dos pobres engaja a necessidade de transformação da economia desde outras bases, desde a superação analética da lei absoluta da extração de mais-trabalho, que informa o capitalismo.

Podemos afirmar, com Aristóteles e com Hinkellamert, que, no capitalismo, a economia deixar de ser o lugar de reprodução da vida para se converter em crematística, isto é, o lugar de circulação do capital financeiro sem qualquer mediação produtiva. No estágio atual do capitalismo, a economia vira um espectro sem qualquer natureza produtiva (7).

Em Verdade e Método, Gadamer afirma que a filosofia se realiza na escuta do logos, para a filosofia da libertação, e a geração que o segue, a filosofia se realiza no cruzamento entre a ética e a política e a pragmática econômica, para, ouvindo as vozes dos povos desapropriados, possamos no apropriar coletivamente da vida em suas mais variadas dimensões. Devemos perguntar: que novos mundos podemos fazer coletivamente? (8)

  1. Poema que dediquei a quem viveu a ética da coragem:

Todo nome de Maria esplende em teu périplo
São mães Luandas, mãos de Dakar
Toda Maria colheu no vão dos negreiros navios
Teceu e urdiu teu estandarte para que pudesse cerzir
Em dor e festa a consagração de uma aurora inexorável

No abismo do tempo alteiam-se
A maré e a fibra das verdades gizadas pelo teu passo;

O peso do chumbo e a covardia dos salteadores
São inócuas para desbotar as amoras e as américas nascidas
Em tuas madeixas
Porque o que movem Marias se alinha aos equinócios dos povos,

Todas as constelações expandirão mais brilho até ofuscar as opressões
No instante mesmo em brotam mais Melodias
E a certeza de que a história irá parir mais de teus filhos
Todo nome de Maria, Marielle, esplenderá

  • O desafio da linguística é resolver essa dualidade. Habermas, em outras obras, reinvindica o conceito de objetividade e de referência, incorporando aspectos da semântica.
  • Penso que à ontologia de Heidegger é preciso opor a ontologia de Levinas e da Badiou.
  • Em Teoria do Sujeito, livro fundamental e de atualidade gritante, Badiou usa o termo fora-do-lugar (horlieu) para fundar a lógica dialética. O que está inscrito sob a forma de opressão é o que, quando se organiza, questiona o Um enquanto organização dos lugares da dominação. A meu ver, Teoria do Sujeito é a obra mais importante de Badiou, cujo estilo difícil faz torcer a língua francesa para mais bem expressar na língua mesma a torção dialética. Obra fundamental para quem quer compreender a lógica dialética.
  • No Livro Apel, Ricoeur, Rorty y la filosofia de la libertácion, Dussel apresenta o modo como Alvarado sobrecodifica o texto Bíblico sobre o texto do Popol-Vuh dos Mayas. A análise das sobrecodificações eurocêntricas são cruciais para a consolidação da hermenêutica decolonial.
  • Penso que a crítica de Dussell é dirigida à noção de totalidade fechada e não à totalidade aberta, que caracteriza a verdadeira dialética. A remissão a Sartre confirma essa tese.
  • O filme Cosmópolis, de David Cronenberg, demonstra a disseminação do capital que se desgarra de qualquer atividade produtiva para se tornar a circulação autorreferente de dinheiro: o capitalismo como espectro. O processo de desindustrialização da América Latina é uma prova dessa tese.
  • O grande desafio teórico-prático é pensar as formas de organizações coletivas que tenham a capacidade de formar um bloco nacional-popular-revolucionário. Nesse sentido, Alberto Guerreiro Ramos, já nos de 1960, salientava que a teoria da organização é a chave-mestra para a disciplina coletiva das transformações. Nesse sentido, a forma-partido não está perempta, mas deve ser capaz de fazer o trânsito entre os movimentos de bases e a institucionalidade sem fetichizar-se e ter um programa capaz de aferir a totalidade. Também, o corte para definir a esquerda se torna mais simples: é de esquerda quem luta a favor de um novo modo de produção. O resto é pálida oposição consentida e bazófia. Ver: RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA DA OBRA DE ENRIQUE DUSSEL

  1. DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofía de la liberación: superación analéctica de la dialectica hegeliana: Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974. Obra fundamental para entender o método analético.
  2. DUSSEL, Enrique. 20 tesis de política. México: Centro de Cooperação Regional para la Educación de Adultos da América Latina y el Caribe, 2006.
  • DUSSEL, Enrique. El último Marx y la liberación latino-americana: un comentario a la tercera y a la cuarta redacción de “El Capital’’. Obra fundamental para fundar a verdadeira ortodoxia marxista. Nela, os conceitos de trabalho vivo, subsunção e, especialmente, a distinção entre valor e fonte criadora de valor se apresentam no esclarecimento cabal de Marx. Seguindo a linha desse grande filósofo, desenvolvi esses conceitos marxianos. Ver: NASCIMENTO, Luís Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.

Luís Eduardo: Prolegômenos para uma hermenêutica analógica

FOTO DE LUÍSEm artigo publicado no site Justificando, o professor da UNEB Luís Eduardo Gomes do Nascimento, apresenta-nos noções prefaciais de uma hermenêutica a ser acolhida pela filosofia moderna como compreensão interpretativa consistente na revivescência psicológica dos processos de pensamento capazes de transpor certo saber necessário para imergir-se numa comunhão de almas.

Assim, negando a assertiva de que a escritura se desvela ainda presa à dicotomia epistemológica explicação/compreensão, onde natureza se explica e história se compreende, o insigne professor preleciona, em seu texto introdutório, que a hermenêutica seria a indicação do  a priori intersubjetivo sobre a mera descrição dos fatos.

Destarte, por sua vez, a hermenêutica analógica apresentar-se-ia como uma saída para a celeuma entre univocidade e equivocidade. E uma vez que não há como apartar a analogia da interpretação do direito penal, o qual é informado pelo princípio da legalidade, restaria tão somente encontrar, dentre as múltiplas significações do ser, uma filiação que, sem proceder de uma divisão de gênero em espécie, constituisse ainda assim uma ordem.

 Leia o texto Prolegômenos para uma hermenêutica analógica, em:

http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/16/prolegomenos-para-uma-hermeneutica-analogica/

Comentários: Adão Lima de Souza

Palestra sobre ‘Crise Jurídica’ na FACAPE terá ex-ministra do STJ.

elianacalmon300x200

Palestra organizada pelos professores Celso Franca e Luís Eduardo discutirá os problemas no poder judiciário brasileiro e as consequências para a economia do país, com a presença da ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Eliana Calmon.

De acordo com um dos organizadores e professor da Facape, Celso Franca, o tema do debate faz referência a um problema histórico do país. “A corrupção nos três poderes é algo que existe há muito tempo no Brasil. O que vemos são determinados legisladores de instituições jurídicas não buscando aquilo que a população requer. No nosso ponto de vista isso é um problema, pois atrapalha o desenvolvimento do país. Ninguém melhor que a ex-ministra do STJ para alertar os alunos sobre a realidade dessas instituições”, afirmou.

O colóquio acontecerá no auditório da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (Facape) no dia 5 de março de 2015.

Qui iure vindicet? – ONDE ESTÁ A ESQUERDA?

“Dedico este pequeno texto a minha filha Luiza Manhã de três anos”

LuisA nossa época pode ser representada como a de uma neutralização de toda saída emancipadora. A sua ‘tolerância’ lacrimosa é erigida para evitar o escândalo que toda política implica. Só há política quando uma situação nos coloca diante de uma forte oposição em que os termos são incomensuráveis. Podemos exemplificar com a oposição entre os plebeus insurretos e os patrícios ciosos do conformismo. Entre eles não havia elemento comum a não ser a luta. Por isso, a política emerge quando se instaura a comunidade do litígio (Ranciére) e não a comunidade do consenso (Habermas).

Enquanto uma relação paradoxal nos coloca diante de uma escolha radical, a relação ‘tolerante’ nos coloca ante uma falsa oposição em que os próprios termos são falsos. Slavoj Zizek, no seu livro “Em defesa das causas perdidas”, lembra que a oposição atual entre democracia e fundamentalismo existe para foracluir a hipótese emancipadora.

A oposição entre a direita e a esquerda é uma típica situação de falsa oposição, pois entre estes termos se visualiza uma elemento comum que indica consenso. Que consenso unifica a direita e a esquerda? O consenso do capital-parlamentarismo. Para ser mais direto, o elemento comum é o capitalismo.

Direita e esquerda são Fukuyamistas, pois enxergam no capital-parlamentarismo o fim da história, partilhando, portanto, da mesma concepção de que a única forma do Bem é o menos pior. Quando isto acontece, a política deixa de existir. É preciso lembrar Jacques Ranciére quando afirma que uma sequência política é rara e só ocorre quando a ordem natural da dominação é interrompida por uma oposição incomensurável. Se esquerda e direita são comensuráveis na medida em que se verifica um elemento comum qual seja a aceitação da economia de mercado como necessária, é sinal de que não existe política e, portanto, vivemos em um tempo modesto e falso.

Somente um ingênuo ou um imbecil (ou os dois) acha que entre Dilma e Aécio há antagonismo. Como salienta Ernesto Laclau, o mecanismo básico da ideologia e, podemos aditar, da política contemporânea, é transformar um antagonismo em simples diferença. Entre Dilma e Aécio o que há é simples diferença porque, quanto ao essencial, concordam: na aceitação da necessidade intransponível do capital-parlamentarismo.

Quando a esquerda deixa de representar, se é que em algum momento representou, uma verdadeira oposição à direita, é porque chegou o momento de ter a coragem de dizer que esta esquerda faliu e deixou-se absorver pelo ideário direitista que é o conformismo e a aceitação da dominação como o único horizonte politico. Então, com esta esquerda, quem precisa de direita?

Quando Espártacus deflagrou a insurreição dos escravos, abriu com seu agir um possível cuja afirmação já perfurava a naturalidade da dominação. No momento mesmo da declaração da revolta já deixou de ser escravo porque se alinhava à divisa do possível/impossível que implica no engajamento: podemos logo; devemos.

A esquerda, sobre ser medíocre e confortada, não pode instaurar uma verdadeira política já que, refestelando-se na cadeira macia dos palácios e paços, renuncia, se é que já teve este ideal, a paixão pela igualdade.

Alain Badiou ressalta que o primeiro grito xenófobo na França não adveio de Le Pen, mas de um ministro de esquerda, demonstrando que há, nas questões centrais, uma cumplicidade entre a esquerda e a direita. Lula não foi o maior continuador de Fernando Henrique?

Diante desse cenário, não devemos ceder à conclusão de que devemos reinventar a esquerda, mas sim encontrar novas formas de organização que escapem a forma-partido com o fito de salvar o povo dos seus supostos salvadores, isto é, libertar o povo da tentação do esquerdismo. É preciso reinventar a política que se dá sempre no confronto e não no consenso enfadonho de nossa época.

Ao entabular esta crítica, não estou fazendo apologia da direita. Ao revés, estou denunciando a fraqueza da esquerda. Mas como os esquerdistas são péssimos dialéticos, irão afirmar que estou fazendo o jogo da direita. É que eles só entendem a lógica do ”isto ou aquilo” e não percebem que o pensamento radical cria, como diria o meu mestre Alain Badiou, um regime diagonal. Entre a direita e a esquerda, resta a diagonal da emancipação humana.

Quando irromperam várias manifestações em julho do ano passado, ficou evidente que a oposição PT x PSDB era uma mera diferença e não um antagonismo. Por isso, os manifestantes se declaram contra os partidos. Não demorou muito para que a medíocre dialética ressurgisse na boca de alguns que apresentaram o argumento tipicamente autoritário: partidos políticos ou ditadura. A forma deste argumento não é idêntica àquele de dolorosa lembrança “Brasil, ame-o ou deixou-o”.

É preciso romper com esta pobre dialética e esta gente que se coloca como redentora de nosso povo. Eles fazem o jogo do capital. Como diria Albert Camus precisamos de homens de Prometeu que, mesmo na densa escuridão, mantem o coração ligado às primaveras do mundo. Precisamos ser os guardiões do futuro da Ideia da Igualdade e da Justiça e não esquerdistas deslumbrados com o consumo.

Luís Eduardo Gomes do Nascimento
Advogado e Professor da FACAPE e UNEB

Qui iure vindicet? – O Problema da Interpretação conforme Kelsen.

LuisKelsen, no seu clássico “Teoria Pura do Direito”, apresenta a famosa metáfora de que o direito a aplicar é uma moldura em que várias interpretações são possíveis. Acrescenta que o ato de aplicar o direito é sempre um ato de vontade e que a questão de saber qual é, dentre as várias possibilidades que se apresentam dentro da moldura, a escolha correta não concerne à ‘ciência jurídica’, mas à política do direito.

Como Kelsen postula o critério metodológico da pureza que implica na exclusão dos dados políticos da ciência do direito, incumbe a esta simplesmente reconhecer a plurivocidade da norma e que a tentativa de encontrar uma única resposta justa é vã e é expressão da ideologia da segurança jurídica.

Com tais assertivas Kelsen nomeou o problema sem resolvê-lo. Afirmar que interpretar é um ato de vontade (“Eu quero”) e não um ato de cognição (”Eu Penso”), significa reconhecer que interpretar é um ato arbitrário e, por isso, insuscetível de controle racional.

Aqui kelsen rende-se a Hobbes que, no Leviatã, deu expressão jurídico-política ao brocardo latino “auctoritas non veritas facit legem” (A autoridade, não a verdade, faz a lei).

Certa vez fiz um exame e perguntei o que garantia a legitimidade das decisões judiciais. Um aluno me surpreendeu ao responder que era a assinatura do juiz.  Quando fui entregar o resultado, fiz-lhe algumas indagações e ele, peremptório, disparou: como interpretar é uma questão de poder e não de saber, o juiz ,investido da jurisdição, ao assinar impõe a sua vontade travestida de vontade estatal. No fundo, a posição do aluno nada mais era de que o desenvolvimento da teoria de Kelsen que se coloca no extremo oposto da concepção tradicional da intepretação.

Se a hermenêutica tradicional via o juiz como boca da lei cuja atividade se limitava a encontrar o pensamento do legislador, a concepção kelseniana, reconhecendo a plurivocidade da norma, implica um voluntarismo irracionalista sem qualquer controle. É nesta encruzilhada que nos cabe pensar a hermenêutica jurídica e resolver este espinhoso problema.

Luís Eduardo Gomes do Nascimento
Advogado e Professor da FACAPE E UNEB
 

Qui iure vindcet? – Direitos Humanos é o novo nome do Niilismo Político.

LuisQuando Jeanne Deroin, em 1849, se candidatou à eleição de cuja participação estava excluída por ser mulher, buscava com tal ato político demonstrar a contradição de um sufrágio universal que exclui o sexo feminino. 

Quando Rosa Park , em 1955, sentou em um banco da frente do ônibus, lugar proibido aos negros por força das leis, mostrou os limites de uma constituição cuja premissa era a evidência (evidência, veja bem) de que os homens nascem iguais em direitos.

Ambas revelaram que a declaração universal dos direitos do homem trazia em sua gênese um processo de exclusão que lhe servia de complemento.

Os afamados direitos humanos são axiomas que convivem com inúmeras exclusões. Não obstante, são elevados à condição de motor da luta política. Afirma Lefort que ‘’apartir do momento que os direitos são postos como referência última, o direito estabelecido está destinado ao questionamento. Ele é sempre mais questionável à medida que vontades coletivas ou, se se prefere, que agentes sociais portadores de novas reivindicações mobilizam um força em oposição à que tende a conter os efeitos dos direitos reconhecidos. Ora, ali onde o direito está em questão, a sociedade, entenda-se a ordem estabelecida, está em questão.” 

Será que sob o pálio dos direitos humanos se pode empreender uma verdadeira política?

Seguindo Ranciére, a política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Destarte, os direitos do homem não servem hoje como mecanismo ideológico para que não exista a verdadeira política? Não promove uma espécie de resignação ao capital-parlamentarismo cuja única universalidade que conhece é a do dinheiro?

Como alerta Alain Badiou, o que subjaz na promoção dos direitos do homem é a concepção vitimária do homem, isto é, concepção de que é a condição de animal sofredor que define o homem. De um lado, existe o que sofre. De outro, o que identifica o sofrimento e luta para cessá-lo.

Desta concepção, a única ”política” que emerge é a da piedade e do envio de alimentos e remédios aos esfarrapados. Quanto à proposta de alteração radical das condições socio-econômicas que permitem a existência de ‘sofredores’, o silêncio é total. Este humanismo é semelhante à ética de Maritain, conforme a qual os pobres deveriam demonstrar sua superioridade aceitando com o orgulho sua miséria. Enquanto houver vítimas, entroniza-se a lógica do sacerdote que fere e encontra o remédio para melhor sedimentar seu poder.

O que escapou a Lefort foi o caráter niilista dos direitos humanos. Na Genealogia da Moral, Nietzsche revela que o homem prefere querer o nada a nada querer. Niilismo nada mais é do querer o nada. Os direitos do homem, por acalentar a concepção vitimária do homem, implicam no niilismo, isto é, no querer o nada que aparece, na nossa sociedade, organizado como a aceitação da necessidade do capitalismo e no empobrecimento do valor ativo dos princípios. 

A mídia aprecia captar um nordestino, um negro ou índio chorando e lamuriando, mas quando estes se organizam politicamente são tratados como baderneiros. Que Zumbi tenha o direito de lamuriar-se é certo, mas querer a liberdade é demais. Eis a lógica dominante. Que todos tenham o direito de lamentar e nada mais. Que esperem como o Pedro Pedreiro de Chico Buarque as coisas se ajustarem por si só.

Citemos Aristóteles: “A natureza, dizemos, nada faz em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi também concedida aos outros animais.”

Daí que hoje não podemos falar que há política, pois só se concede ao homem o direito de emitir a sua dor, reduzindo-o à mera animalidade. Como afirma Ranciére, o titular puro e simples do direito não é nada mais que a vítima sem frase, a última figura daqueles que é excluído do logos, provido apenas da voz que exprime a queixa monótona, a queixa de um sofrimento nu.

Na verdade, os direitos dos homens existem para acabar com uma política real de emancipação. É preciso resgatar, então, o valor ativo dos princípios políticos e uma imagem mais ativa do ”homem”. Enfim, uma verdadeira política de emancipação.

 Luís Eduardo Gomes do Nascimento
Advogado e Professor da FACAPE E UNEB.