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Para quem representamos?
”Minha existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples aparência?” (Sartre, Jean-Paul. A Náusea)
A invariação dos dias. Constância. Todos buscam despertar tal qual antes. A mesma certeza. A segurança dos frutos colhidos. O imutável da ordem frasal. Que ninguém ouse revirar as palavras lançadas! As manhãs estertoram ante o traço redesenhado. Todos felizes. Invariavelmente felizes. Não mais o passo incalculado, a surpresa da rua seguinte. Percorrem caminhos de ontem.
Dores sufocadas.
Grunhidos.
Gritos inaudíveis. Necessário manter o emprego, o ponto a bater. Pois que inconteste as necessidades cotidianas. Perenais. Pela manhã, o pão. O bom dia ao padeiro. A troça invariável. Horário de almoço. O adeus curto aos colegas de repartição. Dormir cedo. Contar as horas de sono. Recomendável oito, sempre oito. Aos sábados, lavar o carro. Ainda assim, o vangloriar-se. Gabar o compromisso diurnal, hebdomadário. Cumpridor. Prudente.
Despertador infalível. Acordar adormecido. Ao lado, a mulher. Mesma posição. O ‘te amo’ irrevogável. Maquinal. Inexiste a dúvida. Irresolução alguma. Qualquer. Sequer um tropeço. Pedra sobre pedra. As conhecidas irregularidades do solo. Jamais o conserto. Alteraria a disposição dos dias. Perturbaria. Cada qual com a ciência dos movimentos cotidianos. Alterados, o choque. A dor. Que não se acenda ferida! Tanto melhor o lenitivo.
A fuga de si, do outro. Subterfúgio.
Vez ou outra, a comunhão. O cálculo ante o outro. Loquazes, a palavra salvaguarda. Intactos. A fala direta feriria. Dor, não. A publicidade anuncia um mundo sem aflição. Seguros, em doze vezes – prorrogáveis. Passam ônibus – fantasmagóricos. O itinerário infranqueável. A corda a puxar. Mesmo ponto. O abrigo com função social. Onde racionalizar. Tornar a dúvida vã. Retornar ao estado anterior. Dificílimo abandonar a lareira, a família, a espessura do móvel, os sacros valores. A continuação dum malogro.
Para quem representamos?
Breno S. Amorim
Esquinas inconciliáveis
Do asfalto, a quentura do sol enturvece a nossa visão. Em disputa impraticável com automóveis e outros passantes, andamos. O ar é todo buzina e recendências várias. Contígua, uma moça, morena, cabelos serpenteados, trespassa-nos, a interromper o movimento dos carros. Interessante imagem, silhueta que nos faz esquecer o cansaço. Eufóricos, transmudamos.
Antes silentes, olhamos uma mesma figura e trocamos olhares entre nós próprios, com algum comentário. Sorrimos ante o sol que nos arranca suor e, neste instante, qualquer que seja a caminhada, não nos exaspera a maior dentre as lonjuras. Ao revés, escolhemos encompridar o percurso, fazer do trajeto circunstância diferente de uma obrigação, agastamento cotidiano. Algo nos assaltara, embora não possamos afirmar, com alguma certeza, qual a parte da tal moça nisto tudo. Acendera, decerto, qualquer coisa dentro de nós, há pouco repletos de escuridões, obnubilação a medrar.
Uma silhueta despede o corriqueiro? Com que perfume afugentar a trivialidade mesquinha? Seguimos. Não mais a vemos, as esquinas várias querem nos distanciar, legar-nos o amargo sabor dos encontros interrompidos, de olhos grandes que não tremelicam ante o confronto de outros mais, confrangidos por luminosidades contumazes.
Romper com vínculo inexistente – como explicar a confusão de vocábulos tão contrariados? Declinamos da resposta, já agora na Fernando Góes, sem um mínimo rastro de pés locomotores de olhos sumidouros. Abel estertora e faz certo comentário. Recorda Baudelaire e o cansaço não obsta a consequente declamação: “(…) E cujo olhar me fez renascer de repente,/ Só te verei um dia e já na eternidade?/ Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!/ Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,/ Tu que eu teria amado — e o sabias demais!”.
Diz-me, entusiasmado, que nós também temos a nossa passante. Passante que não vê o Sena, mas que atravessa o velho Chico de barquinha e ruma em direção à Catedral. E, enquanto aguardamos os carros passarem, arremata, sem desfaçatez: “Também eu a amaria”. Sorrimos.
Como num quadro de Duchamp, Abel desenha a primavera ante o encontro com a moça desencontrada. Ambas as figuras, qual a arte de Marcel, permanecem anônimas, tamanha a quantidade de citadinos. Que frutos colher, Abel, desta árvore imaginativa que lhes separa? A verticalidade de seus corpos imprime movimento e, presentemente, só toca-lhes a fuga não consentida. Entre fumaça de coletivos e litanias despersonalizadas, quem repele quem? A tua parte, Abel, neste itinerário confuso, labiríntico, qual?
O sol, que de ordinário, bem nos parece morte, a nos acometer com o peso dos dias que se iniciam demasiadamente cedo e ainda mais breve se encerram, é-nos, ao menos hoje, afago. Abel questiona a si próprio, já não sabe se outra fluorescência, quaisquer delas, permitir- lhe- ia encontro tal. Se nublado o céu, em dias de tempo fechado, luz artificial bastaria para vivificar o instante, ao abrigo de olhos negros? – pergunta. Com que nome identificá-los? Passarão sempre no mesmo horário? Os ponteiros, amiudados, desconhecem o âmago das horas – as senhoritas que passam, os carros que estancam, os olhares que se esbarram sob raios violáceos.
Abel, suspeito, não mais será vencido pelo enfado dos dias. Penso, tão logo vejo o seu sorriso preocupado, que, doravante, seus passos serão guiados por uma ânsia, um afã irrepreensível. Tal a sua convicção, não o desconsola questões inapreensíveis, se escuro ou claro o céu, se sol ou lua. Mesmo na opacidade, creio, ele reconhecerá o brilho de olhos que há pouco surgiu-nos. E, em linguagem gutural, dirá coisas sobre os amores contrariados – força propulsora do mundo.
Breno S. Amorim