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O RETORNO ESTRUTURALISTA A SCHLEIRMACHER: A VIA DAS CIÊNCIAS DO TEXTO
A Manfred Frank e a Lauro Campos
Por sempre nos movermos no horizonte de concepções prévias, a compreensão se apresenta como um círculo no qual as visões são condicionadas. Para Gadamer, o círculo hermenêutico não é apenas uma relação formal entre o todo e a parte, uma relação mecanicista, mas apresenta um nítido sentido produtivo-material. O círculo hermenêutico se apresenta como totalidade em provimento: como a obtenção de um saber mais abrangente. Em toda interpretação atua sempre uma pré-compreensão como condição de possibilidade. A interpretação é estruturada por uma compreensão prévia. Na medida em que a interpretação consiste na mediação daqueles pré-elementos não corre o risco de sucumbir a certo irracionalismo? Como na interpretação verifica-se o vir à tona dos elementos prévios da compreensão?
Gadamer aproxima o tema da finitude (Heidegger) e o tema do negativo (Hegel). À finitude como a impossibilidade do saber absoluto da história é aditado o negativo, não como uma limitação, mas como a experiência que abre espaço para um saber mais abrangente. A finitude, como o ser-aí mergulhado na tradição que lhe acontece, implica a superação do historicismo arrimado na crença de um saber absolutamente objetivo do histórico. A finitude revela a imersão do ser-aí, a pregnância à tradição que nunca se apresenta sob a forma de objeto. A própria imagem do conhecimento se modifica. Não é mais figurada como um sujeito diante de um objeto, pois, na medida em que o ser-aí já é histórico, todo sujeito já é ser-em-situação e não num estado de sobrevoo a partir do qual pudesse, isento das determinações espaço-temporais, apresentar um domínio absoluto sobre todas essas determinações. O ser-em-situação indica que a história nunca será um objeto alheio, mas a matéria em que já se detém desde sempre o ser-aí. A finitude enquanto historicidade rechaça tanto uma objetividade alienante quanto uma autotransparência expressa numa autopossessão completa.
A finitude, nesse contexto, demanda a crítica da fé metodológica de um saber objetivo que pudesse fazer da tradição um objeto alheio ao sujeito cognoscente. É aqui que emerge o tema da pertença à tradição. Gadamer critica a tendência do saber científico que, ao figurar o conhecimento como a posição subjetiva em face de um objeto, esquece que a tradição já opera tanto no sujeito quanto no objeto. A tradição não é um objeto posto aos olhos de um sujeito desenraizado, em pura contemplação. Compreender, diz Gadamer, é pertencer ao ser daquilo que se compreende.
A tradição configura-se como instância de veracidade. A tradição, como comunidade de preconceitos, permite, primeiro, a distinção entre os preconceitos, imbuídos de historicidade, e os juízos da subjetividade, espelho deformante. O estímulo da tradição permite, segundo Gadamer, separar os bons preconceitos dos maus preconceitos. A produtividade hermenêutica do círculo hermenêutico tem uma riqueza produtiva na medida em que permite destacar um preconceito e aferir sua validade histórica. Destacar um preconceito não é afastá-lo dos olhos nem depurá-lo pela abstração, mas visualizar nele a força operante e produtiva da tradição.
Um dos pontos mais críticos da hermenêutica de Gadamer é estabelecer uma linha de demarcação entre o preconceito que obscurece a interpretação e o preconceito que, ao receber o estímulo da tradição, permite fundar um acordo comum. É nesse contexto que Gadamer erige a tradição como instância de validação da estrutura prévia de compreensão. Na medida em que uma pré-compreensão se estrutura no estímulo que a continuidade histórica proporciona obtém sua validade intersubjetiva.
A história efeitual significa a força operante do passado que faz do tempo não um abismo, mas, pela continuidade, reverbera nas compreensões do agora. A compreensão não se limita a reproduzir um sentido já consolidado no passado, mas à cada situação revive e revigora-se na produção de novos sentidos que, não obstante, não se desalinham dos sentidos pretéritos. A tensão entre o passado e o presente é um desafio para o intérprete que, não sendo meramente passivo, também não pode ao alvedrio criar tudo como se fosse tábula rasa. A ênfase na tradição implica em compreender a subjetividade como espelho deformante.
O problema, como assinala Luigi Pareyson, não é a subjetividade em si, mas a subjetividade que se mantém fechada e insulada e não se dispõe à alteridade da verdade que emerge da historicidade. Gadamer, também, nesse ponto, não articula uma interpretação adequada de Hegel. É certo que Hegel põe ênfase no espírito objetivo, mas não limita a atividade do sujeito a uma inserção mecânica na objetividade. Nem a objetividade em Hegel deve ser entendida como algo alheio à subjetividade. Para Gadamer, Hegel hipostasia a subjetividade transcendental de forma que todas as operações do conhecimento, em última instância, remontam à reflexibilidade da subjetividade. Não parece que essa interpretação guarde consonância com o texto de Hegel (1).
Gadamer resgata o conceito de preconceito cujo destino foi obumbrado pelas tendências do iluminismo. O iluminismo propunha a crítica da tradição a qual sempre esteve vinculada ao poder factual insuscetível de questionamento. Dessa forma, a tradição se identifica com a opressão. Para Gadamer, tal perspectiva resulta exagerada, pois, existe uma legitimidade própria da tradição que não se conforma com o poder factual dos dominadores. Na linha da analítica do ser-aí de Heidegger, Gadamer confere ao conceito de tradição uma nova compleição e se lhe atribui a capacidade de legitimar as formas de comunhão inseridas na historicidade da linguagem. A linguagem passa a ser vista como um medium em que opera desde sempre um acordo, uma comunidade de pré-juízos. Nessa perspectiva, a tradição, em vez de figurar como instância opressiva, passa a ser cânone capaz de diferenciar e legitimar as antecipações estruturantes da histórica.
O texto, mergulhado que está na tradição, já está imbuído de estruturas prévias que orientam o intérprete. Aqui se flagra uma contradição que parece muito mal resolvida na teoria hermenêutica de Gadamer. Em várias passagens, ressalta a alteridade do texto, isto é, que o intérprete deve estar aberto ao que o texto tem a dizer, mas, ao mesmo tempo, assevera que somente pelo estímulo da tradição, pelo destaque de um preconceito, é possível asseverar a legitimidade de uma interpretação. Ao se dirigir a um texto, o intérprete não está vazio de pressuposições; na verdade, não há interpretação que não esteja inserida numa totalidade estruturante, numa totalidade de sentido de tal forma que o intérprete não encara o texto sem a mediação das estruturas prévias. Não obstante, a abertura a alteridade do texto é fundamental para que o intérprete não sobrecodifique o texto, impedindo o trabalho do texto. Como Gadamer resolve essa antinomia? Para ele, uma antecipação de sentido é fundada quando encontra ressonância no texto. Dessa forma, é o texto que valida os preconceitos – entendidos como estruturas históricas.
Mas, mesmo ressaltando a alteridade do texto, falece a Gadamer a compreensão da linguística moderna e seus aportes fundamentais para articular melhor a relação entre texto, autor e intérprete. O compreender o método como necessariamente alienante talvez tenha travado o desenvolvimento mais aprofundado das ciências do texto bem como ofuscado a compreensão das lições axiais que Schleiermacher antecipou acerca do método gramatical.
Por isso, Gadamer visualiza todo método como objetificante, tornando o objeto desvinculado da tradição a que pertence. A recusa de toda metodologia parece indicar que Gadamer nem sequer coloca o problema. Tanto é que mesmo evitando falar em interpretação correta, fugindo a toda implicação normativa de regras de intepretação, não afirma que, em toda a interpretação correta, os conceitos temáticos desaparecem naquilo que fazem falar na interpretação?
A falha do sistema de Gadamer é não situar corretamente a relação entre a subjetividade e historicidade e atribuir a todo método uma natureza reificante. Talvez por isso Gadamer tenha afirmado que os elementos subjacentes que operam na interpretação não se tornam conscientes e, mesmo diante de uma boa interpretação, desaparecem, comprometendo toda noção de método, que constitui elemento fundamental de toda hermenêutica. É preciso remarcar que a construção de métodos não significa, de per si, reificação do conhecimento, mas que a reificação que eventualmente possa ocorrer não é algo intrínseco ao genuíno método. Outrossim, nem todo método envolve um distanciamento alienante da realidade. Assiste razão a Gadamer ao afirmar que a pertença à histórica inviabiliza uma metodologia que se supõe acima dos condicionamentos. Todo conhecimento emerge de seres-em-situação, sendo enraizados na história. Não obstante, o fato de estar mergulhado na história não significa a impossibilidade de um saber objetivo e de métodos científicos dotados de objetividade.
Ainda que não tenha desenvolvido um método, Gadamer traz alguns aportes que são essenciais para a apreensão de qualquer hermenêutica. A inevitável historicidade do ser-aí significa dizer que sempre se está no horizonte de uma situação. Desde Kant, o conceito de horizonte tem vigência na filosofia alemã. ‘’Horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto”. Se em Heidegger justamente por estarmos já numa certa compreensão do ser o ser era oculto, Gadamer demonstra que a estreiteza do horizonte estar em ver apenas o que é próximo, limitando-se o âmbito de visão. Por isso, a boa interpretação é aquela em que o horizonte do intérprete se amplia e se alarga na medida mesma em que se movimenta e se abre ao trabalho do texto na superação dos obstáculos hermenêuticos. A ideia de horizonte também se articula com a dialética da pergunta e da resposta que Gadamer vai buscar no historiador britânico Collingwood. Ao interpelar as ações históricas dos agentes, Collingwood afirmava que toda ação histórica é a tentativa de responder às perguntas que emergem da situação. Ao perguntar a que questão os agentes históricos respondiam, é possível identificar o sentido histórico de suas ações. Ao incorporar essa tese, Gadamer afirma que a obtenção de uma situação hermeneuticamente fundada está em propor as questões que a própria tradição coloca e que ressoa nos textos. A obtenção de um horizonte não significa apartar o que está próximo, mas, por meio de um possível distanciamento, inseri-lo numa perspectiva mais abrangente. É sempre possível alargar o horizonte.
Para o intérprete, no que se refere ao aspecto gramatical, o distanciamento fundamental é a distinção entre as associações psicológicas e o significado das palavras. Desde Frege, a distinção entre representação e significado encontra cidadania na linguística. O verdadeiro intérprete suspende as representações subjetivas para partilhar em comum com o significado sempre de natureza comunitária e não só intersubjetiva. Por isso, a apropriação privada da linguagem demonstra que o intérprete não partilha da comunidade dos intérpretes, alheando-se ao ponto de avocar o direito de instaurar a linguagem a partir das próprias representações. Toda interpretação correta sempre envolve a participação num sentido comunitário. A questão que emerge é porque em certos momentos da história e sob que injunções um intérprete se arroga o direito de corroer a linguagem comum e impor suas representações como se fossem intersubjetivas. Marx, em Ideologia Alemã, afirma que a linguagem é a consciência prática e exsurge da necessidade de comunicação entre os seres humanos. A linguagem é desde sempre comunitária.
A reinvenção da hermenêutica passa pela recepção estruturalista de Schleirmacher, enfatizando-se não mais a analítica existencial de Gadamer, mas as ciências dos textos na dinâmica concreta das produções dos sentidos. Nesse sentido, Schleiermacher, na medida em que colocou a necessidade da hermenêutica não no acordo prévio, mas na urgência em resolver os ruídos de comunicação, sempre esteve atento à necessidade de erigir um método gramatical rigoroso capaz de fundar critérios para aferição de interpretações corretas e idôneas. Não deixa de surpreender que, muito antes de todo estruturalismo linguístico, Schleiermacher tenha estabelecido as premissas sólidas de uma ciência do texto. O retorno a Schleirmacher requer, portanto, superar a tradição psicológica com que sua teoria é incorretamente divulgada, para situá-la na juntura entre interpretação divinatória (autor) e interpretação gramatical (texto) e sua recepção (leitor) numa dialética fecunda e criativa em que os sentidos são produzidos de forma objetiva e comunitária sem qualquer disseminação corrosiva (2). Para este mestre, o falar comum é o remédio contra a irracionalidade que pode integrar as subjetividades fechadas e crispadas na aliedade (3).
- A interpretação de que a filosofia remonta todo o conhecimento às operações da reflexividade do sujeito de conhecimento é equivocada. A compreensão de A filosofia de Hegel é que a subjetividade, desde que se mergulhe no ritmo da coisa, pode alcançar a objetividade e a efetividade do conceito. Longe de Hegel de resumir o conhecimento aos meandros da subjetividade insulada.
- Friedrich Schleirmacher antecipou todas as conquistas da linguística de Saussure.
- Aliedade é a suspensão do mundo em voo imóvel e quebra da comunidade de comunicação. A aliedade, pois, se apresenta no intérprete que impõe ao texto suas representações (subjetivas), imaginando-se acima da comunidade e da história. Desenvolvi esse conceito com base na poética de Octavio Paz, poeta da alteridade e do encontro criativo com o outro. A interpretação correta é aquela que, suplantando a aleidade, agasalha a alteridade do texto.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.