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DA MONTANHA QUE TEMOS QUE VENCER COM URGÊNCIA

Comunistas do mundo, uni-vos

A José Ramos Tinhorão, em nome de quem envio um abraço fraternal a dois poetas decoloniais.

“Toda questão de ordem ideológica, toda controvérsia no seio do povo não pode ser resolvida senão por métodos democráticos, métodos de discussão, de crítica, de persuasão e de educação; não se pode resolver nada por métodos repressivos e coercitivos’’ 1

A assertiva de Umberto Eco de que um texto, quando se desprende das condições de sua emissão, flutua no vácuo é errônea. Primeiro, porque um texto sempre traz junto a si, ainda que de forma tênue, rastros das condições em que foi gestado. Segundo, porque todo texto, ao ser emitido, entra num horizonte indeclinável que determina e condiciona a sua recepção. Abundam exemplos na literatura. A obra-prima Grande Sertão: Veredas- que criou um novo idioma dentro do próprio idioma- foi recepcionada como uma mera novela picaresca de bandos de desordeiros em conflito. Avalovara, de Osman Lins, é tão inovadora no que concerne a forma e, consoante a cibernética, a forma já é mensagem, que até hoje a obra é, absurdamente, ignorada. É nessa problemática que surge a teoria literária da recepção.

A estética da recepção, como corrente literária, busca compreender o modo como um texto produz seus efeitos não num sentido mecânico como a palavra pode sugerir, mas como o texto, na medida mesma em que estrutura de forma a priori sua própria leitura, cria mundos. O fato de a estética da recepção ter enfatizado a importância da subjetividade na recepção do texto não sucumbe ao psicologismo nem confere importância exagerada à subjetividade que, supostamente, seria o alfa e o ômega da interpretação.

Os efeitos do texto são prefigurados pelo próprio texto ainda que a participação da subjetividade que o recepciona seja decisiva nesse papel. Não bastasse isso, nenhuma leitura ocorre fora da mediação de um horizonte de expectativa no qual os textos vão se deparar e ou brilhar na sua grandeza ou, muitas vezes, naufragar tristemente. Por exemplo, a obra de Lima Barreto que desnuda com toda força as contradições pungentes do Brasil revela como um olhar-se no espelho e o reflexo não é nada formoso. O horizonte de expectativa, no contexto brasileiro, por conseguinte, mostra-se totalmente infenso à obra desse gênio que já demonstrara em contos e romances que o racismo deixaria de ser biológico para tornar-se cultural, antecipando muitos filósofos e questões hoje prementes. Quantos autores geniais criaram obras que, de tão ricas, foram incompreendidas? Outras quantas de tão desafiadoras, de forma silente, foram censuradas?

Gadamer define horizonte como o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. O conceito não é satisfatório porque incide num espontaneísmo que ignora o influxo das lutas políticas e das lutas pelas palavras no embater social e que, no fundo, as grandes lutas de classe é o desacordo acerca da percepção da realidade. O filósofo japonês Kojin Karatani quando criou o conceito de Paralaxe quer mostrar que os conflitos de interpretação já demonstram que o real é um topos em que o futuro das formações sociais se desenha e se desenrola (2).  O próprio conflito de interpretação revela a não coincidência do real consigo mesmo e a abertura mesma dos possíveis.

Podemos definir horizonte como regime de visibilidade e de invisibilidade instaurado pelas relações de forças que integram qualquer formação marcada pelas lutas de classes. O horizonte de expectativa define, de forma prévia, o que é visível e o que é invisível.

Muitas vezes o regime de invisibilidade é de forma sutil; outras, de forma violenta. Tudo como o escopo de impedir a elucidação das formas sociais e das mazelas que lhe são evidentes. Nessa cumeada, qual o horizonte de expectativa da constituição brasileira vigente? No que aqui importa, releva que a Constituição de 1988 é referta em direitos sociais, impôs freios ao sistema do capital financeiro com normas de eficácia plena- que fora totalmente desregulamentado- e criou um sistema protetivo do trabalho e seguridade social ampla envolvendo previdência social, saúde e assistência momentânea até o debelar, por políticas públicas, da pobreza e das condições miseráveis em que vive, infeliz e tragicamente, parcela relevante de nacionais como nós num país de riquezas inestimáveis. Como uma constituição dessa jaez é recepcionada num país em que o conceito de nação é restrito às oligarquias brancas com a exclusão, mediante permanente estado de exceção, dos povos que nos formam?

Ocorre que tamanha projeção generosa se depara com uma montanha íngreme- a colonialidade do poder- cuja superação requer o esforço descomunal de várias gerações. A colonialidade estabelece várias divisões desde a divisão entre o trabalho manual – que é, erroneamente, objeto de desprezo e o trabalho intelectual: ocorre a racialização das atividades manuais; a divisão sexual na exploração do trabalho feminino, no livro Os Quilombos como novos da terra apresento a hipótese de que a classe operária é tendencialmente feminina como forma sutil de efetivar a precarização dos salários; a divisão etária, suprimindo das crianças o direito de desenvolver sua potência para serem exploradas como mão-de-obra escrava;a violência contra os gêneros diferentes; a foraclusão da questão de gênero e o desatar da violência que decorre disso.

 No plano político, o sistema é tão deficiente que impede, salvo raras exceções, a emergência de lideranças populares; o próprio termo populismo é usado de forma distorcida para lançar pecha em quem se arvora com coragem em defensor dos povos; os políticos e os intelectuais que entendem e colocam às claras e com veemência a questão colonial são objeto de campanhas intensas de estigmatização e tidos como caudilhos machistas. O caso emblemático é do grandioso político Leonel Brizola, trabalhista autêntico e crítico ferrenho do modelo econômico colonial que nos afunda na tragédia social. No plano ideológico, a branquidão se vê como o estuário exclusivo das qualidades universais da humanidade e, os outros, são bárbaros cujo direito à vida é desprezado e, quando demonstram algum talento exponencial, são rechaçados brutalmente(3). No Brasil, a colonialidade constitui um horizonte de expectativa contrario às projeções constitucionais.

A saída não é a iconoclastia dos que, como Augusto dos Anjos, ao criticar o fetichismo, destruiu os próprios sonhos (4). A questão é estabelecer o método de elucidação, organizar a sociedade e, criando a disciplina coletiva, colher a constituição pela palavra, efetivando-a para salvaguardar a humanidade com um futuro compartilhado.

A colonialidade do poder é a grande montanha que temos de vencer e é urgente.

  • TSÉ-TUNG, Mao. Le Petit Livre Rouge. Paris: Éditions seuil, p. 35. Uso o negrito e indico com precisão a fonte para que saibam um pouco quem foi um dos mais libertários seres humanos da humanidade.
  • Quem compreendeu a filosofia de Mao Tsé-Tung sabe que, nas fímbrias de um discurso, às vezes perfunctório, é possível captar o real. Marx dizia que apreendeu economia política estudando a linguagem dos ‘liberais’.

Quando o presidente Fernando Henrique disse que a constituição é um empecilho à governança-palavra que não diz muita coisa- revela que a política que desenvolvera foi no sentido de frustrar as esperanças da constituição. Não é um discurso liberal. O liberalismo é um mito ocidental porque não existe nenhuma burguesia que não seja estatal. Basta ver as subvenções. Toda burguesia é estatal.

Além disso, Mao Tsé-Tung dizia que o liberalismo é apenas um nome vazio para dividir a nação e destruir a disciplina coletiva. E, quando uma nação está desorientada, a tarefa mais urgente é criar o método de elucidação. Criemo-lo, juntos e unidos.

  • KARATANI, Kojin. Transcritique: On Kant and Marx. London: The MIT Press, 2003.
  • O exemplo de Carolina de Jesus, Lima Barreto, Alberto Guerreiro. Itamar Assumpção, Maria Firmina, Luiza Mahin, Mariele Franco são emblemáticos.
  • Excerto do poema Vandalismo de Augusto dos Anjos:

“E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!”

É preciso manter os sonhos. A vida é, também, doce, amigo. E no dia que em encararmos Lima Barreto será  um momento de esperança.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.