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HOMEM COMUM
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
Ferreira Gullar – (Brasília, 1963)
Gênesis
Antes tudo era indizível. E os gestos não traduziam nada além das mais urgentes necessidades cotidianas. Enquanto os olhares, distantes, concentravam-se em desvelar a paisagem inocente. Nenhum movimento corporal expressava senão os limites do desconhecido, porém, secretamente desejado. Assim, passavam-se os dias enfadonhos!
Um dia, os olhos se encontraram; e, refletiram-se um no outro como dois espelhos postos frente a frente, em que as imagens se multiplicam indefinidamente. Daí em diante, a incompreensão se estabeleceu entre eles, ocupando o desvão das palavras até então nunca ditas.
Enquanto o tempo fluía como as águas mansas de um rio, a estranheza se apoderava dos corpos, trazendo à superfície da pele descobertas sobre os sentidos refreados pela incipiência da imaginação. Nunca mais os dias foram os mesmos. Agora, as coisas pareciam ter cheiro e sabor que penetravam agudamente nos poros. A respiração em descompasso, prenunciava a proximidade das transgressões que se sentia fincar na vontade, cavando sucos profundos na carne com a faca afiada dos desejos contidos. À noite, as estrelas adquiriam formas e nomes; e o frio se intensificava, confirmando o absurdo da existência intransponível do muro imaginário erguido pelo distanciamento dos corpos que se queriam.
Naquele instante, em que revelações pululavam ante os olhos atônitos, porém, irresistivelmente atraídos pela incontrolável carência de se lançar ao desconhecido, toda existência ganhava a tonalidade das cores por eles inventadas, ao mesmo tempo em que os corpos, agora nus, eram emoldurados pela confabulação. E de repente, os dias pareciam se deixar envolver pela lentidão, assumindo ares de eternos como se fosse um deus caprichoso que se recusasse a seguir sua infinitude. Todavia, eram dias prazerosos, de calmaria e de uma apetecível angústia que os envolvia e os embalava na rede intangível do querer.
E, assim, aos poucos, na esteira inarredável dos acontecimentos, foram ruindo as fronteiras invisíveis, que outrora mantinha na ignorância seus corpos moldados para a entrega incondicional ao prazer, retendo-os à beira do abismo desse estranho sentimento que nos faz desafiar os deuses. Então, sem se aperceberem do pecado que cometiam, folgaram as amarras que os sufocavam, desatando às pressas os nós da proibição, para que os corpos sedentos pudessem, suavemente, percorrer as formas sinuosas da estrada que levava a macieira condenada pela maldição da culpa. Ao tempo em que as bocas se colavam, mãos ágeis percorriam as curvas perigosas, um do corpo do outro, como se o destino dependesse daquele beijo para selar a sina dos futuros amantes. Enquanto isso, na macieira frondosa, a mesma que daria origem também a mecânica fria dos homens sérios, os frutos se multiplicavam, abençoando a fluidez com que os corpos, metamorfoseados, misturavam-se até fundir-se em um só.
Desse dia para cá, passou-se a chamar mundo a nossa casa! Pois que Deus disse: haja humanidade! E o homem e a mulher; fizeram-se em gestos ternos e hostilidades!
Por: Autran Lima