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Professor: aviltamento do gosto
Seu moço me dê licença
de vir arejar um pouco:
Estou com a cabeça quente
de tantas aulas que dei.
O POETA:
Muito obrigado ao senhor,
não me ensinou coisa alguma.
Sendo assim caí no mundo,
aprendi foi por mim mesmo
sem o método Declory.
Louvada seja a burrice,
não tentou meu professor
a me ensinar coisa errada
no deserto do colégio,
coisa alguma me ensinou.”
(Murilo Mendes, “Bumba-meu-poeta” in O menino experimental)
A personagem do professor me intriga. Observo-a com certa atenção há alguns anos. Necessário fazer suposições. Talvez devido ao fato de guardar-lhe interesse, pensar em tornar-me, transvestir-me com suas indumentárias. Talvez por reservar-lhe aversão, recrudescida nos últimos tempos. Todavia, acaso as nossas aversões não se nos apresentam como desvios da aversão que temos a nós mesmos? Cioran que o diga. Abujamra, professor, desejava o fim de tal ser. Outro, amigo meu, num primeiro dia de aula, dissera-nos: “Meu objetivo é tornar-me desnecessário”. Ainda alguma lição a ser passada? Raul pensava que não.
Atentai: cá, falo do arquétipo do professor. Ou melhor, da forma que eu vejo tal arquétipo. Ora, nunca lidamos com o real. As narrativas reverberam, multiplicam-se – eis a minha. Aqui, como na “Khora” de Platão, o sensível se instala para ser cópia do inteligível. Não deve assaltar, aos dois ou três que me leem, o rótulo da generalização.
Péssimo aluno crônico, restou-me alguma sorte. Conheci excelentes professores. Poucos, expletivo dizer. Por estes, a minha primeira suposição. Devotei-lhes admiração sincera. Eles, precisamente os que não conheciam as famigeradas ementas. Tecnicamente, ou melhor, da cartilha, nada me ensinaram. Sabiam dos livros, porque leitores ávidos. E por tal, não nos subestimavam, evitavam o desrespeito profundo: a lição corriqueira, ordinária, nas prateleiras, ao alcance de todos. Falaram-me da vida, narrativas que nunca me faziam estafar, aborrecido. Se fracassar na vida, Cioran, é ter acesso à poesia, todos eles eram fracassados exuberantes. Suas aulas, como queria Warat, eram concertos de jazz. Uma maravilha. Devido a eles, o meu gosto pela leitura. Através deles, este rompante de pensar em imitá-los na escolha da profissão. Tudo incerto, duvidoso, porém.
Há ainda a minha segunda prognose. Fora ela quem me trouxera a antipatia, a ojeriza que conflita com o lado mirífico sobredito. Aqui, onde o poder é inoculado no discurso. Os inseridos nesta suspeita, para que não sejam particularizados, podem ser identificados como “vozes autorizadas”, a lembrar Barthes. Borrando o quadro pintado no parágrafo anterior, eles nos retiram todo o espaço de liberdade: a sala, ante as suas gerências, é espaço circunscrito, delimitado, local de hierarquias.
Barthes, em 1977, pronunciara a sua aula inaugural da cadeira de semiologia literária. Lá, no Colégio de França, pontuara: “Chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade que o recebe”. Certeiro. As vozes autorizadas, dentro da relação professor-aluno, têm, como norte, o incutimento do erro. Tal, antes de conhecer Barthes, aprendi no cotidiano da sala de aula. O erro infundido, parece-me claro, é condição necessária para a permanência desta relação. É ele quem possibilita a eterna dependência entre o que ilumina e a sombra. E aquele professor, citado no início, a clamar por sua desnecessidade…
Se o erro, pois, possibilita esta relação, a culpabilidade, enfim, a efetiva plenamente. A culpa, sabemos, pede uma punição. Nossas vozes autorizadas – ora essa! – refestelam-se. Lembremos a prova, esta camisa de força da educação, como chamara Werneck. É ela o nosso maior exemplo do que estamos a falar. Primeiro, projeta o erro; Após, a culpa que pede castigo – a nota. Em “Idade da razão”, de Sartre, a personagem Boris, circunvalada pela figura do mestre, achava indecente um rapaz de sua idade pensar por si. Eis o martírio: o erro e a culpa, que engendram o medo, criam duas figuras (mestre e discípulo), de sorte a efetivar as hierarquias universitárias.
Necessário citar Foucault. O ingênuo precisa deixar de sê-lo. Principalmente, o esperto carece saber a propósito dos atentos. Nem todos dormem, apesar. Citemo-lo, enfim. Em “A ordem do discurso”, página 44, diz-nos o autor: “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”.
Ao que parece, sobrara-nos dois lados. Entre professores que se pretendem desnecessários e professores afanados por olhar ínfero, resta-me, portanto, optar pelo clarão de Cioran: “Matar o discípulo que havia em mim”.
Breno S. Amorim