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EGOLOGISMO HOJE

A Giuliani Fonrouge e a Luis Alberto Warat

Uma visão que radica no mais acendrado conservadorismo atribui ao direito uma função repressiva, olvidando a condição ontológica da experiência jurídica. O remontar à origem fenomenológica do direito, por uma redução eidética fundamental, não é mera questão terminológica ou discussão escolástica vazia, mas constitui um dispositivo teórico prenhe de consequências.

Como uma charrua ara a terra, um dispositivo abre a porta, um dispositivo teórico engaja um campo de conhecimento em inflexões que levam à ruptura epistemológica. Conforme assinalamos em obra recente, uma ruptura epistemológica ocorre quando, inserido nos eixos de um campo, revela-se algo não tematizado ou não desdobrado em suas consequências.[1]

A teoria Egológica do Direito, desenvolvida por Carlos Cossio, lança um novo dispositivo teórico e opera uma redução fenomenológica do direito. A redução, em Cossio, significa a ex-posição originária de um fenômeno em sua raiz lógico-ontológica. A teoria egológica, portanto, é uma lógica transcendental do direito e, especialmente, uma ontologia cultural do direito.

O projeto da ontologia moderna, de matriz heideggeriana, desoculta o campo do conhecimento para abrir o tema da existência, isto é, do ser-no-mundo do ser humano. Afirma Heidegger:

“Orientando-se por essa idéia, realizou-se a análise preparatória da cotidianidade mais imediata, chegando-se a uma primeira delimitação da cura. Esse fenômeno possibilitou uma apreensão nítida da existência e de suas remissões intrínsecas à facticidade e à decadência. A delimitação da estrutura da cura forneceu as bases para uma primeira distinção ontológica entre existência e realidade. Isso levou à seguinte tese: a substância do homem é a existência.”[2]

A existência tal qual se desvela em abertura à questão do ser não acontece de maneira descontextualizada. Dylthey insere o problema na dicotomia natureza e cultura,que servirá de base para discussões em inúmeros campos do conhecimento. O egologismo, na medida em que constitui uma metodologia fundada filosoficamente, radica na distinção natureza e cultura.

No diálogo com Kelsen, enunciou Cossio:

“Vida plenária, pois, em oposição à vida biológica. E vida plenária, portanto, como cultura; compreendendo em sua íntima unificação os dois aspectos da cultura: o que, como vida objetiva, consta dos produtos do fazer humano, subsistindo com autonomia ôntica em relação ao seu autor (objetos mundanais), e o que, como vida plenária vivente, consta dos quefazeres atualizados, inseparáveis de seu autor (objetos egológicos).” [3]

Os objetos culturais como objetivação da vida humana, então, distinguem pelo substrato e pela relação com o autor: 1) os objetos mundanais, cujo substrato é material e se emancipam do autor, assumindo vida cultura destacada; 2) os objetos egológicos, cujo substrato é a conduta e remanesce vinculados ao autor na medida em que o direito é co-existência.

Uma escultura, seja de madeira, seja de ferro, ganha existência autônoma e se torna objeto de contemplação turística, relíquia individual, ao mesmo que tempo que condensa sentidos a serem interpretados existencialmente pelo público dotado das condições sociais. Uma norma, mesmo se destacando da comunidade jurídica que a criou, mergulha em contextos de interação institucional que não são apenas complementares no sentido de que não há obra sem leitor, mas, sobretudo, porque o direito não se realiza automaticamente e depende da conduta. Em lição lapidar:

“ Quando os aviões alemães foram bombardear, em 1914, Paris, levaram a Vênus de Milo ao sótão do museu Louvre, coberta de areia, para protegê-la das bombas; e, da mesma forma, com todas relíquias do grande museu. Por que não se podia proteger da mesma forma o direito francês, que é também uma realidade cultural? A resposta é uma só: porque o direito francês estava na conduta dos franceses, em presença intransferível.”[4]

A teoria egológica, portanto, insere-se num contexto profundo da compreensão de que o direito não se realiza imediatamente na produção legislativa, como certa perspectiva estática da ontologia moderna possa sugerir.

Ao captar ontologicamente o direito como conduta co-existencial, não deixa de se pensar o direito de maneira normativa. São perspectivas que não se apartam, mas se complementam de maneira criativa, numa compreensão que podemos chamar de protonormativa.

O direito é liberdade fenomenológica, mas é norma jurídica. A norma jurídica não se confunde com a conduta. Há, portanto, uma diferença ontológica entre a norma jurídica e a realidade que é representada pela norma jurídica. A norma é conceito com que a comunidade pretensora pensa as condutas que pretende dirigir e governar.

Escreve Cossio:

“Para nós, o direito é vida humana plenária considerada desde certo ângulo, ou como temos dito sempre, é a conduta humana em interferência intersubjetiva. A norma, que é a significação expressada, é, simplesmente, a representação intelectual desta conduta como conduta. A norma é conceito que menciona a conduta mentada como quem esboça ou pré-esboça uma ação humana. A norma é um pensamento com o qual pensamos uma conduta, tal como os conceitos de triângulo e sol são pensamentos com os geômetras e o astrônomo pensam seu objeto sem a crença de que tais conceitos tem a quantidade de ângulos ou a temperatura que correspondem aos objetos e somente a eles. Assim, a norma que representa a conduta não tem, por exemplo, a temporalidade desta’’[5]

A norma, fruto da abstração formal da lógica, estrutura-se em atributos abstratos, arrancados da experiência, e, voltados à experiência, tem por referência semântica determinadas condutas que acontecem em contexto cujas particularidades são sempre abertas.

Não se afirma, de forma imprudente, que o direito não alcança a realidade, mas que a complexidade do contexto em que a conduta acontece sempre apresenta aspectos não previstos pela norma enquanto esquema conceitual. De outro lado, o esquema normativo, marcado por certos atributos, tem a possibilidade de normatizar.  A aplicação do direito se torna segura, pois, o acontecimento fático, previsto, antecipada e abstratamente, convola-se com o esquema abstrato. Muito embora não se confunda com os símiles abstratos, a conduta fática é classificável e suscetível de qualificação jurídica.

O direito enquanto norma- juízo disjuntivo- encontra-se no plano lógico, dotado de generalidade. A conduta normatizada está no plano da experiência social, no campo da intersubjetividade, em plenitude das circunstâncias que a contingência elabora. Neste acontecer fático vigora a individualidade fática. A aplicação do direito, portanto, é lógica da individuação.  

Kelsen, ao refutar o egologismo, dizia que a conduta só interessa ao direito enquanto regulada por uma norma jurídica. Dessa maneira, o objeto da ciência seria a norma e não a conduta humana. Na verdade, Kelsen aborda um aspecto da questão. Se o direito é objeto cultural, dotado de um substrato- a conduta em co-existência- e de um sentido- a significação normada-, interessa ao direito, no plano da experiência da aplicação, a dialética entre a conduta mentada e a significação normativa que se adjudica.

A interpretação e aplicação do direito transitam, dialeticamente, da norma à conduta, do substrato ao significado, até se atingir a solução que corresponde aquilo que Aristóteles chama prudência: isto é, a incidência rigorosa de um padrão, artisticamente.

O direito é uma arte. E é, em Aristóteles, uma forma de governo.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Marxismo, Arqui-Espaço, Agrimensuras Críticas. Curitiba: CRV, 2024.

[2] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petropólis: Editora Vozes, 2006, pág. 327. O conceito de cura (sorge) e cuidado, longe de ser o cuidado no sentido comum, como erroneamente propaga Leonardo Boff, tem que ver com a disposição originária do ente humano ao sentido do Ser enquanto Ser. 

[3] COSSIO, Carlos; KELSEN, Hans. Problemas escogidos de la teoria pura del derecho: teoria egologica y teoria pura / Kelsen-Cossio. Imprenta: Buenos Aires, G. Kraft, 1952, pág.107.

[4] COSSIO, Carlos; KELSEN, Hans. Problemas escogidos de la teoria pura del derecho: teoria egologica y teoria pura / Kelsen-Cossio. Imprenta: Buenos Aires, G. Kraft, 1952.

[5] COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944.