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Não farás perguntas

BrenoÉ provável que queiras um filho. E, então, bobamente feliz, quererás o teu filho. Farás de tudo para que ele tenha no rosto sempre o desenho de um riso largo, não cariado. Dirás, na presença de teu filho, coisas belas, magníficas, inexistentes. Quererás um filho, menino forte e ágil, quererás esse filho bobamente feliz. A ele, quando crescido, não farás perguntas. Ao revés, de todas as interrogações, cuidarás em mantê-lo distante, numa dessas alturas onde nada se escuta. E, então, o teu filho ignorará a possibilidade de fazer pergunta a si próprio, conversando com plantas e bichos – que não questionam. Quererás teu filho sempre em riso descerrado, longe de meninos sem dentes e de pés sujos. Porque teu filho terá a alvura de qualquer coisa celeste. Bobamente feliz, quererás o teu filho. Apartado de livros, de palavras que façam pensar sobre imagens obscuras. Porque quererás teu filho sempre próximo ao céu. E de tudo farás chegar ao teu filho o quinhão do triunfo, a fortuna da vitória exposta em dia de Natal a outros dois imaculados. Carregará a sina de ter de sorrir ao lado de anjos e harpas de glória, o teu filho. E, então, bobamente feliz, darás a teu filho um designativo único, majestático, desses que, ao longe, se distinguem os traços de alguém que ri. É provável que queiras um filho e a ele farás participar o doce de uvas não envenenadas, pisadas por pés etéreos para vinho. Quererás o teu filho bobamente feliz, o desenho de um riso largo, não cariado, e, então, suprimirás todas as perguntas, os silêncios que bosquejam a silhueta de uma interrogação. É provável que queiras um filho.

Por: Breno S. Amorim

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Curso de corte e costura: kitsch sob medida

‘’Por querer trazer-te, filho,/ para a entranha do sorvete,/ para longe do real,/ para as páginas do azul,/ para as cores da linguagem,/ para os lábios do silêncio,// fiz-me pária dos apátridas,/ fiz-me algoz dos sem-vozes,/ fiz-me o ponto do final./ Fui-me.’’ (Nauro Machado, Poema)

CioranCioran, filósofo romeno, ao esboçar traços sobre a genealogia do fanatismo, diz-nos que a necessidade que o homem tem de mitologia triunfa sobre a evidência e o ridículo. De imediato, tal se nos afigura bastante pertinente a este bosquejo de ensaio.

Há sempre um risco em falar do próprio tempo. Os que nos cercam, em polvorosa, veem a nossa quietude como disparate. Todos correndo e vocês – dois ou três – aí sentados, buscando palavras, revirando sintaxe? Não notaram que estamos todos, exceto vocês, salvando o mundo? Assim nos interrogam, esses novos templários.

Uma palavra: kitsch.

O silêncio lacera. Acutila a (falsa) harmonia que o estrépito nos presenteia, obriga-nos ao peso da clareza a propósito de nós mesmos. À leveza, no entanto, oratórios e templos. Tão mais aprazíveis – este, o imperativo – as alturas, os pés distantes do chão, as feridas longe do sal da terra. E tudo isso com barulho, estardalhaço, balbúrdia: anulados pela fala. E tudo isso com arrogância, falso Absoluto, erguendo um templo por dia.

Uma música: Kitsch Metropolitanus.

Deliberadamente, abdicamos, neste instante, da crítica com viés artística, engendrada pelo Belchior. Importa-nos relacioná-la ao contexto (reiterado) e às observações de Kundera, precisamente as contidas em A insustentável leveza do ser.

O kitsch é um ideal estético. Consoante Kundera, há um acordo categórico com o ser, o qual exsurge para negar a merda, incutindo-nos mesmo que ela inexiste. Bem por isso, o kitsch exclui de seu horizonte tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável. Os grupos, mais do que ninguém, sabem de tal. Não só. Na verdade, aproveitam este instrumento em busca de visibilidade, prepotência etc. etc. Ato contínuo, possibilitam o psitacismo, provocam a repetição inconsciente – e triunfam. (Ora, sem psitacismo não há grupo.)

Este ideal estético, esclarece Kundera, ‘não se interessa pelo insólito, ele fala em imagem-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor’. Em sequência, orienta, reduz todas as possibilidades a apenas uma, os caminhos não mais se desdobram: vereda única. ‘O kitsch’, diz-nos o autor, ‘faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças correndo no gramado!’.

Não obstante, os que integram os grupos, pelo gosto do auto-engano, preferem falar em autonomia, autenticidade – justo eles, que não as conhecem.

Cá, parece-nos acertado evocar (já era hora!) a composição do Belchior. ‘Que tal usar brilhantina?/ No país da vaselina’, pergunta o poeta. E calha muito bem aqui. Vaselina, ora, acabou se tornando gíria para designar indivíduo hábil no trato, que acomoda muitíssimo bem suas ideias aos interesses do momento. Algo parecido ao que disse Groucho Marx, comediante norte-americano: ‘Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros’. Mas não é tudo. Além da vaselina, o adepto do kitsch metropolitanus necessita pavonear-se, evitar o olvido dos holofotes.

Imediatamente, entoa:

‘Que gente fina! gentinha…

Rainha em puxar tapete

Não posso entrar numa sala

Que eles vêm de cassetete

 Kitsch metropolitanus

Essa moçada promete

Garotos clones mutantes

Com que gastar meu confete?’

Cá, a faceta totalitária do kitsch. Se eles vêm de cassetete, Belchior, tal se deve à possibilidade de ameaça. Tudo o que aterroriza o kitsch é banido da vida. Os grupos, distinguindo apenas um caminho, o da Verdade Suprema e inquestionável, afugentam qualquer discordância. Ora, já aqui se percebe, todo grupo, orientado pelo kitsch, não perdoa a individualidade de cada qual, extermina a liberdade particular, em nome de um todo que ele próprio não crê absolutamente. Falam em liberdade plena e, em passo contrário, edificam a figura do líder, boca que enunciará os desejos de todos (?).  Ato contínuo, fazem do interesse particular (aprenderam com Ulpiano!) algo supostamente geral, homogêneo.

O kitsch, amigo Belchior, contorna imagem de látego.

De resto (o desfecho é sempre contumaz), importa-nos dizer que, ‘nenhum de nós é sobre-humano’, afirma Kundera, ‘a ponto de poder escapar completamente ao kitsch’. Necessário, ainda assim, conservarmos, em nós, o homem que interroga e não aceita facilmente o dito e repisado, verdades arranjadas às pressas. Este homem, afinal, por não abandonar incerteza e dúvida, é o único adversário do kitsch totalitário.

Breno S. Amorim

Um homem

Breno“A hora de partir soou para mim.” (Mallarmé, Stéphane. ‘Ele deixa a câmara e se perde nas escadas’)

A casa semidespovoada. Uma rede, geladeira pequena, escrivaninha e cadeira. Alguns livros espalhados pelo piso. O grande silêncio de quem divide a própria solidão consigo. Não há espelho. Há muito não vê o próprio rosto. Tateia os traços faciais no afã de reconhecer o rapaz de tempos outros, longínquos.

*

Como nasce um personagem? De que ventre, com qual ato de amor ou rompante? Decerto, não surge duma caneta, folha esbranquiçada, ociosidade. Todo personagem é táctil, carrega as dores cotidianas, tem sangue. Grita, ama, desama, mata, morre. De onde brota esse desdobramento? De um desejo sufocado, duma inaptidão? Dizemos “tal personagem sofre”, porque já não podemos desencobrir nossa ferida? E, no entanto, não é de todo desconhecido, uma vez parido, ganha vida própria, reclama livre-arbítrio. Apontamos dado caminho; ele, ao revés, desdenha do alvitre, segue por outra vereda, abisma-se por entre ruas desconhecidas. Que é um personagem?

Algumas tribos australianas têm grande cuidado com o nome. Se tal for semelhante a uma palavra e o seu dono morrer, ela acabará supressa, substituída por outra. Necessário, está visto, precaução. Com o designativo particular, afugenta-se o algoz, inscreve-se no músculo bombeante de alguma moça, assina-se a obra interminável. Joaquim, ei-lo.

*

“Um ser humano é um ser humano”, lê, força na voz, caminhando dum lado para o outro do parco espaço. Repete. Torna a repetir: “Um ser humano é um ser humano”.

Todo homem tende a tornar-se misantrópico. Quem não já lamentara a desdita de não ter nascido Raskólnikov? Com que medo aquele senhor refreara a ânsia do rapaz de outrora, que pensava ser Zaratustra? Ir ao pináculo, a cidade estrepitosa deixada para trás, encontrar consigo próprio, poder gritar sem o auxílio da almofada, longe dos homens, nunca mais a palavra…

Por isso, esta casa, esta rede, esta geladeira miúda, estes livros espalhados, a escrivaninha pequena, a cadeira desgastada. Por isso, a casa semidespovoada, o silêncio inarredável… Por isso, Joaquim, a sua solidão, o homem que é homem sem atavios, penduricalhos.

*

O que caracteriza a fuga? Quem foge, foge de quê? Deserta quem parte, não quem fica? A palavra ativa uma óptica. Diz-se e fica sendo – apenas para quem fala. Do outro lado, talvez não haja sequer ouvido atento. Aquele que pronuncia pensa ter mudado o mundo, a ordem das coisas, nomeado algum fragmento do inapreensível. A ele, no entanto, a indiferença de quem já não mais escuta, de quem, também, pode falar e que, por tal, não compreende. Cada vocábulo é uma sentença – para a boca que o enuncia. Para o destinatário, confusão, excrescência lançada num desvão.

Joaquim repassa, na memória, os muitos sons emitidos em sua direção. Enquanto caminha, vozes resolutas intentam mostrá-lo o disparate de seus passos, a impertinência duma cabeça repleta de quimera. “Pudera, essa ociosidade acabaria em tolice!”, diziam os que lhe queriam bem. “Largar tudo, sequer um olho a esguelar-se para trás… loucura, ingratidão.”

Os que nos querem bem não nos querem bem. No velório central, assassinos choram a morte de assassínios seus. As mãos sempre ao peito, a cabeça baixa, a fala mansa, sempre solícita. Os que nos querem bem nos matam com a vida imposta, o beco sem saída. Joaquim, desgastado pela ladainha diurnal, não desconhece. Os mortos, estes que vivem, não descansam. Querem levar-nos aos seus túmulos, servir-nos chá, falar do tempo, dos gols da rodada. Os mortos teimam, estão nem aí para as flores dos vivos. Buscam desalumiar a cidade por completo, as praças, o fulgor das esquinas. Os mortos não morrem.

*

Apenas Adélia era afago. Ela, unicamente, a possibilidade do inimaginável. As conversas de fim de tarde, as mãos de Joaquim nas coxas de Adélia, os beijos chamejantes, as pausas para o suspiro. Ais.

Mas Adélia partira. Também ela persuadida a viver a vida protocolar, exangue, a caminhar por entre as mesmas ruas de sempre – a previsibilidade dos dias. Adélia tinha preço, vendera-se barato. Joaquim decepcionado, sua fagulha única tornada em nada, a silhueta que se desfazia – pariforme.

Com que punhado de dor pode um homem aprender a ver, a tornar a si? Quem foge, Joaquim? Tu ou os teus, com as suas cartilhas de vida?

Estamos sempre sós. Duchamp desentende-se com os cubistas, segue sozinho, engendra noiva despida por celibatários. Na parede, Joaquim observa a reprodução da obra, a confusão dos traços. Tem de ser só, compreende, contar apenas consigo próprio.

Lembra o café – fervendo.

*

Falta-lhe vocação para santidade. Não quer ver do alto, como quem se apercebe acima de todo o resto. Sabe-se parte do monturo, conhece as flores desabrochadas na planície.

Tampouco olvida a lição freudiana, não representa o tal eremita. A realidade, esta combinação de falas e percepções, não é sua inimiga, o lugar de onde promana todo o seu sofrimento. Não. Se rompera com alguns laços, nada houvera com o que chamamos realidade. Agora mesmo, essa criança que, sentada ao chão, come restos de comida, achados no lixo, é-lhe táctil, sensível. Teus três recursos para amainar o peso da vida, Freud, de nada servem a Joaquim.

Não o envolve a ciranda da felicidade. Pelas calçadas, a correria de quem quer ser feliz – e paga por isso. Acordam cedo, o beijo no filho deixado na escola, pontual no trabalho. Só bem tarde regressar ao lar, reencontrar a criança, beijá-la novamente e perguntar pela tarefa do dia. Aos sábados e domingos, a felicidade, o riso de quem se sente em dia com a vida.

*

A cidade é dual: desencontro e colisão.

Cartazes na parede informam a Joaquim sobre a sucessão dos dias, fazem-lhe participar do entusiasmo dos citadinos despersonalizados. Espetáculo de teatro, Companhia Andante. Show da banda Rockstar. Aprenda a cozinhar com a sra. Rosa. Aprenda inglês em poucos meses. Madame tudo vê traz seu amor de volta – com vida. Culto de jovens às 18h30min. Dentre todos, um arranca-lhe riso excessivo: Vença você também: novas turmas em maio.

Observa. Na praça em frente ao fórum, senta num banco envolto por uma quaresmeira. Lindas mulheres para lá e para cá, seus saltos altos, os cabelos serpenteados, seus perfumes adocicados.

Entre um e outro passante, a azáfama. Os pedestres imitando os carros, rivalizando com eles. Joaquim repara num grupo de senhores. Todos engravatados, pastas na mão, com algum ar de satisfação – incompreensiva. Diverte-se. Imagine, fosse aderir ao desejo dos familiares e amigos, bem poderia estar ali, em meio aqueles senhores. Também envaidecido, o peito a inflar-se? Tenta imaginar a vida daqueles senhores, os seus diálogos. As lições de linguística na mente, acredita: “Para eles, ainda o lado ingênuo da tradição gramatical do ocidente, ainda a tolice de crer numa relação de essência, a palavra cadeira desde sempre identificada no objeto para assento”.

Ao seu lado, senta uma colegial. Cabelos negros, olhos esverdeados, face lívida. Retira da bolsa um livro e um estojo de óculos. Joaquim, de soslaio, tenta alcançar o título gravado na brochura. Os conjurados, Jorge Luis Borges.

– Dê-me licença, quantos anos tem a senhorita?

Tinha 17, último ano de escola. Joaquim lembrou da leitura de Kundera: cá, a percentagem de inesperado.

– O nosso triste costume de ser alguém…

A mocinha sorriu, timidamente. Era do próprio Borges, quarto poema do livro. Tríade.

– Também hoje é dia do patíbulo, da coragem e do machado.

Despede-se.

Breno S. Amorim

Para quem representamos?

”Minha existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples aparência?” (Sartre, Jean-Paul. A Náusea)

BrenoA invariação dos dias. Constância. Todos buscam despertar tal qual antes. A mesma certeza. A segurança dos frutos colhidos. O imutável da ordem frasal. Que ninguém ouse revirar as palavras lançadas! As manhãs estertoram ante o traço redesenhado. Todos felizes. Invariavelmente felizes. Não mais o passo incalculado, a surpresa da rua seguinte. Percorrem caminhos de ontem.

Dores sufocadas.
Grunhidos.

Gritos inaudíveis. Necessário manter o emprego, o ponto a bater. Pois que inconteste as necessidades cotidianas. Perenais. Pela manhã, o pão. O bom dia ao padeiro. A troça invariável. Horário de almoço. O adeus curto aos colegas de repartição. Dormir cedo. Contar as horas de sono. Recomendável oito, sempre oito. Aos sábados, lavar o carro. Ainda assim, o vangloriar-se. Gabar o compromisso diurnal, hebdomadário. Cumpridor. Prudente.

Despertador infalível. Acordar adormecido. Ao lado, a mulher. Mesma posição. O ‘te amo’ irrevogável. Maquinal. Inexiste a dúvida. Irresolução alguma. Qualquer. Sequer um tropeço. Pedra sobre pedra. As conhecidas irregularidades do solo. Jamais o conserto. Alteraria a disposição dos dias. Perturbaria. Cada qual com a ciência dos movimentos cotidianos. Alterados, o choque. A dor. Que não se acenda ferida! Tanto melhor o lenitivo.

A fuga de si, do outro. Subterfúgio.

Vez ou outra, a comunhão. O cálculo ante o outro. Loquazes, a palavra salvaguarda. Intactos. A fala direta feriria. Dor, não. A publicidade anuncia um mundo sem aflição. Seguros, em doze vezes – prorrogáveis. Passam ônibus – fantasmagóricos. O itinerário infranqueável. A corda a puxar. Mesmo ponto. O abrigo com função social. Onde racionalizar. Tornar a dúvida vã. Retornar ao estado anterior. Dificílimo abandonar a lareira, a família, a espessura do móvel, os sacros valores. A continuação dum malogro.

Para quem representamos?

Breno S. Amorim

Sobre que alicerce ergues a tua casa?

”(…) Até sermos acordados por vozes humanas. E nos
[afogarmos.” 
(Eliot, T. S. ‘A canção de amor de J. Alfred Prufrock’ )

BrenoNo espaço luminoso da biblioteca, Cecília reorganiza os livros na estante. Quase fim de expediente. Raios cróceos invadem a sala e pousam sobre as estantes. Na seção de artes, devolve o livro sobre Duchamp. Em seus dedos, a sujidade das brochuras. A poeira do tempo.

Cotidiano. Cecília é erguida, às seis horas, pelo peso do hábito. Peso entorpecedor. Susto matinal, o despertador que toca. A alvura do teto – o mesmo de todos os dias. Banheiro. Cozinha. Chave. Porta. Um aceno para o silêncio da casa despovoada. Tráfego. Semáforos. Buzina. A estridência dos dias. Ao menos um lenitivo, o som do carro a tocar. Sempre o mesmo itinerário, as árvores invariáveis, os berros diurnais dos citadinos. A preocupação com o ponto a bater, hora certa, infranqueável.

Não a confrange, porém, o trabalho. Lá, onde o hábito perde a força. Desde criança, Cecília se deleita em meio aos livros. Cercar-se deles, por tal, representa pleno regozijo. Decepcionara a família, os seus planos grandiloquentes, seus projetos estatuídos sem a participação da própria incumbida. Contrafeitos, os familiares julgavam-na cruel, pois se já houvera aviso renitente: serás grande, doutora. Bibliotecaria, ora, que disparate!

A luminosidade nunca lhe chega cedo. Necessário enfrentar o desabrochar do dia, a sua repetição. De sorte que o dia sempre se inicia ante a escrivaninha, o movimento dos frequentadores, o arrastar de cadeiras. O seu paraíso – onde as pessoas sabem da possibilidade do sussurro, onde predomina o silêncio sem a necessidade do despovoamento. Os jogos de olhares, as intenções demonstradas sem ruído, os sorrisos que contêm grandes narrativas.

Dentre as inúmeras pessoas que vão até o seu balcão, sempre há as que, de algum modo, encontram espaço nas paredes de sua memória. Não precisa muito. Um mão que lhe dirija a carteirinha e um livro cuja admiração lhe é incontestável – apenas. Assim, conhecera Arthur. Passos comedidos, cabeça descaída, entregara à Cecília uma brochura pesada. Largo sorriso, o dela. Cinéfila, com que euforia não recebera Hitchcock/Truffaut: entrevistas! A fila a esperar, enquanto Cecília e Arthur falavam a propósito de cinema, da Nouvelle Vague, do Cinema Novo, de Glauber Rocha. Um dia inaugural, menos para Arthur do que para a bibliotecária. E, no entanto, ei-lo a prometer o retorno, a conversa posterior à leitura.

Retornara. Não poucas vezes. Cecília ainda mais aficionada pelo trabalho. As reminiscências eram suficientes para clarejar o dia, logo cedo. Mesmo o despertador não alcançava o susto de outrora. Da alvura do teto, fizera céu desanuviado, pintara sol com lápis de cor imaginativo. O amor. Evitava racionalizar. Conjecturar sobre essas questões do peito queria parecer-lhe bruteza, estupidez. Entregue, o alarde das buzinas chegava aos seus ouvidos como música – Bach, quem sabe?

Tudo é pretexto, Arthur recordava o que dissera seu amigo. Buscava coragem para ir ter com Cecília. Os livros já não se lhe apresentavam como desculpa suficiente. Impossível ler um livro por dia. Tanto mais impraticável apagar, de sua memória, o desenho do rosto de Cecília, a silhueta de seu corpo. Caminhava pela avenida principal da cidade. Pelas calçadas, mendigos desdiziam as mentiras espalhadas pelos outdoors, pelas falas do prefeito. Os discursos cândidos não lhes enchiam a barriga. Distraidamente, Arthur lançara uma moeda. Também ele queria esconder o próprio monturo? Um ato abstraído e um contentamento ao peito? Arthur, o arquétipo de citadino.

Como clarão que irrompe inesperadamente, enxergou, na parede, um cartaz divulgando a exibição de clássicos do cinema francês. Olhou para o céu, descrente, e agradeceu. O pretexto.

Tem pressa. Ultrapassa os passantes, esbarra em barracas. Segue. Pretexta:

– Cecília, um convite… – diz, ofegante.

– Boa tarde! – ri um riso gostoso.

– Vi, há pouco, que exibirão Jules et Jim. Será num tal cinema alternativo, até então desconhecido.

– Truffaut? – e ri novamente. Já assisti.

– Sim, supunha. Mas sempre é bom retornar aos clássicos. Para os cinéfilos, então…

– Tudo bem! – o riso ainda na boca.

Foram. Conquanto assistido pelos dois, o filme se lhes parecera inédito, inexplorado. Neste dia, Cecília dormiu tarde. Arthur lhe deixou em casa. Ao se despedirem, ele não suportou a covardia do abraço que podia não ser. Enlace. Cecília se revirava na cama, o cheiro dele invadindo o quarto. Seis horas. Toca o alarme e ela levanta para continuar o sonho – de olhos abertos.

Biblioteca. Arthur some por três longos dias. Impaciente, Cecília deixa de notar os títulos das brochuras que passam para empréstimo. Vê, unicamente, a cor das capas – neste instante, todas pariformes. Fim de expediente. Agora, a luminosidade faz-lhe lembrar do astigmatismo. Maldize-na. Do rádio, a voz de Ângela castiga: ‘Sua presença destrói todos meus desenganos/ Minha ausência causou-lhe uma série de danos’. Dado o seu queixume, invertia o último verso. Quão longe, aquela casa, guarida de medo e súplicas – contidas.

Arthur aparecera, como tudo que vive. Cecília refrea a objeção, quase a pular da boca. Ora, a expectação é sempre de quem ousa engendrá-la, torná-la táctil. Cecília sabia, pois que silenciara. Os cumprimentos corriqueiros, as mesmas perguntas iniciais e, novamente, um convite. Arthur queria conversar. Havia algo a ser dito.

‘És casado, Arthur? Por que me dizes isto?’ – sufocava a própria dor no peito. ‘Por que seria importante?’, castigava-se ainda uma vez. O sempre comedido Arthur, desconcertara-se. Seu corpo nunca coube em lugar algum. Bancário, protocolar, a vida nunca foi algo que lhe importara deveras. Sempre a calcular, mensurando o que se pode perder e o que se pode ganhar. Mas tem hora que falta pilha na calculadora, os números se embaralham e, ora, resta o coração. Num rompante, confia à Cecília seus desejos e sentimentos. Lembra Guido – conversa de cinéfilos – e reproduz o diálogo, por três vezes, com Dora. Cecília ri, embaraçada. As carnes se conversam.

Ei-la mais uma vez sorridente. Agora, de quando em quando, ao sair para o trabalho, acena não mais para o silêncio duma casa desértica. Uma outra mão lhe devolve o aceno, ao dizer-lhe, prazenteiro, ‘até mais, Dora’.

Porque morada de medo, Arthur, ante o encontro diário com a própria mulher, racionaliza o que sente por Cecília. Conversa com Miguel, seu amigo, e tem de escutar a dureza de quem dá eco ao coração.

– Arthur, estas coisas são assaz simples. Cecília é única, uma chance irrepetível. Com ela, todas as cidades aparentam Brasília. Que te importa o casamento de então, se jungidos pelo medo da vida, pelo conforto da segurança? Não te pareces inabilidade para o amor? Casaste, é verdade. Mas apenas uniram duas fortunas. Com Cecília, unirão duas indigências. A vida sem excrescências, acredite-me.

Impraticável o despejo de verbos ante ser empedernido. A pilha fraca da calculadora logo é substituída. Arthur vive numericamente. Relaciona-se como quem computa os lucros que poderiam ter sido, suas horas em dólar.

Miguel insiste. Lembra a leitura dum filósofo francês e assevera, procurando eloquência na voz:

– Surgindo-nos o amor, Arthur, necessário coragem. É preciso transpor os pontos de impossibilidade. Todos eles. Se te recusas à amar, terás que esperar por longos anos, até que apareça outro amor  com a mesma força. Não, tolice tua. Não és capaz de esperar, não. Tua incapacidade forja aptidão inalcançável.

Irredutível, de nada serve o alvitre do amigo. Vai ao encontro de Cecília, quer encerrar, de uma vez por todas, esta estória despropositada. Aferira, assustara-se com a possibilidade do não-lucro – ‘mas se minha mulher me tem tanto amor’. Correr o risco – recordava Miguel: ‘Amor é risco, Arthur!’ – de ser menos amado, ter de enfrentar a insegurança, não tinha mais idade para estes disparates. 32 anos, veja lá! Mulher já em casa, guardada, direito adquirido. Que lhe importa o amor que não tem? Tudo é questão de costume – a insustentável leveza dos dias! Mesmo a boca de Cecília não vale a aventura de procurar viver a terra. Batia seu dedo nos botões numéricos da calculadora.

Cecília sufoca um choro. Conserva-se silente por algum tempo. Arthur quer ouvi-la, o silêncio lhe aturdindo.

– Arthur, compreendo-te. Cheguei em tua vida e, como no conto de Cortázar, fui tomando os teus cômodos. Quis te livrar da casa, teu abrigo aquecido. Pensei em te dar minha vida como quem, num rompante, lança mão de um convite para a vida mesma, em estado bruto. Tu, fustigado pelo frio que faz do lado de fora, foi reconstruindo o teu lar. Que hei de te dizer, Arthur? Reergueu a tua casa, bem se vê. Sabes, porém, que o alicerce dela é o medo?

Calado, a tudo escuta sem que simule uma mínima objeção. Escuta aquelas palavras e recorda outras, ditas por Miguel:

– Tens de perder este teu medo de ver cessado o medo, Arthur. Como explicar a tua fuga? Preferes permanecer em braços lânguidos à deixar-te levar ao encontro duma boca que te incute coragem?

Cecília, ainda aceso o peito, caminha por vielas outras, várias. Quer fazer, do seu amor, outra coisa que não espera e cansaço. Recorda Arthur, sua hesitação incontida – mesmo no ato do não -, suas conjecturas imperdoáveis. Miudezas. Rememora Borges, aquela brochura vermelha. Cada homem é dois? O desperto e o que dorme? Arthur nunca acordará – a injustificável distração ante a vida. Esta modalidade soberba do morrer.

Olha ao derredor. A confusão das ruas, as casas – abrigos de medo. Quantos Arthur encondidos pela cidade? Seus olhos transpõe as paredes. Nota uma sala, muito bem ornada. Num canto, um homem lê o jornal do dia, a xícara no criado-mudo. Noutro, uma mulher usa a ponta do dedo para menear o tablet. Grande silêncio. Entre os dois, Cecília entrevê o medo, o conforto, o torpor – essas vidas asfixiadas.

Outra vez, Arthur, este fantasma, penetra-lhe a cabeça. Névoa. Com seu riso irônico, Cecília faz parar um transeunte:

– Não sabes?

– O quê? – devolve, contrariado.

– Arthur morreu de segurança. Sufocado.

E ri o riso dos vivos.

Breno S. Amorim

Do que se foge, ao fugir?

“(…) E o que era medo, em desejo floresce.” (Dante, A divina comédia: Inferno)

BrenoAcordou eufórico, numa manhã de domingo. No lençol, uma poça se formara. Suava. Em sonho, dois olhos negros se aproximavam e, tão mais rapidamente, batiam em retirada. Com que susto abriu os olhos! Exausto, viu-se cercado pela alvura do teto. Letargo.

A inquietude dos dias possuía rosto e nome. Meses atrás, deparara-se com Sabina. Onde, precisamente, não recordava. Enfeitiçado por seus olhos, danou-se a segui-la. Necessitava nomeá-los, guardá-los, cravejados, na parede da memória.

Pequenina, cabelos longos, bochechas róseas, dois grandes olhos – ei-la refletida em sua memória. Relembrava aquele sorriso sublime, os dedos percorrendo o desenho da boca, enquanto, sobre a escrivaninha, um livro descansava semiaberto. As letras, no papel, pareciam-lhe embaralhadas, excessivas. Neste instante – vá entender o que atormenta um homem -, só uma coisa necessitava ser dita. Vocábulos demais, períodos demais, sintaxes disparatadas. O livro semiaberto.

Recordava Sabina, a sua confusão, suas hesitações, os seus verbos não conjugados.

Escrever é triste.

Quantas elipses para a não-palavra? Que lhes importam os anacolutos, nesse proferir de palavras aos pedaços? Catacreses pululam ante a inquietude que não lhes permitem calar.

Com o tempo, conversas, insônias, ânsias… Palavras. Ausências intermitentes. Horas pungitivas. Sabina, ao mostrar-lhe alguma possibilidade, sumia em seguida.

Palavras.

Nada se dizia com a carne.

Vocábulos.

Sabina refletia. Pensava em fugir, querendo ficar. Seus pés moviam-se por ideias turvas, tal qual alguém que, por alvitre próprio, inventa culpa e expiação – inconcebíveis. Embora pronunciasse a palavra fuga, Sabina não a queria, absolutamente. Ora, se, ante uma indiferença, alguém retorna ao estado anterior, como afirmar que a fuga é deliberada, e não reflexo de um medo? Sabina falava em fuga como se dissesse “prenda-me”, “estou a avaliar a tua covardia”…

Ele não desconhecia.

Via, nos mesmos dois olhos, o movimento convidativo, dançarina a soerguer a mão para um tango. Pareciam-lhe, porém, um tanto impiedosos.

E a vida, questão de urgência, permite a espera do que se nos afigura inadiável?

Os carros que passam, as balas disparadas, os cânceres em macas por entre os corredores de hospitais públicos… Até quando, a vida?

A árvore, outrora abrigo dos namorados casuais, fora arrancada. O homem retorna ao local. Nenhum vestígio de caule, raízes. Na memória, os beijos, as noites, o tugúrio de ontem. Até quando, a vida?

Ruminava ao percorrer ermas ruas. Sozinho, em meio ao estardalhaço, pensava em dividir solidões, fruir do que o ser abriga: seus medos, suas dúvidas, seus bramidos abafados.

Ensaiou um grito.

Não vingou.

Ao seu lado, pessoas corretíssimas calavam as suas podridões. Cada qual fora de si, jungido em demasia às aparências, na fatigante arte de dissimular enquanto se abotoa o paletó. Cadáveres que não se reconhecem.

E esta fuga, pensava, que não é fuga, não haverá de afugentá-la. Por reversão dos efeitos, Sabina poderia fazer, de sua debandada, um desertor. Não sabia ele se, diante de tanta fuga anunciada, desertar revelaria covardia ou cansaço. Perplexidade, de sua parte, não havia. Por muito tempo a procurar, tantas esquinas percorridas, sabia, pé batido no chão, que encontrara. Sabina lhe parecera a mulher que, em sonhos, desenhara certa vez.

Do rádio, uma música ressoava:

“Nunca te vi, sempre te amei…”.

O amor precedia a existência dos olhos, os traços faciais. Sabina apenas – e como é muito! – representava o arquétipo antes forjado.

De sorte que seus dias nasciam para equilibrar uma dúvida. Entre a força de agir e o cansaço da resistência, onde ele? Acovardar-se, esquecer a canção, rasgar o desenho? Soubesse ao menos com que traços rabiscar face nova. Não sabia. Um único quadro, apenas dois olhos diante de toda uma vida?

Que é feito das esquinas?

A dúvida.

O sol exsurge, cala-se.

O findar e nascer, contínuos, dos dias. Renitente irresolução. Será o final feliz deveras ardiloso?

Ainda silente, outro sol – e uma mesma indecisão.

Breno S. Amorim

Frutos: mas que frutos?

 “Não levas tua beleza ao túmulo:
trazes ao túmulo o imprestável.”
(Nauro Machado, Hades)

BrenoAbriu a porta do carro e entrou. Marcelo estava ansioso, era o seu último dia de graduação. Cinco longos anos. A árdua aprendizagem que a universidade não lhe dera. Apresentada a monografia, adeus sala de aula. Horas estragadas, pensava. Angústia-resto.

Em casa, aprendeu a lição secular. Necessário ser alguém, todos lhe diziam. No início, não compreendeu bem o badalar perenal. Nascer não basta? O pai dizia que não. Assim a mãe, a vó e o irmão, mais recente aprendiz. A escola logo lhe apareceu como primeira gradação. Lá iria aprender a ser alguém, tornar-se grande. Matriculado, a velha liturgia fê-lo juntar letras, formar vocábulos. Riscado o quadro, a professora instigava os alunos à repetição. De tudo, a sonoridade das palavras o entontecia.

Em tempos de vestibulares, dois interesses colidiram, infranqueáveis.  Por sua própria vontade, escolheu Física, paixão cuja escola não conseguiu matar, absolutamente. Como, porém, explicar ao pai? Rubem, homem criado na lógica da mercancia, não dava ponto sem nó. Observava, mesmo uma flor, sob a ótica da lucratividade. Vá explicá-lo a propósito das paixões, dos impulsos! Debalde, pensava Marcelo.

— Menino, atente: é preciso ser grande, doutor. Física não te levará a lugar algum. Melhor te cairá um terno ou um jaleco… De médico, não me venha com graça! – sentenciava.

A contragosto, ei-lo advogado. Doutor, sim, senhor! Com que força – ou languidez – move-se um homem sob coerção? Bacharel, o diploma na parede, o pai estampava largo sorriso, enquanto mostrava aos visitantes o papel que era mais seu que do filho.

— Doutor, meu filho! – repetia, efusivo.

Sim, ainda havia outra árvore de que colher frutos. Grávida, a mulher abrigava uma prospecção. Tal a sua idiossincrasia, aos filhos bem poderiam ser os nomes dispensáveis. Antes um número – essas vidas estatísticas.

Nos livros, Marcelo afogava a própria tibiez. A literatura, precisamente, soprava em seus subsolos, clarejava sua água-furtada. Com que euforia lera as andanças do Cavaleiro da Triste Figura! E Dostoiévski, em continuação, que maravilha de idiota. Se ao menos conservasse a intrepidez de quem, elegendo ideais, segue a desafiar os percalços do caminho. Ser, também ele, guiado por uma pura beleza. Se Dulcinéia ou Nastássia Filíppovna, pouco se lhe daria. Importante, unicamente, um encanto arrebatedor, uma força a incitar coragem ante os despropósitos do mundo.  Mas, não. O medo o tornara isto que é, um títere que delira com cordéis inalcançáveis.

Fustigava-o a mínima decepção causada. O cotidiano afugentava, por seu próprio alvedrio, as lições tomadas nas brochuras literárias, tamanho o hábito contristado de fazer as vontades forâneas, alheias. Ser benquisto, não sabia Marcelo, requer, em muitos casos, a anulação de si próprio. Dizer não aos familiares – que fardo insuportável! O sorriso dos que lhe cercavam, queria crer, valia os seus infernos diários, os passos não dados, as cidades não vistas, as ardências longínquas. Seguia, tal a sua convicção.

Ante o impulso da satisfação externa, Marcelo enceta carreira por todos há muito esperada. Nascera com esse objetivo. Preestabelecido unilateralmente. Um feto a espera do ‘doutor’ a anteceder o nome, uma criança a brincar enquanto se delibera sobre seu futuro certo, pontual, irretorquível. Doutor, ei-lo. Primeiro cliente. Para ele, chateação. Ter de ir ao código, encontrar-se com juiz, dizer ao inaugural que não se preocupe, que fará tudo quanto alcance. Enfado. Por muito pouco, náusea.

Dia da audiência. Acorda cedo e, entre um e outro bocejo, sorve o café. Trânsito. Estrépito citadino. Chega. Atravessa a rua, distraidamente. Outro bocejo. A cabeça em outro lugar, caminha, displicente, em direção ao fórum. Não nota o carro em alta velocidade, motorista embriagado, logo cedo, que absurdo!

Em seu velório, o pai, em prantos, remói a própria dor. Tentam acalmá-lo. Falam nos desígnios de Deus. Que não, responde, não pode ser. Aos berros, lamenta os lucros cessantes. O filho morto depois de tanto investimento: escola, faculdade, livros técnicos, calculadora, régua. O que fizera para merecer tal, Senhor, o que fizera? Desconsolado, desvia o seu olhar para a barriga da mulher, já agora com oito meses. E como quem vê o prorromper de chama nova, estertora:

— Ao menos este fruto a colher, este doutor futuro, esta prospecção…

Breno S. Amorim

Esquinas inconciliáveis

BrenoDo asfalto, a quentura do sol enturvece a nossa visão. Em disputa impraticável com automóveis e outros passantes, andamos. O ar é todo buzina e recendências várias. Contígua, uma moça, morena, cabelos serpenteados, trespassa-nos, a interromper o movimento dos carros. Interessante imagem, silhueta que nos faz esquecer o cansaço. Eufóricos, transmudamos.

Antes silentes, olhamos uma mesma figura e trocamos olhares entre nós próprios, com algum comentário. Sorrimos ante o sol que nos arranca suor e, neste instante, qualquer que seja a caminhada, não nos exaspera a maior dentre as lonjuras. Ao revés, escolhemos encompridar o percurso, fazer do trajeto circunstância diferente de uma obrigação, agastamento cotidiano. Algo nos assaltara, embora não possamos afirmar, com alguma certeza, qual a parte da tal moça nisto tudo. Acendera, decerto, qualquer coisa dentro de nós, há pouco repletos de escuridões, obnubilação a medrar.

Uma silhueta despede o corriqueiro? Com que perfume afugentar a trivialidade mesquinha? Seguimos. Não mais a vemos, as esquinas várias querem nos distanciar, legar-nos o amargo sabor dos encontros interrompidos, de olhos grandes que não tremelicam ante o confronto de outros mais, confrangidos por luminosidades contumazes.

Romper com vínculo inexistente – como explicar a confusão de vocábulos tão contrariados? Declinamos da resposta, já agora na Fernando Góes, sem um mínimo rastro de pés locomotores de olhos sumidouros. Abel estertora e faz certo comentário. Recorda Baudelaire e o cansaço não obsta a consequente declamação: “(…)  E cujo olhar me fez renascer de repente,/ Só te verei um dia e já na eternidade?/ Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!/ Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,/ Tu que eu teria amado — e o sabias demais!”.

Diz-me, entusiasmado, que nós também temos a nossa passante. Passante que não vê o Sena, mas que atravessa o velho Chico de barquinha e ruma em direção à Catedral. E, enquanto aguardamos os carros passarem, arremata, sem desfaçatez: “Também eu a amaria”. Sorrimos.

Como num quadro de Duchamp, Abel desenha a primavera ante o encontro com a moça desencontrada. Ambas as figuras, qual a arte de Marcel, permanecem anônimas, tamanha a quantidade de citadinos. Que frutos colher, Abel, desta árvore imaginativa que lhes separa? A verticalidade de seus corpos imprime movimento e, presentemente, só toca-lhes a fuga não consentida. Entre fumaça de coletivos e litanias despersonalizadas, quem repele quem? A tua parte, Abel, neste itinerário confuso, labiríntico, qual?

O sol, que de ordinário, bem nos parece morte, a nos acometer com o peso dos dias que se iniciam demasiadamente cedo e ainda mais breve se encerram, é-nos, ao menos hoje, afago. Abel questiona a si próprio, já não sabe se outra fluorescência, quaisquer delas, permitir- lhe- ia encontro tal. Se nublado o céu, em dias de tempo fechado, luz artificial bastaria para vivificar o instante, ao abrigo de olhos negros? – pergunta. Com que nome identificá-los? Passarão sempre no mesmo horário? Os ponteiros, amiudados, desconhecem o âmago das horas – as senhoritas que passam, os carros que estancam, os olhares que se esbarram sob raios violáceos.

Abel, suspeito, não mais será vencido pelo enfado dos dias. Penso, tão logo vejo o seu sorriso preocupado, que, doravante, seus passos serão guiados por uma ânsia, um afã irrepreensível. Tal a sua convicção, não o desconsola questões inapreensíveis, se escuro ou claro o céu, se sol ou lua. Mesmo na opacidade, creio, ele reconhecerá o brilho de olhos que há pouco surgiu-nos. E, em linguagem gutural, dirá coisas sobre os amores contrariados – força propulsora do mundo.

Breno S. Amorim

Supereu: a inquebrantável (?) cultura jurídica

“(…) Mas do silêncio em que está encerrado é como se dissesse: ouve-me.” (Avalovara, Osman Lins)

BrenoQue personagem, o jurista! Dentre todos, o mais ingênuo – quando da exclusão da faceta assaz esperta, por suposto. Não afirmo tal em desamparo. Muitos me servem de arrimo. Warat e Osman, por exemplo.

O ingênuo não tem clareza a respeito de si mesmo. Pensa-se além da própria insignificância. Seguro – falsamente – de si, acredita deliberar a propósito dos seus atos. O que, sabemos, não parece verossímil. Ao revés, toda a sua prática está condicionada, adstrita a um espaço de há muito construído. Um títere, valha-me Deus!, a delirar com o manejo dos cordéis.

Em “O futuro de uma ilusão”, Freud esclarece: “(…) Faz parte do curso de nosso desenvolvimento que a coerção externa seja gradativamente interiorizada na medida em que uma instância psíquica especial, o supereu do homem, a inclui entre seus mandamentos”. No caso do jurista, tal se vê recrudescido. O nosso personagem, mais do qualquer outro, detém grande capacidade de interiorizar a coerção externa. Isto, está visto, desde o período universitário, em que o impedimento é tomado por norte pedagógico. Cá, o círculo vicioso de tolhimento dos impulsos. Castrá-lo implica em ausência de perturbação ante os alicerces.

O jurista é, antes de tudo, um crédulo. Disparate? Recordemos o já citado Warat. Em seu “A ciência jurídica e seus dois maridos”, o argentino fala-nos numa “cultura-detergente”. Precisamente, o maior cometimento cultural do jurista. Tal, diz-nos o jusfilósofo, representa piamente um pensamento sem sujeira. Crente, o nosso personagem julga toda a construção jurídica algo cristalino, translúcido. Ora, um advogado dissera-me pensar o direito como instrumento de pacificação social. Quanta candura!

Falta, ao direito, certo pirronismo. Justamente por não ousar a dúvida é que o jurista abisma-se nas significações instituídas. Ora, Jakobson nos ensinara que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer. O nosso personagem, porque ingênuo, toma emprestado, abruptamente, certo arcabouço linguístico. Em pouco tempo, vocábulos ressonam, reverberam – e nada dizem. O jurista, assim, ainda no período de formação, é, sem o notar, coagido à repetição de palavras cujas acepções desconhecem. Diz-se, portanto, “garantia da ordem pública”, “sujeito de direito”, “homem médio” etc. A vaguidão, como se vê, reclama certa estultice bucólica.

Em leitura livre de Freud, aventuro-me à determinada aproximação. Tomemos o direito por religião. Dessarte, estabeleçamos o jurista e o direito como uma “relação com o pai”. Isto, claro, no plano social, não-metafísico. De tal modo, chegamos na ambivalência, tratada por Freud. Eis o temor e a admiração, em convivência plena. O jurista raciocina (com raciocínio autorizado), conclui que será sempre uma criança. Necessita, pois, proteção contra poderes desconhecidos – ou não. A estes, enfim, empresta-lhes a figura paterna – aqui, o direito.

Inevitável, como já se vê, pelejar com a linguagem. Trapacear a língua, como nos ensinara Barthes. Para tanto, a compreensão não-oficial dos sentidos, entonada por Warat, cai-nos como exigência inadiável. O jurista, ao saber do sentido comum teórico, obterá o clarão necessário para operar internamente, lá onde são inoculados os discursos, as palavras permitidas, os valores-ídolos.

Por derradeiro, a sempre pertinente lição da literatura. Desta vez, Osman Lins, em “Avalovara”: “- A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres”.

Por: Breno S. Amorim

Bandeiras da trivialidade: estertor contemporão

BrenoÉpoca alguma escapa às caricaturas. Umas são novidadeiras, lançam trivialidades inauditas. Outras, não: preferem nos festejar com novidades que já nascem velhas, a lembrar Maffesoli. O fato é que a caravana caricatural não padece de solidão, sempre há foliões a segui-la.

Em 1947, Jdanov lança uma caricatura. Os artistas comunistas seguem-na com obstinação. A arte queda, debilita-se. Dentre todos, ao menos um oferece resistência. Graciliano Ramos, presidente da União Brasileira de Escritores (UBE). Logo ele, marcado com os caracteres do provincianismo, o avesso do espírito cosmopolita – o único a destoar. De tal modo, estabelece contraponto determinado ao realismo socialista. Combate-o, como se sabe, com o realismo crítico.

A partir do exemplo de tempos distantes, falemos do nosso próprio quando. Mergulhados nesta parvoíce, que é o politicamente correto, várias são as nossas caricaturas presentes. Do feminismo atual aos movimentos sociais, o que observamos são bandeiras da trivialidade. Já não se pode discordar, oferecer contraponto: o discurso da vítima, conquanto inócuo, faz-se predominante. Aos que, ainda assim, ousam o caminho contrário, sobra-lhes o dístico “conservador”. O próprio Graciliano foi considerado um escritor elitista. De se rir.

Difícil escapar às ordens do dia, às modas vigentes. Cada época possui sua cartilha hermética, bestial. Um amigo me contara a propósito da ojeriza por acadêmicos, conservada por Marx. Todavia, fora longe da universidade que o filósofo criara a sua grande obra. Isto, tenha em conta, num tempo em que a academia representava certa grandeza. Permanece, sabemos.

Tal não significa, como pode parecer ao leitor apressado, uma ode ao sentido contrário, pura e simplesmente. Ao revés, escapar às sensações momentâneas requer mais coragem. Necessário deliberar, por suposto. Não representa, como já se vê, o fetiche da crítica, da crítica pela crítica. Instigar o espírito discordante tem seu risco, sabemos. O que não parece pertinente é deixar-se arrastar pela corrente dos discursos miúdos.

Ora, acaso o Brasil, com tantos movimentos identitários, logra avançar? Para cada vítima forjada, uma insígnia representando a vitória da bestialidade. Todos somos boas almas, corações grandiosos. Ao mesmo tempo, apoiamos às correntes em voga, por mais díspares que possam ser. E isso sem sabermos o porquê. Somos todos índios, mamelucos… Sem ferida a acender-se, porém – mimetismo fulgurante. Colecionamos, tão sôfregos estamos por mergulhar nas questões atuais, bandeiras inconciliáveis. E, infantilmente, inflamos o peito, orgulhosos.

Os discursos enfatizados, com luz refratada para os seus estandartes, qual canto das sereias, seduzem. Ninguém quer perder o passaporte da folia, está visto. Um afã por contemporaneidade! No fundo, todos (?) nos mostramos fac-símiles do personagem Jaime Bunda, de Pepetela. Preferível, pensa o ser contemporão, manter-se alinhado à moda da estação, exigência atualíssima. Necessário, bem por isso, vir um francês para nos alertar. Badiou nos ensina a não dar ouvidos às questões que, a pretexto de transformação, fortalecem sobremodo os seus avessos.

De resto, parece-nos, ser um homem (lá vêm as feministas!) de seu tempo não significa ter como norte o ludíbrio do próprio tempo. Requer fôlego, de sorte a ir além. Sobre ele, deitarão impropérios, estigmas vários. Contudo, lembrem o jnadovismo: quando recordado, o é para ser ridicularizado.