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BRASIL À DERIVA

Roger Batisde definia o Brasil como a terra dos contrastes. Esqueceu de completar que toda a história política do país pode ser resumida à tentativa, até então bem sucedida, de coarctar a emergência dos contrastes e evitar, por todos os meios, a irrupção da contradição antagônica. A independência de 1822 foi um acordo elitista do qual herdamos uma dívida externa sibilina; a República de 1889, conforme um cronista da época, ainda não veio; a mal chamada Revolução de 1930 foi um processo de modernização encabeçado por Getúlio Vargas com vista a subsumir os focos de tensão de forma a desarmar seu potencial crítico: como exemplo, reconheceu-se a liberdade de associação sindical, mas sob a batuta do Ministério do Trabalho, manietando-se o movimento sindical.

Na crise de 1964, a confluência de uma grande vitalidade intelectual e a presença de líderes populares capazes de aglutinar as forças do campo social foi castrada por um golpe empresarial-militar violento que privou o país de um pensamento orgânico cujos efeitos até hoje se fazem sentir [1]; A dita abertura política-que se convolou na constituição de 1988- não foi capaz de remover a colonialidade do poder que sempre secreta mecanismos de exclusão social, territorial e simbólica. Nesse contexto, os partidos são desprovidos de um pensamento da totalidade e são todos infiltrados pela burguesia. No Brasil, as cúpulas dos partidos de ‘esquerda’ são prepostos da burguesia. Parafraseando Mao Tsé-Tung, onde está a burguesia? A burguesia? A burguesia está no partido dos trabalhadores e nos partidos de ‘esquerda’.

O que marca a formação social brasileira é o fosso entre a mediação institucional, incluída a via partidária, e as classes sociais dominadas que, desprovidas de formas de organização capazes de formar um bloco de poder efetivo, mergulham numa verdadeira melancolia política e descrença, criando-se espaço para o falso messianismo das soluções simplistas, mas com força de catalisar parcela desses setores das classes dominadas. Por isso, as crises políticas brasileiras são, seguindo Guerreiro Ramos, sempre crises de orfandade política das classes dominantes decorrentes dos conflitos entre os interesses dessas mesmas classes dominantes.

Obedecendo ao materialismo histórico, verifica-se que o plano real indexou a economia nacional ao dólar, submetendo-a às flutuações e ao bruxulear da dinâmica internacional. Somado a isso, a entrega das riquezas nacionais e a onda privatizante dos setores cruciais criam as condições para crises econômicas cíclicas que, por sua vez, não são debeladas porque falta autonomia do campo político para empreender as reformas adequadas. Hoje, o conflito entre o capital financeiro e o capital industrial foi quase anulado de forma que as opções políticas majoritárias integram o campo do rentismo, mas, diante da indexação da economia, o setor do agronegócio sofre profundo abalo e a crise econômica tende a recrudescer, produzindo novas contradições no campo das classes dominantes. Para ler a dinâmica das lutas de classes, basta visualizar a política de juros do Banco Central e a brutal desindustrialização por que passou e por que passa o país. A religião se torna um fator político de alienação uma vez que alimenta a promessa de resolução mágica dos graves problemas econômicos e tende a se tornar, na dinâmica concreta, junto com a família, os fatores ideológicos mais sobressalentes.

O país encena a falsa solução dos problemas reais e sufoca a emergência democrática. Todos os instrumentos de canalização das lutas políticas são fetichizados, dos sindicatos aos partidos políticos, esvaziando-se as formas de organizações populares. O Brasil colonial vive de esvaziar os instrumentos políticos das classes subalternizadas.

A cena política, desde há muito, limita-se à proliferação de leis simbólicas que constituem a solução imaginária de problemas muito reais. A disseminação legislativa é o sintoma de uma formação social que, incapaz de mergulhar em seus problemas, finge resolvê-los mediante leis cuja eficácia depende de alterações drásticas da ordem econômico-social. O controle de constitucionalidade passa a ser um cenário de refrega política, inflacionando o Judiciário que, depositário das esperanças malogradas, passa a figurar como lugar de governo. O controle de constitucionalidade substitui a atividade de deliberação política coletiva. E não se faz política genuína por meio de controle de constitucionalidade.

 Não obstante, verifica-se uma grande emergência democrática que, mesmo em estado de crisálida, e, desde que encontre os instrumentos políticos adequados, pode significar a possibilidade de uma verdadeira emergência política transformadora. O Brasil é um país propenso à revolução, mas ainda não tem os instrumentos para erigir a força necessária à constituição de um bloco de poder popular, nacional e revolucionário.

A imprensa nacional, que funciona para a desorientação política, tem enfatizado a dualidade Bolsonaro e Lula.  É uma dualidade medíocre porque não expressa as pungentes contradições do país. Ambos representam o capital financeiro. São mitos de um país que perdeu a orientação política e se fantasia de democrático no ato mesmo de negar ao povo um horizonte político transformador. Nenhuma das opções, na medida em que não conseguem articular as soluções estruturais, não governam nem governarão para o povo de forma que, havendo organização, é possível, nos moldes da Revolução Sandinista, governar desde baixo, desde a emergência democrática.

Por isso, a primeira tarefa no Brasil é ampliar a democracia. Lenin, em Duas Táticas na Social-Democracia Na Revolução Democrática, livro que mudou a vida de Maiakóvski, relata:

“A própria situação da burguesia como classe, na sociedade capitalista, engendra inevitavelmente a sua inconsequência na revolução democrática. A própria  situação do proletário como classe o obriga a ser democrata consequente. A burguesia, temendo o progresso democrático que traz a ameaça do fortalecimento do proletariado, volta suas vistas para trás. O proletariado nada tem a perder exceto suas cadeias, e ganha com a democracia todo um mundo. Por isto, quanto mais consequente for a revolução burguesia nas suas transformações democráticas, menos permanecerá estreitamente encerrada dentro dos limites que beneficiam exclusivamente a burguesia, e mais garantias trará mais vantagens do proletariado e dos camponeses na revolução democrática.” [2]

Ampliemos a democracia. Criemos mecanismo de verificação da formação do poder. Libertemos a classe operária dos prepostos da burguesia. Superemos a melancolia política pela coragem do desespero, fórmula de Marx, que Agamben recentemente ressuscitou.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] O Golpe empresarial-militar de 1964 privou o país da melhor geração de intelectuais ( Ruy Mauro Marini, Nelson Werneck Sodré, Alberto Guerreiro Ramos etc) e a melhor geração de políticos da história (Jango e Leonel Brizola).

[2] LENIN, Vladimir Ulianov. Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática.São Paulo: Editora e Livraria Livramento, 1975, p. 38.