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Um homem
“A hora de partir soou para mim.” (Mallarmé, Stéphane. ‘Ele deixa a câmara e se perde nas escadas’)
A casa semidespovoada. Uma rede, geladeira pequena, escrivaninha e cadeira. Alguns livros espalhados pelo piso. O grande silêncio de quem divide a própria solidão consigo. Não há espelho. Há muito não vê o próprio rosto. Tateia os traços faciais no afã de reconhecer o rapaz de tempos outros, longínquos.
*
Como nasce um personagem? De que ventre, com qual ato de amor ou rompante? Decerto, não surge duma caneta, folha esbranquiçada, ociosidade. Todo personagem é táctil, carrega as dores cotidianas, tem sangue. Grita, ama, desama, mata, morre. De onde brota esse desdobramento? De um desejo sufocado, duma inaptidão? Dizemos “tal personagem sofre”, porque já não podemos desencobrir nossa ferida? E, no entanto, não é de todo desconhecido, uma vez parido, ganha vida própria, reclama livre-arbítrio. Apontamos dado caminho; ele, ao revés, desdenha do alvitre, segue por outra vereda, abisma-se por entre ruas desconhecidas. Que é um personagem?
Algumas tribos australianas têm grande cuidado com o nome. Se tal for semelhante a uma palavra e o seu dono morrer, ela acabará supressa, substituída por outra. Necessário, está visto, precaução. Com o designativo particular, afugenta-se o algoz, inscreve-se no músculo bombeante de alguma moça, assina-se a obra interminável. Joaquim, ei-lo.
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“Um ser humano é um ser humano”, lê, força na voz, caminhando dum lado para o outro do parco espaço. Repete. Torna a repetir: “Um ser humano é um ser humano”.
Todo homem tende a tornar-se misantrópico. Quem não já lamentara a desdita de não ter nascido Raskólnikov? Com que medo aquele senhor refreara a ânsia do rapaz de outrora, que pensava ser Zaratustra? Ir ao pináculo, a cidade estrepitosa deixada para trás, encontrar consigo próprio, poder gritar sem o auxílio da almofada, longe dos homens, nunca mais a palavra…
Por isso, esta casa, esta rede, esta geladeira miúda, estes livros espalhados, a escrivaninha pequena, a cadeira desgastada. Por isso, a casa semidespovoada, o silêncio inarredável… Por isso, Joaquim, a sua solidão, o homem que é homem sem atavios, penduricalhos.
*
O que caracteriza a fuga? Quem foge, foge de quê? Deserta quem parte, não quem fica? A palavra ativa uma óptica. Diz-se e fica sendo – apenas para quem fala. Do outro lado, talvez não haja sequer ouvido atento. Aquele que pronuncia pensa ter mudado o mundo, a ordem das coisas, nomeado algum fragmento do inapreensível. A ele, no entanto, a indiferença de quem já não mais escuta, de quem, também, pode falar e que, por tal, não compreende. Cada vocábulo é uma sentença – para a boca que o enuncia. Para o destinatário, confusão, excrescência lançada num desvão.
Joaquim repassa, na memória, os muitos sons emitidos em sua direção. Enquanto caminha, vozes resolutas intentam mostrá-lo o disparate de seus passos, a impertinência duma cabeça repleta de quimera. “Pudera, essa ociosidade acabaria em tolice!”, diziam os que lhe queriam bem. “Largar tudo, sequer um olho a esguelar-se para trás… loucura, ingratidão.”
Os que nos querem bem não nos querem bem. No velório central, assassinos choram a morte de assassínios seus. As mãos sempre ao peito, a cabeça baixa, a fala mansa, sempre solícita. Os que nos querem bem nos matam com a vida imposta, o beco sem saída. Joaquim, desgastado pela ladainha diurnal, não desconhece. Os mortos, estes que vivem, não descansam. Querem levar-nos aos seus túmulos, servir-nos chá, falar do tempo, dos gols da rodada. Os mortos teimam, estão nem aí para as flores dos vivos. Buscam desalumiar a cidade por completo, as praças, o fulgor das esquinas. Os mortos não morrem.
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Apenas Adélia era afago. Ela, unicamente, a possibilidade do inimaginável. As conversas de fim de tarde, as mãos de Joaquim nas coxas de Adélia, os beijos chamejantes, as pausas para o suspiro. Ais.
Mas Adélia partira. Também ela persuadida a viver a vida protocolar, exangue, a caminhar por entre as mesmas ruas de sempre – a previsibilidade dos dias. Adélia tinha preço, vendera-se barato. Joaquim decepcionado, sua fagulha única tornada em nada, a silhueta que se desfazia – pariforme.
Com que punhado de dor pode um homem aprender a ver, a tornar a si? Quem foge, Joaquim? Tu ou os teus, com as suas cartilhas de vida?
Estamos sempre sós. Duchamp desentende-se com os cubistas, segue sozinho, engendra noiva despida por celibatários. Na parede, Joaquim observa a reprodução da obra, a confusão dos traços. Tem de ser só, compreende, contar apenas consigo próprio.
Lembra o café – fervendo.
*
Falta-lhe vocação para santidade. Não quer ver do alto, como quem se apercebe acima de todo o resto. Sabe-se parte do monturo, conhece as flores desabrochadas na planície.
Tampouco olvida a lição freudiana, não representa o tal eremita. A realidade, esta combinação de falas e percepções, não é sua inimiga, o lugar de onde promana todo o seu sofrimento. Não. Se rompera com alguns laços, nada houvera com o que chamamos realidade. Agora mesmo, essa criança que, sentada ao chão, come restos de comida, achados no lixo, é-lhe táctil, sensível. Teus três recursos para amainar o peso da vida, Freud, de nada servem a Joaquim.
Não o envolve a ciranda da felicidade. Pelas calçadas, a correria de quem quer ser feliz – e paga por isso. Acordam cedo, o beijo no filho deixado na escola, pontual no trabalho. Só bem tarde regressar ao lar, reencontrar a criança, beijá-la novamente e perguntar pela tarefa do dia. Aos sábados e domingos, a felicidade, o riso de quem se sente em dia com a vida.
*
A cidade é dual: desencontro e colisão.
Cartazes na parede informam a Joaquim sobre a sucessão dos dias, fazem-lhe participar do entusiasmo dos citadinos despersonalizados. Espetáculo de teatro, Companhia Andante. Show da banda Rockstar. Aprenda a cozinhar com a sra. Rosa. Aprenda inglês em poucos meses. Madame tudo vê traz seu amor de volta – com vida. Culto de jovens às 18h30min. Dentre todos, um arranca-lhe riso excessivo: Vença você também: novas turmas em maio.
Observa. Na praça em frente ao fórum, senta num banco envolto por uma quaresmeira. Lindas mulheres para lá e para cá, seus saltos altos, os cabelos serpenteados, seus perfumes adocicados.
Entre um e outro passante, a azáfama. Os pedestres imitando os carros, rivalizando com eles. Joaquim repara num grupo de senhores. Todos engravatados, pastas na mão, com algum ar de satisfação – incompreensiva. Diverte-se. Imagine, fosse aderir ao desejo dos familiares e amigos, bem poderia estar ali, em meio aqueles senhores. Também envaidecido, o peito a inflar-se? Tenta imaginar a vida daqueles senhores, os seus diálogos. As lições de linguística na mente, acredita: “Para eles, ainda o lado ingênuo da tradição gramatical do ocidente, ainda a tolice de crer numa relação de essência, a palavra cadeira desde sempre identificada no objeto para assento”.
Ao seu lado, senta uma colegial. Cabelos negros, olhos esverdeados, face lívida. Retira da bolsa um livro e um estojo de óculos. Joaquim, de soslaio, tenta alcançar o título gravado na brochura. Os conjurados, Jorge Luis Borges.
– Dê-me licença, quantos anos tem a senhorita?
Tinha 17, último ano de escola. Joaquim lembrou da leitura de Kundera: cá, a percentagem de inesperado.
– O nosso triste costume de ser alguém…
A mocinha sorriu, timidamente. Era do próprio Borges, quarto poema do livro. Tríade.
– Também hoje é dia do patíbulo, da coragem e do machado.
Despede-se.
Breno S. Amorim
Do que se foge, ao fugir?
“(…) E o que era medo, em desejo floresce.” (Dante, A divina comédia: Inferno)
Acordou eufórico, numa manhã de domingo. No lençol, uma poça se formara. Suava. Em sonho, dois olhos negros se aproximavam e, tão mais rapidamente, batiam em retirada. Com que susto abriu os olhos! Exausto, viu-se cercado pela alvura do teto. Letargo.
A inquietude dos dias possuía rosto e nome. Meses atrás, deparara-se com Sabina. Onde, precisamente, não recordava. Enfeitiçado por seus olhos, danou-se a segui-la. Necessitava nomeá-los, guardá-los, cravejados, na parede da memória.
Pequenina, cabelos longos, bochechas róseas, dois grandes olhos – ei-la refletida em sua memória. Relembrava aquele sorriso sublime, os dedos percorrendo o desenho da boca, enquanto, sobre a escrivaninha, um livro descansava semiaberto. As letras, no papel, pareciam-lhe embaralhadas, excessivas. Neste instante – vá entender o que atormenta um homem -, só uma coisa necessitava ser dita. Vocábulos demais, períodos demais, sintaxes disparatadas. O livro semiaberto.
Recordava Sabina, a sua confusão, suas hesitações, os seus verbos não conjugados.
Escrever é triste.
Quantas elipses para a não-palavra? Que lhes importam os anacolutos, nesse proferir de palavras aos pedaços? Catacreses pululam ante a inquietude que não lhes permitem calar.
Com o tempo, conversas, insônias, ânsias… Palavras. Ausências intermitentes. Horas pungitivas. Sabina, ao mostrar-lhe alguma possibilidade, sumia em seguida.
Palavras.
Nada se dizia com a carne.
Vocábulos.
Sabina refletia. Pensava em fugir, querendo ficar. Seus pés moviam-se por ideias turvas, tal qual alguém que, por alvitre próprio, inventa culpa e expiação – inconcebíveis. Embora pronunciasse a palavra fuga, Sabina não a queria, absolutamente. Ora, se, ante uma indiferença, alguém retorna ao estado anterior, como afirmar que a fuga é deliberada, e não reflexo de um medo? Sabina falava em fuga como se dissesse “prenda-me”, “estou a avaliar a tua covardia”…
Ele não desconhecia.
Via, nos mesmos dois olhos, o movimento convidativo, dançarina a soerguer a mão para um tango. Pareciam-lhe, porém, um tanto impiedosos.
E a vida, questão de urgência, permite a espera do que se nos afigura inadiável?
Os carros que passam, as balas disparadas, os cânceres em macas por entre os corredores de hospitais públicos… Até quando, a vida?
A árvore, outrora abrigo dos namorados casuais, fora arrancada. O homem retorna ao local. Nenhum vestígio de caule, raízes. Na memória, os beijos, as noites, o tugúrio de ontem. Até quando, a vida?
Ruminava ao percorrer ermas ruas. Sozinho, em meio ao estardalhaço, pensava em dividir solidões, fruir do que o ser abriga: seus medos, suas dúvidas, seus bramidos abafados.
Ensaiou um grito.
Não vingou.
Ao seu lado, pessoas corretíssimas calavam as suas podridões. Cada qual fora de si, jungido em demasia às aparências, na fatigante arte de dissimular enquanto se abotoa o paletó. Cadáveres que não se reconhecem.
E esta fuga, pensava, que não é fuga, não haverá de afugentá-la. Por reversão dos efeitos, Sabina poderia fazer, de sua debandada, um desertor. Não sabia ele se, diante de tanta fuga anunciada, desertar revelaria covardia ou cansaço. Perplexidade, de sua parte, não havia. Por muito tempo a procurar, tantas esquinas percorridas, sabia, pé batido no chão, que encontrara. Sabina lhe parecera a mulher que, em sonhos, desenhara certa vez.
Do rádio, uma música ressoava:
“Nunca te vi, sempre te amei…”.
O amor precedia a existência dos olhos, os traços faciais. Sabina apenas – e como é muito! – representava o arquétipo antes forjado.
De sorte que seus dias nasciam para equilibrar uma dúvida. Entre a força de agir e o cansaço da resistência, onde ele? Acovardar-se, esquecer a canção, rasgar o desenho? Soubesse ao menos com que traços rabiscar face nova. Não sabia. Um único quadro, apenas dois olhos diante de toda uma vida?
Que é feito das esquinas?
A dúvida.
O sol exsurge, cala-se.
O findar e nascer, contínuos, dos dias. Renitente irresolução. Será o final feliz deveras ardiloso?
Ainda silente, outro sol – e uma mesma indecisão.
Breno S. Amorim
Ardências indolores
“E tu, por que tornar da dor ao meio?”
(Alighieri, Dante. A divina comédia)
Ao longe, avisto um homem. Talvez não um homem espesso, solidamente homem. Miragem é que não há de ser. No deserto, vê-se, imaginativamente, poças d’água. Faz calor. Não tremeluz a minha vista, conquanto. Um copo, violentamente abastecido, impossibilita o embaciamento do que se me apresenta. O homem, ei-lo.
Neste instante, ele vaga pelos bares. Escolhe um e entra. Há barulho, algazarra, arrastar de cadeiras. Não obstante, posso ouvi-lo: fala sobre os livros que leu. Cita um autor, página 231, parágrafo terceiro. De chofre. É ele o homem que, durante o dia, encafua-se atrás de uma mesa, refrigério absoluto, a imprimir ordens via telefone. Posso reconhecê-lo, protocolar, quando do ocaso do sol – e aos finais de semana -, vai ao bar e, entre um gole e outro de cerveja, derrama-se em canto: E no escritório, em que eu trabalho, e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor… Artifícios enevoados, devaneios que não resistem ao esvaecer do álcool. O homem cujos pés jamais percorreram um quarteirão, ante o frenesi de ouvidos atentos, conta causos, malandaças, desventuras… Extraídos de livros múltiplos, assina-lhes com nome próprio. Delira com delírios alheios.
Há momentos em que homem e personagem confundem-se. Deliberadamente, por suposto. Durante o dia, o homem é sempre pragmático, corriqueiro, calculadora itinerante, preocupado com outros dias – inexistentes. À noite, Gregor Samsa o inveja a metamorfose: és hora de perfumaria, desprendimento manufaturado. Há homens que são muitos. O poeta Manoel de Barros dizia-se muitas pessoas destroçadas. Nosso personagem, porém: dois em um, por ocasião. Mesmo o conforto sufoca e, sem abdicar de tal, ele engendra ardências que não tocam a pele. Sofre, confortavelmente. E tudo é dor e beleza, aos finais de semana.
Breno S. Amorim
Não entendo, não engulo este latim *
Li há uns dois anos, um livro intitulado “Prova, provão, camisa de força da educação”. Eu, que durante o tempo de escola, não devotava minha atenção para o que transcorria em sala de aula, ao chegar à universidade e observar o “modus operandi” do nosso sistema educacional, não julguei pertinente uma “autoreprimenda”.
A escola – quem haverá de desdizer? – é absolutamente prejudicial, erva daninha vendida como maçã sem veneno. Sim, o livro supramencionado. Com as lacunas da memória, recordo-me do autor sustentar uma total ruptura com o que aí está, interior à nossa educação. Tal me veio à memória, quando eu rabiscava uma prova – infantil, como quase todas. O professor queria saber se eu era capaz de repetir o que ele dissera, em meio aos nossos cochilos, em sala de aula. “O que é isso?” – perguntava o maestro. “Isso é isto” – respondo, a um passo da genialidade.
Que (não) me perdoem os mestres, mas não há como levá-los a sério. Caso o ato de apreender e repetir fosse pertinente, o Abujamra, ator que tanto gosto, teria criado algo. Mas, não. Nietzsche, para refletir como convém, teve de abandonar a “universidade”, o idealismo alemão. Cioran, outrossim, descobriu os ludíbrios da filosofia e encetou caminhada por outras veredas. Na literatura, Graciliano, como diz o professor Luis Eduardo, foi brindado com a sorte de frequentar minimamente a escola.
Além: não bastasse a parvoíce perpetuada através da dinâmica aula-prova, ainda somos agraciados com os “professores carrascos”, anunciados por Werneck. São eles que, dentro da estrutura do ensino privado, representam os “mimos” das faculdades, engordando os cofres destas com meta pré-fixada: 70% de reprovação de cada turma. No fim das contas, os “julgadores” exercem suas vaidades, com arrimo no regimento, muito embora possuam certa insuficiência intelectiva.
Ora, conto-lhes, enfim, uma “fofoca acadêmica”. Numa dessas seleções para professor, depois de uma aula brilhante, profunda, um dos avaliadores sentenciou: nota quatro. Interrogado, ante a surpresa dos demais, o primeiro respondeu: “achei muito chata”. Se não compreendo, pois, não acho que devo estudar mais. Já que tenho poder de decisão, nota quatro. Se o relato é verídico? Como você, eu também preferia que não fosse.
“Emergimos do mar para indagar, Abel.”
* Verso retirado do poema “Recusa”, Drummond in Boitempo II.
Breno S. Amorim, estudante de Direito.
Crônica de uma decisão judicial
Certa feita, um emblemático caso chegou às instâncias judiciais para ser resolvido, melhor, dirimido, conforme diriam os nobres bacharéis, tentando, com isso, ocultar a petulância sob o pretexto de utilização da correta terminologia jurídica. O caso versava sobre a petição de um ex-condenado para que fosse retirado seu nome do rol dos culpados, uma vez que cumprida a sua pena nada mais devia à sociedade e, portanto, qualquer punição extemporânea resultante do mesmo fato seria violar os princípios norteadores do Estado Democrático. Ainda mais essa punição que lhe atribuía para sempre o estereótipo de criminoso, apesar de ter cumprido a sanção que lhe foi imposta pelo crime cometido, ao inscrevê-lo num rol que lhe negava o direito ao esquecimento e o tornava uma espécie de “morto civil”, inviabilizando seu retorno ao seio da sociedade.
Prostrado sob a análise do caso, o eminente juiz, recém-empossado na sua função de admoestador dos que se desvirtuam do caminho da retidão e justiça, depois de longas horas de estudo da Doutrina e da Jurisprudência dos egrégios tribunais superiores, achou por bem consultar-se com outras autoridades no assunto para melhor nortear sua decisão. E, açodado pelos questionamentos pertinentes ao caso e sua adequação ao quanto estatuído nos regramentos legais, procurou um notório magistrado e professor de Direito de sua cidade, reconhecido pela exuberância do saber jurídico demonstrado em palestras, seminários e aulas expositivas e pela profundidade de pensamento que o distinguia dos demais jurisconsultos, conforme alardeavam os impressos da época.
O nobre juiz procurou então o douto jurista e lhe expôs o caso com todos os seus pormenores. Este, que segundo as crônicas locais se notabilizara por nunca ter tido uma sentença reformada pelo tribunal em mais de quarenta anos de magistratura, após proficiente estudo do caso aconselhou seu pupilo a indeferir o pedido do autor, pois considerava que o entendimento pacífico da Doutrina e também da Jurisprudência caminhava no sentido de que a inscrição do autor do delito no rol dos culpados decorria da consumação do crime por ele impetrado e que, por esta razão, a sociedade detinha o direito de saber quem alguma vez já cometera crime para dele se proteger.
O juiz, em que pese a força convincente das palavras do insigne professor de Direito, não formou seu entendimento segundo as diretrizes que lhes foram expostas e preferiu retardar a decisão até que sapiência mais profícua lhe assomasse à ideia, conduzindo-o a uma solução justa do caso que o desafiava, para tranquilo poder deitar a cabeça sobre seu travesseiro e sossegadamente dormir com o consentimento do tempo e do espaço.
Passados alguns anos, depois de inúmeras consultas a livros e doutores, e já mais experiente no exercício da magistratura, empedernido pelas decisões duras tomadas cotidianamente, o juiz resolveu, então, deleitar-se novamente sobre o caso esquecido nos arquivos da burocracia do Poder Judiciário. E compreendeu, vislumbrando agora a situação sob a perspectiva do poder que lhe fora dado ao assumir a função de magistrado, que a solução sempre residiu na autoridade que exercia sobre o processo, podendo, mesmo dantes, determinar o rumo da pretensão do autor, conforme as suas convicções pessoais, uma vez o livre convencimento sempre foi decorrente do somatório de nossas vivências, enquanto personificação de muitos atores sociais –homem, juiz, cidadão, pai de família, criminoso – porém fruto inerente da inafastável verdade de que somos ao fim sós, “destinadamente” sós, todavia com forte propensão a nos encontrarmos verdadeiramente nessa solidão que somos.
E, então, depois de muito ponderar, assim decidiu o eminente julgador, após anos de profundo estudo de si mesmo: de acordo com a autoridade a mim concedida; e considerando que a verdade somente terá tal status se pronunciada por quem tem a competência de dizê-la; e, ademais, levando-se em conta que na doutrina e Jurisprudência só se encontram lacunas, ou pressupostos insuficientes para utilização da analogia; por equidade, determino o arquivamento definitivo dos autos por concluir pela a absoluta impossibilidade do pedido autoral. Registre-se. Publique-se.
Hoje, o auspicioso julgador ocupa uma vaga na mais alta corte de justiça do país, em compensação a inexcedível contribuição dada por ele ao desenvolvimento da Ciência Jurídica. E nos últimos quarenta anos nunca teve uma sentença reformada. Contudo, embora não se tenha decidido nunca pelo reconhecimento do direito ao esquecimento postulado por quem cometeu algum delito, não tardará a ser esquecido no tempo e na vida.
Adão Lima de Souza
Sobre ratos e homens terceirizados
Quando certa manhã o trabalhador acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto terceirizado, mais para roedor de si mesmo – um metafísico tísico decadentista! – do que para uma romântica barata da literatura.
Acordou em cama de faquir, diga-se, o que indicava também a volta da inflação alimentícia, no que o sujeito refletiu friamente: agora sou um servidor de dois patrões, como na comédia picaresca italiana, sirvo à dupla patronal e recebo salário como meio homem, eis a real da matemática financeira da modernidade trabalhista.
“Getúlio, Brizola, Lulaaa!”, ele gritou, em um pesadelo sebastianista recorrente. “Acorda, amor”, seu benzinho o confortou com um terno, e sem tesão algum, beijo na testa. Programa Tesão Zero, fome idem, longo casamento… A gente vai levando, a gente vai levando…
“Seu terceirizado”, ele disse para si mesmo ao espelho do box do banheiro donde não havia sequer mais sombra de Narciso. “Seu terceirizado”, ele ouviu da sua própria mulher, que não havia dito nada, mas sabe aquela hora fragilizada que a gente escuta coisas da parede? “Terceirizado”, gritou o vizinho. “Terceirizado”, mexeram com ele na sinuca da esquina. O trabalho dignifica o homem, ele puxou essa do volume morto do cocoruto. A gente vai levando essa joça, viver é roça, ele se encorajou apesar de tudo e gastou o Bilhete Único como se fosse um luxo. O direito de ir e vir do nada para lugar nenhum. “O trabalho precário danifica o homem”, ele pensou direito, na volta para casa, mirando a rede que balançava sozinha na varanda nada-gourmet seu corpo de outrora, carteira assinada, rubrica decente, fundo de garantia, essas regalias que foram para as cucuias. “Que merda”, ele disse já pedindo desculpas à filhinha que não tinha nada a ver com seu infortúnio. Não tinha nada a ver, vírgula, o pai mirava a filhinha sob vergonha da sua trajetória, paranoia é paranoia, nada explica um surto psíquico de um terceirizado.
Onde ele passava, ouvia a ofensa. “Terceirizado”. “Melhor ser chamado de corno ou brocha”, ele sorria, elipsezinha no mar de verdades absolutas. Ele ia se conformando. O mundo de hoje em dia, dane-se. O café-com-pão-bolacha-não do trem suburbano era Bach para sua cabeça doida. Tentava. A gente vai levando…
“Se brincar vou na passeata de domingo acorrentado e puxado pelos meus dois patrões para gritar contra a corrupção”, meditou nosso amigo. Se brincar, refletiu mais adiante, eu colo no teflon da revolta dos que me lascam e bato panelas contra mim mesmo. “Não tenho mais nada a meu favor, só me resta o eco da desgraça”. Falou e disse.
É meu amigo, não se preocupem, bebi com ele até agora, estou próximo, não terceirizo amizade.
Xico Sá, jornalista e escritor, é autor de Big Jato (Ed. Companhia das Letras), entre outros dez livros. Na televisão, dá os seus pitacos nos programas Redação Sportv e Extra-Ordinários.
O estalo de Sarney
Título banal associado a um autor que não prima pela ousadia, passou batido em meio ao rescaldo do pleito mais acirrado desde o fim da ditadura. Nunca antes neste país a trégua pós-eleitoral foi tão curta, o day after tão imediato.
A trepidação do ambiente não diminui, só reforça a importância do texto do senador José Sarney (PMDB-AP) publicado na Folha de S.Paulo na última quarta, 29 de outubro. Pelo que está explicitado -com rara contundência- e pelo que está implícito. A raposa que se aposenta, não perdeu a manha nem a raposice.
Começou apocalíptico alertando para debacles iminentes, inseriu algumas doses de sincero arrependimento, o que deu à sua jeremiada uma entoação transcendental. O cacique batido fragorosamente nos seus domínios depois de meio século de tutela absoluta também ofereceu à presidente reeleita o maior percentual de eleitores do país. Com isso o seu mea-culpa tem algo de audácia. “A democracia não se aprofundou depois da redemocratização” afirmou o primeiro civil a exercer a presidência depois do regime militar. Pedro Simon não o diria com tanta veemência.
Desacostumado a colocar a boca no trombone desde os tempos aguerridos da “banda de música” da UDN, agora fuzila o “corporativismo anárquico que foi beneficiando ilhas de interesses gerando a divisão que aflorou nestas eleições”. Chefe do Poder Legislativo em três períodos ao longo de nove anos, reconhece agora que “o parlamento desmoralizou-se, instituiu práticas condenáveis, perdeu legitimidade” por isso propõe barrar “este arquipélago de partidos sem democracia interna, cartórios de registro de candidatos para negociações materiais”. Não satisfeito, constata que a compulsão de expandir poderes torna o país ingovernável”. O sistema apodreceu graças à “promiscuidade entre cargos, empresas e setores da administração…o controle das estatais é urgente.” Rejeita a reeleição e nega a ex-presidentes o direito a exercer cargos públicos (aqui bateu mais forte no peito).
Então o grand finale: “É hora de pensarmos no parlamentarismo e marchar em sua direção. Não dá mais para protelar. A presidente Dilma Rouseff marcará a história do Brasil se fizer essa transformação…o país avançou no social mas a política regrediu.”
O que teria levado o cauteloso Sarney a assumir o seu DNA de udenista? Que elixir ingeriu, qual inseto o picou, que pesadelo teria sonhado na véspera para constatar que o país está à beira da desintegração e propor à presidente reeleita desafio tão surpreendente?
Sarney é do PMDB. Melhor dizer: Sarney é o PMDB, partido criado pela ditadura (ainda sem o “P” inicial) para representar a oposição. Durante duas décadas como figura de proa da Arena chapa-branca, engoliu sapos e escrúpulos. No ano final da ditadura, passou-se para o PDS, depois para o PMDB e magnetizado pela figura de Tancredo Neves, vinte anos mais velho e toneladas mais sábio, compôs a chapa que derrotou Paulo Maluf e a ditadura militar. Convém lembrar que Tancredo foi o primeiro primeiro-ministro do brevíssimo parlamentarismo que adiou o golpe militar de 1961 para 1964. Não deu certo porque o novo sistema desagradava intensamente àqueles que se preparavam para as eleições de 1965 – isto é, todos.
Sarney envergou a faixa presidencial graças à fatalidade que tirou a vida de Tancredo e, desde então, não poderia alhear-se aos caprichos do destino. Em 2002, quando a vitória de Lula parecia garantida, declarou (com alguma graça) que se o PT estava fadado a chegar ao poder que fosse logo. Não por acaso, foi este mesmo PMDB o responsável por infligir a primeira derrota ao recém-vitorioso governo.
Ao tomar emprestado de Carlos Drummond de Andrade os presságios sobre o “tempo de homens partidos”, véspera de impasses e rupturas, o mais antigo parlamentar brasileiro, aos 84 anos, agora restrito aos saberes adquiridos na longa convivência com os fados, teve um estalo. O mesmo que teria ouvido o menino de oito, Antonio Vieira, antes de tornar-se estadista, profeta e imperador da língua portuguesa.
Alberto Dines é colunista do jornal EL País.
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/01/opinion/1414852141_510368.html
Hora do luto, não de luta
A proposição foi do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) na noite do fatídico 13 de agosto ao fim do depoimento ao jornalista Alexandre Garcia (Globo News): “Momento de perplexidade. Talvez seja o momento do luto, mais do que o momento de luta”. Entrevistado e entrevistador igualmente tocados no anfiteatro midiático, onde tragédias são geralmente compactadas e raramente desenroladas em toda a sua extensão.
O senador pernambucano, engenheiro e economista, não se deixou limitar pela rígida segmentação contemporânea onde ciências exatas e humanidades colocam-se obrigatoriamente como antípodas. Seu empenho na causa da educação é prova disso, seu abatimento pela morte de candidato Eduardo Campos, o jovem estadista conterrâneo, é indício de que a sensibilidade não é patrimônio exclusivo de artistas e poetas.
Hora de luto não significa que a hora é das carpideiras e rituais fúnebres. Luto não é apenas o vestido negro, o crepe preto na manga, na lapela ou os espelhos encobertos, luto é abrir-se ao sentimento de perda, entregar-se à consternação, acabrunhar-se. Com ou sem lágrimas.
Alguém nos impôs maliciosamente o estigma de festeiros e o aceitamos prazerosamente. Com uma dose maior de temperança ficaríamos menos vulneráveis às euforias. Escapulimos obsessivamente da dor como se fosse nociva, letal, contagiosa, sem perceber que através dela conseguimos discernir o outro, a alteridade, a solidariedade, o alívio e a esperança.
A compulsiva fuga à dor, não se dá unicamente neste nosso rincão exuberante, mas em todos os quadrantes de um mundo empurrado para altas velocidades, obcecado por ponteiros de relógios, velocímetros e, principalmente, medidores de escala, volume, quantidades. Insones ou sonâmbulos, drogados ou excitados, aderimos ao espetáculo. Sem questionamentos.
Na terça-feira lamentava-se a morte do ator norte-americano Robin Williams, o poeta-quixote, ícone de mestres e alunos; na quarta, fustigados por repentina e gélida rajada de vento, flagramos sem cliques nem câmeras, a olho nu, a Parca em plena faina de ceifar vidas. Uma delas do jovem príncipe que prometia mudar o país.
Os fados são inconstantes, fugazes, abominam rígidos scripts, preferem improvisar. Hora do luto: o frêmito que no ano passado percorreu as ruas e armou uma fascinante disputa tripartite perdeu um dos protagonistas. Gerará outro (certamente outra), mas a perda não pode ser desperdiçada ou desaproveitada.
O sentimento trágico da existência não enfraquece o ânimo, ao contrário, aumenta a resistência, reforça a resiliência. Imperioso importar-se, perceber a fragilidade dos desígnios, a precariedade das vontades, o ar ressequido, o mar encrespado, o efêmero da felicidade e as dores de mundo para as quais ainda não se inventaram analgésicos.
Do luto interior, do encontro com a dor do outro, o momento seguinte virá forçosamente depurado, engrandecido. Depois do luto verdadeiro, a luta virá nobilitada.
Alberto Dines, colunista do EL País.
Sobre mordidas e legados
Em matéria de repercussão, sem dúvida, é a Copa das Copas. Obama, o cestinha, acendeu a luz verde ao posar para fotos a bordo do Air Force One assistindo ao embate da sua seleção com a Alemanha e a porta-voz do Departamento de Estado compareceu ao briefing matinal com a imprensa com o agasalho da seleção ianque.
Também no âmbito da geopolítica o resultado é superlativo: despachados de volta três gigantes (Inglaterra, Itália e Espanha), a Europa futebolística assemelha-se à Europa política, amarrada a velhos vícios, desfibrada. A esta altura do campeonato, Américas e África consolidam-se como as grandes reservas para o futebol do futuro. O que não impedirá que o Velho Mundo através da Alemanha, Holanda e França ainda venham a empalmar a Jules Rimet na final da 20a edição do Mundial de Futebol.
A globalização está ganhando de goleada: a dentada de Luis Suárez no italiano Chielini tornou-se, a partir da última terça, a peça central das preocupações humanas só perdendo neste segmento para uma abocanhada mais desastrosa e celebrada – a de Eva mordiscando a maçã proibida e experimentado as delícias do pecado. Ambas mudaram o mundo, trouxeram inapelavelmente a questão do crime e castigo para a realidade de bilhões de anjos e vilões.
O mago Lula da Silva estava certo quando apostou todas as fichas no pleito do Brasil para sediar a Copa de 2014. Já o estadista que atende pelo mesmo nome, elegeu um poste, porém não cuidou para que ficasse firme e ligado à rede. Coisas da política.
O pressentido caos ainda não se materializou e certamente não se materializará, mas o preço pode ser alto: o país foi obrigado a parar. Sem sistemas de transporte de massa nas cidades-sede a opção ao caos foram férias remuneradas. São Paulo, a imparável, parou nos últimos seis dias (desde o confronto com os camaronenses), concentrada diante de altares de tela plana, em botecos ou churrascarias.
Turistas e jornalistas estrangeiros que não conheciam o país admiram-se: estavam preparados para uma bagunça, esperavam o auê, baixaram expectativas e exigências, parecem felizes. No inverno ameno, um povo festeiro, contenta-se em contagiar os visitantes e faturar alguns trocados. Sua magia é tornar tudo distante: apesar do céu azul, daqui não se enxerga a Ucrânia, nem o Iraque, sequer a vizinha Argentina.
A sensação do “day after” já se manifesta em Cuiabá, Natal, Curitiba e Manaus, enquanto suas arenas ainda com cheiro de tinta fresca começam a metamorfosear-se em elefantes brancos e o adjetivo faraônico começa a ser entendido.
Ainda em andamento, sem campeão à vista e muitas surpresas pela frente, a Copa das Copas já entrou para a história com um acervo de lições imperecíveis. Submetidos às aflições de prazos rígidos e padrões impecáveis, saímos pela tangente oferecendo ao mundo a idéia da precariedade feliz, da transitoriedade permanente, do relaxar e gozar, do vai levando e deixa rolar.
Intraduzíveis, estas sensações logo estarão sendo clonadas e o mundo, sem o perceber, se sentirá mais feliz. Nossos craques não mordem, em compensação as autoridades não estão nem ai para os legados.
Alberto Dines é colunista do EL País.
SOBRAM ADVOGADOS, FALTAM DEFENSORES
A Suprema Corte da Flórida recebeu denúncia da baixa qualidade da representação dos defensores públicos nos julgamentos. Isso provocou providências por parte da Defensoria Pública do Condado de Miami-Dade que ingressou com ação judicial, em 2008, alegando a carga excessiva de trabalho, consistente no total de até 50 demandas por semana.
A ação judicial iniciada só teve seu desfecho final no corrente ano, quando a Corte Superior da Flórida aceitou as argumentações da Defensoria para fixar para cada profissional da área o direito de recusar o patrocínio de mais de três causas por semana, caracterizando daí em diante carga excessiva de trabalho, e, portanto, sem condições de estudo cuidadoso para boa atuação profissional.
Os Estados Unidos possuem um defensor para cada 253 habitantes.
No Brasil, a Constituição federal considera essenciais à administração da justiça: o juiz, o defensor público, o promotor e o advogado. Segundo dados da OAB o Brasil conta com mais de 750 mil advogados inscritos e ativos e igual número de bacharéis não inscritos; porano, ingressam no mercado 100 mil bacharéis, dos quais 30 mil obtém a inscrição e tornam-se advogados.
O corpo humano precisa do coração, porque essencial à vida; o carro necessita do motor, porque indispensável para sua mobilidade. Da mesma forma, o Judiciário reclama, porque essencial, a presença do defensor público; se o sistema não dispõe desse profissional, da mesma forma que o homem e o carro, não há como movimentar-se. Sabe-se, entretanto, que a Justiça não conta com o defensor público, na maioria das comarcas; mas o pior é que não conta também com o promotor e, às vezes, falta até o juiz e o servidor. Não para porque os juízes e servidores se desdobram e conseguem até o auxílio das Prefeituras que disponibilizam seus funcionários.
Como funcionar bem! Afinal, o que a Constituição considerar essencial!
Os governantes não obedecem à lei maior que exige a Defensoria Pública como instituição “essencial à função jurisdicional”, art. 134.
Da mesma forma que complicam o Judiciário com a divisão de justiça federal e justiça estadual, criaram também a Defensoria Pública no âmbito da União e a Defensoria dos Estados; a primeira atua na defesa do cidadão que não tem recursos para custear o processo na Justiça Federal contra violações ao direito praticadas pela própria União e por seus órgãos, a exemplo do INSS e da Caixa Econômica Federal. Nos Estados e municípios, a Defensoria Pública patrocina causas do necessitado no campo penal e cível.
Sabendo-se que o Brasil é o terceiro país no mundo, em quantidade de profissionais da advocacia, fica difícil entender a motivação pela qual faltam defensores públicos nas comarcas. O raciocínio lógico é o de que há visível desinteresse dos governantes na solução da assistência jurídica para o pobre.
Os tribunais superiores do Brasil nunca receberam questionamento semelhante àquele decidido pela Corte da Flórida, porque se houver demanda nesse sentido, o povo ficará totalmente desassistido juridicamente.
A situação de carência da Defensoria Pública não se situa somente no campo estadual; também na área federal o drama é muito grande, pois segundo relatório de março de 2014 em todo o Brasil tem-se apenas 506 defensores, quando são necessários 1.469.
Nos Estados, Santa Catarina, que criou esse importante órgão somente em 2012, a RBS TV noticiou, recentemente, que somente no primeiro trimestre do corrente ano de 2014, um defensor participou de 103 audiências, recebeu 264 mandados de prisão em flagrante e analisou 488 processos; uma defensora informou que é comum fazer dois, três júris pro semana. Das 111 comarcas de Santa Catarina, apenas 21 tem defensores públicos.
O Paraná também criou sua Defensoria Pública em 2012 e, antes dessa data, dispunha de apenas 10 defensores, ou seja, um profissional para 1.043.960 cidadãos; São Paulo com toda a sua pujança dispõe de um defensor para cada grupo de 82.504 habitantes, apesar da necessidade, pois somente entre janeiro e meados de abril/2014, trinta e seis (36) mil pessoas procuraram a Defensoria Pública; dividido esse número por 73 dias úteis no período encontramos 493 atendimentos por dia.
O Estado que conta com melhor assistência aos necessitados é o pobre Amapá com um defensor público para cada 6.078 cidadãos. Todavia, para isso, são contratados advogados, a título precário; o concurso só foi aberto depois de medida judicial. Roraima é outro Estado que atende ao jurisdicionado necessitado, porque dispõe de defensor público em todas as comarcas. Também o Distrito Federal tem defensor público em todas as circunscrições judiciárias, contando com um profissional para cada grupo de 12.262 jurisdicionados, apesar de pagar muito mau, em torno de um terço do salário do promotor público.
Essas são as unidades que melhor presta o serviço de Defensoria Pública para os cidadãos que pagam altos impostos e não recebem a contrapartida do Estado.
Induvidosamente, há um desencontro de entendimentos, pois enquanto a OAB alega excesso de advogados, ao ponto de exigir a manutenção do exame para habilitar à advocacia, o povo não tem assistência jurídica por falta de profissional.
Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição n. 4/2014 que fixa o prazo de oito anos para que a União, os Estados e o Distrito Federal contratem defensores públicos para todas as comarcas. Depois de aprovada e sancionada espera-se valorização da Defensoria Pública e aproveitamento do grande número de advogados como defensores dos que não tem como custear as despesas de uma demanda judicial.
Por:Antonio Pessoa Cardoso, desembargador aposentado do TJ/BA Publicado em:http://paralelanews.com.br/colunistas