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Victor Hugo: advogado dos miseráveis

HugoEL PAÍS – Victor Hugo nasceu em 26 fevereiro de 1802 na cidade de Besançon (França). Poeta, dramaturgo e romancista francês, é considerado um dos autores mais importantes da língua francesa e também um político e intelectual muito comprometido e influente na história de seu país e da literatura do século XIX.

Victor Hugo, por causa da profissão militar de seu pai, viveu em várias cidades francesas em sua infância, como Elba, Marselha e Nápoles. Quando seu pai acompanhou o novo rei José I (o famoso Pepe Botella – Pepe Garrafa, no apelido depreciativo), irmão de Napoleão Bonaparte, até a Espanha, o jovem Victor Hugo chegou a Madri, onde morou por dois anos.

A partir de 1815, Victor Hugo se estabelece em Paris, estudando com o objetivo principal de se dedicar à literatura. Foi um excelente estudante, a tal ponto que aos 15 anos ganhou um prêmio da Academia Francesa por um trabalho lírico, prelúdio de seu primeiro grande livro de poemas de 1822, Odes e Poesias Diversas. No mesmo ano casou-se com Adele Foucher, com quem teve cinco filhos. Fundou com Eugène e seus outros irmãos, também escritores, a revista Le Conservateur Litteraire, onde publicou o romance Bug-Jargal.

Sua quase infinita capacidade produtiva proporcionou grandes obras da literatura universal, com títulos como Cromwell (1827), Nossa Senhora de Paris (também conhecido como O Corcunda de Notre Dame) (1831) ou O Rei se Diverte (1832).

No entanto, sua obra não esteve isenta de polêmica pela ação da censura que, por exemplo, proibiu sua triunfal peça teatral Marion de Lorme em 1829, embora tenha conseguido no ano seguinte um sucesso retumbante com o drama Hernani (1830), que triunfou na Comédie Française.

Logo foi considerado o líder das fileiras do Romantismo pelo virtuosismo que revelou em As Orientais (1829), que deslumbrou seus contemporâneos pelo exotismo oriental.

Em 1841 Victor Hugo entrou na Academia Francesa, mas, desanimado com o fracasso retumbante de Os Burgraves abandonou o teatro em 1843. Sem dúvida, a morte por afogamento de sua filha Léopoldine no Sena, que ocorreu enquanto ele estava viajando, juntamente com a morte de um de seus irmãos e a decepção pela traição de sua esposa com um amigo contribuíram para mergulhá-lo em uma profunda crise. Encontrou estabilidade algum tempo depois com a atriz Juliette Drouet, com quem permaneceu até sua morte.

Entregue a uma atividade política cada vez mais intensa, Victor Hugo foi nomeado par da França em 1845 pelo rei Luís Felipe de Orleans. Apesar de se apresentar nas eleições de 1848 em apoio à candidatura de Luís Napoleão Bonaparte, seus discursos sobre a pobreza, os assuntos de Roma e a lei Falloux anteciparam sua ruptura com o Partido Conservador.

Victor Hugo intervém na Assembleia Constituinte com seu Discurso sobre a miséria, dentro do debate parlamentar sobre a lei de pensões e assistência pública no qual denuncia a situação desesperada da população e culpa a Assembleia por não apresentar soluções.

Em julho de 1851, denunciou as ambições ditatoriais de Luís Napoleão e, após o golpe, fugiu para a Bélgica. Não publicou nenhuma obra entre 1843 e 1851, mas concebeu seu romance Os Miseráveis e escreveu numerosos poemas que apareceram mais tarde.

Em 1852 estabeleceu-se com sua família em Jersey (Reino Unido). Ali permaneceu até 1870, rejeitando a anistia oferecida por Napoleão III. Deste exílio de vinte anos nasceram Os Castigos, série brilhante de poemas satíricos, a trilogia de Fim de Satã, Deus e A Lenda dos Séculos, exemplo de poesia filosófica, na qual traça o caminho da humanidade até a verdade e o bem desde a época bíblica até seu tempo, e seu romance Os Miseráveis, denunciando a situação das classes mais humildes.

De volta a Paris, após a queda de Napoleão III (1870), Victor Hugo foi aclamado publicamente e eleito deputado, mas acabou derrotado na eleição seguinte, embora tenha vencido em 1876 como senador de Paris, cargo que usou para defender a anistia aos partidários da Comuna. No entanto, desiludido com a política, retornou ao Reino Unido dois anos depois.

À medida que o ritmo de sua produção diminuía, aumentava seu prestígio. Por exemplo, um banquete comemorou o quinquagésimo aniversário de sua obra Hernani; em 1881 seu aniversário foi comemorado oficialmente e os senadores, na tribuna, ficaram de pé, sem exceção, em sua honra.

Na verdade, inúmeras óperas se inspiraram nas obras de Victor Hugo; centenas de poemas foram musicados e foram produzidos musicais e adaptações cinematográficas baseados em seus livros.

Victor Hugo morreu em Paris em 22 de maio de 1885 com 83 anos, com pleno domínio de suas faculdades. Suas opiniões, ao mesmo tempo morais e políticas, e sua obra excepcional, fizeram dele um personagem emblemático que a Terceira República homenageou com um funeral de Estado, realizado em 1º de junho e que foi acompanhado por mais de dois milhões de pessoas, e com o enterro de seus restos mortais no Panteão de Paris.

HOMEM COMUM

Ferreira-GullarSou um homem comum

de carne e de memória

de osso e esquecimento.

e a vida sopra dentro de mim

pânica

feito a chama de um maçarico

e pode

subitamente

cessar.

Sou como você

feito de coisas lembradas

e esquecidas

rostos e

mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia

em Pastos-Bons

defuntas alegrias flores passarinhos

facho de tarde luminosa

nomes que já nem sei

bandejas bandeiras bananeiras

tudo

misturado

essa lenha perfumada

que se acende

e me faz caminhar

Sou um homem comum

brasileiro, maior, casado, reservista,

e não vejo na vida, amigo,

nenhum sentido, senão

lutarmos juntos por um mundo melhor.

Poeta fui de rápido destino.

Mas a poesia é rara e não comove

nem move o pau-de-arara.

Quero, por isso, falar com você,

de homem para homem,

apoiar-me em você

oferecer-lhe o meu braço

que o tempo é pouco

e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco

e aí estão o Chase Bank,

a IT & T, a Bond and Share,

a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,

e sabe-se lá quantos outros

braços do polvo a nos sugar a vida

e a bolsa

Homem comum, igual

a você,

cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.

A sombra do latifúndio

mancha a paisagem

turva as águas do mar

e a infância nos volta

à boca, amarga,

suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens

comuns

e podemos formar uma muralha

com nossos corpos de sonho e margaridas.

Ferreira Gullar – (Brasília, 1963)

Um homem

Breno“A hora de partir soou para mim.” (Mallarmé, Stéphane. ‘Ele deixa a câmara e se perde nas escadas’)

A casa semidespovoada. Uma rede, geladeira pequena, escrivaninha e cadeira. Alguns livros espalhados pelo piso. O grande silêncio de quem divide a própria solidão consigo. Não há espelho. Há muito não vê o próprio rosto. Tateia os traços faciais no afã de reconhecer o rapaz de tempos outros, longínquos.

*

Como nasce um personagem? De que ventre, com qual ato de amor ou rompante? Decerto, não surge duma caneta, folha esbranquiçada, ociosidade. Todo personagem é táctil, carrega as dores cotidianas, tem sangue. Grita, ama, desama, mata, morre. De onde brota esse desdobramento? De um desejo sufocado, duma inaptidão? Dizemos “tal personagem sofre”, porque já não podemos desencobrir nossa ferida? E, no entanto, não é de todo desconhecido, uma vez parido, ganha vida própria, reclama livre-arbítrio. Apontamos dado caminho; ele, ao revés, desdenha do alvitre, segue por outra vereda, abisma-se por entre ruas desconhecidas. Que é um personagem?

Algumas tribos australianas têm grande cuidado com o nome. Se tal for semelhante a uma palavra e o seu dono morrer, ela acabará supressa, substituída por outra. Necessário, está visto, precaução. Com o designativo particular, afugenta-se o algoz, inscreve-se no músculo bombeante de alguma moça, assina-se a obra interminável. Joaquim, ei-lo.

*

“Um ser humano é um ser humano”, lê, força na voz, caminhando dum lado para o outro do parco espaço. Repete. Torna a repetir: “Um ser humano é um ser humano”.

Todo homem tende a tornar-se misantrópico. Quem não já lamentara a desdita de não ter nascido Raskólnikov? Com que medo aquele senhor refreara a ânsia do rapaz de outrora, que pensava ser Zaratustra? Ir ao pináculo, a cidade estrepitosa deixada para trás, encontrar consigo próprio, poder gritar sem o auxílio da almofada, longe dos homens, nunca mais a palavra…

Por isso, esta casa, esta rede, esta geladeira miúda, estes livros espalhados, a escrivaninha pequena, a cadeira desgastada. Por isso, a casa semidespovoada, o silêncio inarredável… Por isso, Joaquim, a sua solidão, o homem que é homem sem atavios, penduricalhos.

*

O que caracteriza a fuga? Quem foge, foge de quê? Deserta quem parte, não quem fica? A palavra ativa uma óptica. Diz-se e fica sendo – apenas para quem fala. Do outro lado, talvez não haja sequer ouvido atento. Aquele que pronuncia pensa ter mudado o mundo, a ordem das coisas, nomeado algum fragmento do inapreensível. A ele, no entanto, a indiferença de quem já não mais escuta, de quem, também, pode falar e que, por tal, não compreende. Cada vocábulo é uma sentença – para a boca que o enuncia. Para o destinatário, confusão, excrescência lançada num desvão.

Joaquim repassa, na memória, os muitos sons emitidos em sua direção. Enquanto caminha, vozes resolutas intentam mostrá-lo o disparate de seus passos, a impertinência duma cabeça repleta de quimera. “Pudera, essa ociosidade acabaria em tolice!”, diziam os que lhe queriam bem. “Largar tudo, sequer um olho a esguelar-se para trás… loucura, ingratidão.”

Os que nos querem bem não nos querem bem. No velório central, assassinos choram a morte de assassínios seus. As mãos sempre ao peito, a cabeça baixa, a fala mansa, sempre solícita. Os que nos querem bem nos matam com a vida imposta, o beco sem saída. Joaquim, desgastado pela ladainha diurnal, não desconhece. Os mortos, estes que vivem, não descansam. Querem levar-nos aos seus túmulos, servir-nos chá, falar do tempo, dos gols da rodada. Os mortos teimam, estão nem aí para as flores dos vivos. Buscam desalumiar a cidade por completo, as praças, o fulgor das esquinas. Os mortos não morrem.

*

Apenas Adélia era afago. Ela, unicamente, a possibilidade do inimaginável. As conversas de fim de tarde, as mãos de Joaquim nas coxas de Adélia, os beijos chamejantes, as pausas para o suspiro. Ais.

Mas Adélia partira. Também ela persuadida a viver a vida protocolar, exangue, a caminhar por entre as mesmas ruas de sempre – a previsibilidade dos dias. Adélia tinha preço, vendera-se barato. Joaquim decepcionado, sua fagulha única tornada em nada, a silhueta que se desfazia – pariforme.

Com que punhado de dor pode um homem aprender a ver, a tornar a si? Quem foge, Joaquim? Tu ou os teus, com as suas cartilhas de vida?

Estamos sempre sós. Duchamp desentende-se com os cubistas, segue sozinho, engendra noiva despida por celibatários. Na parede, Joaquim observa a reprodução da obra, a confusão dos traços. Tem de ser só, compreende, contar apenas consigo próprio.

Lembra o café – fervendo.

*

Falta-lhe vocação para santidade. Não quer ver do alto, como quem se apercebe acima de todo o resto. Sabe-se parte do monturo, conhece as flores desabrochadas na planície.

Tampouco olvida a lição freudiana, não representa o tal eremita. A realidade, esta combinação de falas e percepções, não é sua inimiga, o lugar de onde promana todo o seu sofrimento. Não. Se rompera com alguns laços, nada houvera com o que chamamos realidade. Agora mesmo, essa criança que, sentada ao chão, come restos de comida, achados no lixo, é-lhe táctil, sensível. Teus três recursos para amainar o peso da vida, Freud, de nada servem a Joaquim.

Não o envolve a ciranda da felicidade. Pelas calçadas, a correria de quem quer ser feliz – e paga por isso. Acordam cedo, o beijo no filho deixado na escola, pontual no trabalho. Só bem tarde regressar ao lar, reencontrar a criança, beijá-la novamente e perguntar pela tarefa do dia. Aos sábados e domingos, a felicidade, o riso de quem se sente em dia com a vida.

*

A cidade é dual: desencontro e colisão.

Cartazes na parede informam a Joaquim sobre a sucessão dos dias, fazem-lhe participar do entusiasmo dos citadinos despersonalizados. Espetáculo de teatro, Companhia Andante. Show da banda Rockstar. Aprenda a cozinhar com a sra. Rosa. Aprenda inglês em poucos meses. Madame tudo vê traz seu amor de volta – com vida. Culto de jovens às 18h30min. Dentre todos, um arranca-lhe riso excessivo: Vença você também: novas turmas em maio.

Observa. Na praça em frente ao fórum, senta num banco envolto por uma quaresmeira. Lindas mulheres para lá e para cá, seus saltos altos, os cabelos serpenteados, seus perfumes adocicados.

Entre um e outro passante, a azáfama. Os pedestres imitando os carros, rivalizando com eles. Joaquim repara num grupo de senhores. Todos engravatados, pastas na mão, com algum ar de satisfação – incompreensiva. Diverte-se. Imagine, fosse aderir ao desejo dos familiares e amigos, bem poderia estar ali, em meio aqueles senhores. Também envaidecido, o peito a inflar-se? Tenta imaginar a vida daqueles senhores, os seus diálogos. As lições de linguística na mente, acredita: “Para eles, ainda o lado ingênuo da tradição gramatical do ocidente, ainda a tolice de crer numa relação de essência, a palavra cadeira desde sempre identificada no objeto para assento”.

Ao seu lado, senta uma colegial. Cabelos negros, olhos esverdeados, face lívida. Retira da bolsa um livro e um estojo de óculos. Joaquim, de soslaio, tenta alcançar o título gravado na brochura. Os conjurados, Jorge Luis Borges.

– Dê-me licença, quantos anos tem a senhorita?

Tinha 17, último ano de escola. Joaquim lembrou da leitura de Kundera: cá, a percentagem de inesperado.

– O nosso triste costume de ser alguém…

A mocinha sorriu, timidamente. Era do próprio Borges, quarto poema do livro. Tríade.

– Também hoje é dia do patíbulo, da coragem e do machado.

Despede-se.

Breno S. Amorim

Para quem representamos?

”Minha existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples aparência?” (Sartre, Jean-Paul. A Náusea)

BrenoA invariação dos dias. Constância. Todos buscam despertar tal qual antes. A mesma certeza. A segurança dos frutos colhidos. O imutável da ordem frasal. Que ninguém ouse revirar as palavras lançadas! As manhãs estertoram ante o traço redesenhado. Todos felizes. Invariavelmente felizes. Não mais o passo incalculado, a surpresa da rua seguinte. Percorrem caminhos de ontem.

Dores sufocadas.
Grunhidos.

Gritos inaudíveis. Necessário manter o emprego, o ponto a bater. Pois que inconteste as necessidades cotidianas. Perenais. Pela manhã, o pão. O bom dia ao padeiro. A troça invariável. Horário de almoço. O adeus curto aos colegas de repartição. Dormir cedo. Contar as horas de sono. Recomendável oito, sempre oito. Aos sábados, lavar o carro. Ainda assim, o vangloriar-se. Gabar o compromisso diurnal, hebdomadário. Cumpridor. Prudente.

Despertador infalível. Acordar adormecido. Ao lado, a mulher. Mesma posição. O ‘te amo’ irrevogável. Maquinal. Inexiste a dúvida. Irresolução alguma. Qualquer. Sequer um tropeço. Pedra sobre pedra. As conhecidas irregularidades do solo. Jamais o conserto. Alteraria a disposição dos dias. Perturbaria. Cada qual com a ciência dos movimentos cotidianos. Alterados, o choque. A dor. Que não se acenda ferida! Tanto melhor o lenitivo.

A fuga de si, do outro. Subterfúgio.

Vez ou outra, a comunhão. O cálculo ante o outro. Loquazes, a palavra salvaguarda. Intactos. A fala direta feriria. Dor, não. A publicidade anuncia um mundo sem aflição. Seguros, em doze vezes – prorrogáveis. Passam ônibus – fantasmagóricos. O itinerário infranqueável. A corda a puxar. Mesmo ponto. O abrigo com função social. Onde racionalizar. Tornar a dúvida vã. Retornar ao estado anterior. Dificílimo abandonar a lareira, a família, a espessura do móvel, os sacros valores. A continuação dum malogro.

Para quem representamos?

Breno S. Amorim

Sobre que alicerce ergues a tua casa?

”(…) Até sermos acordados por vozes humanas. E nos
[afogarmos.” 
(Eliot, T. S. ‘A canção de amor de J. Alfred Prufrock’ )

BrenoNo espaço luminoso da biblioteca, Cecília reorganiza os livros na estante. Quase fim de expediente. Raios cróceos invadem a sala e pousam sobre as estantes. Na seção de artes, devolve o livro sobre Duchamp. Em seus dedos, a sujidade das brochuras. A poeira do tempo.

Cotidiano. Cecília é erguida, às seis horas, pelo peso do hábito. Peso entorpecedor. Susto matinal, o despertador que toca. A alvura do teto – o mesmo de todos os dias. Banheiro. Cozinha. Chave. Porta. Um aceno para o silêncio da casa despovoada. Tráfego. Semáforos. Buzina. A estridência dos dias. Ao menos um lenitivo, o som do carro a tocar. Sempre o mesmo itinerário, as árvores invariáveis, os berros diurnais dos citadinos. A preocupação com o ponto a bater, hora certa, infranqueável.

Não a confrange, porém, o trabalho. Lá, onde o hábito perde a força. Desde criança, Cecília se deleita em meio aos livros. Cercar-se deles, por tal, representa pleno regozijo. Decepcionara a família, os seus planos grandiloquentes, seus projetos estatuídos sem a participação da própria incumbida. Contrafeitos, os familiares julgavam-na cruel, pois se já houvera aviso renitente: serás grande, doutora. Bibliotecaria, ora, que disparate!

A luminosidade nunca lhe chega cedo. Necessário enfrentar o desabrochar do dia, a sua repetição. De sorte que o dia sempre se inicia ante a escrivaninha, o movimento dos frequentadores, o arrastar de cadeiras. O seu paraíso – onde as pessoas sabem da possibilidade do sussurro, onde predomina o silêncio sem a necessidade do despovoamento. Os jogos de olhares, as intenções demonstradas sem ruído, os sorrisos que contêm grandes narrativas.

Dentre as inúmeras pessoas que vão até o seu balcão, sempre há as que, de algum modo, encontram espaço nas paredes de sua memória. Não precisa muito. Um mão que lhe dirija a carteirinha e um livro cuja admiração lhe é incontestável – apenas. Assim, conhecera Arthur. Passos comedidos, cabeça descaída, entregara à Cecília uma brochura pesada. Largo sorriso, o dela. Cinéfila, com que euforia não recebera Hitchcock/Truffaut: entrevistas! A fila a esperar, enquanto Cecília e Arthur falavam a propósito de cinema, da Nouvelle Vague, do Cinema Novo, de Glauber Rocha. Um dia inaugural, menos para Arthur do que para a bibliotecária. E, no entanto, ei-lo a prometer o retorno, a conversa posterior à leitura.

Retornara. Não poucas vezes. Cecília ainda mais aficionada pelo trabalho. As reminiscências eram suficientes para clarejar o dia, logo cedo. Mesmo o despertador não alcançava o susto de outrora. Da alvura do teto, fizera céu desanuviado, pintara sol com lápis de cor imaginativo. O amor. Evitava racionalizar. Conjecturar sobre essas questões do peito queria parecer-lhe bruteza, estupidez. Entregue, o alarde das buzinas chegava aos seus ouvidos como música – Bach, quem sabe?

Tudo é pretexto, Arthur recordava o que dissera seu amigo. Buscava coragem para ir ter com Cecília. Os livros já não se lhe apresentavam como desculpa suficiente. Impossível ler um livro por dia. Tanto mais impraticável apagar, de sua memória, o desenho do rosto de Cecília, a silhueta de seu corpo. Caminhava pela avenida principal da cidade. Pelas calçadas, mendigos desdiziam as mentiras espalhadas pelos outdoors, pelas falas do prefeito. Os discursos cândidos não lhes enchiam a barriga. Distraidamente, Arthur lançara uma moeda. Também ele queria esconder o próprio monturo? Um ato abstraído e um contentamento ao peito? Arthur, o arquétipo de citadino.

Como clarão que irrompe inesperadamente, enxergou, na parede, um cartaz divulgando a exibição de clássicos do cinema francês. Olhou para o céu, descrente, e agradeceu. O pretexto.

Tem pressa. Ultrapassa os passantes, esbarra em barracas. Segue. Pretexta:

– Cecília, um convite… – diz, ofegante.

– Boa tarde! – ri um riso gostoso.

– Vi, há pouco, que exibirão Jules et Jim. Será num tal cinema alternativo, até então desconhecido.

– Truffaut? – e ri novamente. Já assisti.

– Sim, supunha. Mas sempre é bom retornar aos clássicos. Para os cinéfilos, então…

– Tudo bem! – o riso ainda na boca.

Foram. Conquanto assistido pelos dois, o filme se lhes parecera inédito, inexplorado. Neste dia, Cecília dormiu tarde. Arthur lhe deixou em casa. Ao se despedirem, ele não suportou a covardia do abraço que podia não ser. Enlace. Cecília se revirava na cama, o cheiro dele invadindo o quarto. Seis horas. Toca o alarme e ela levanta para continuar o sonho – de olhos abertos.

Biblioteca. Arthur some por três longos dias. Impaciente, Cecília deixa de notar os títulos das brochuras que passam para empréstimo. Vê, unicamente, a cor das capas – neste instante, todas pariformes. Fim de expediente. Agora, a luminosidade faz-lhe lembrar do astigmatismo. Maldize-na. Do rádio, a voz de Ângela castiga: ‘Sua presença destrói todos meus desenganos/ Minha ausência causou-lhe uma série de danos’. Dado o seu queixume, invertia o último verso. Quão longe, aquela casa, guarida de medo e súplicas – contidas.

Arthur aparecera, como tudo que vive. Cecília refrea a objeção, quase a pular da boca. Ora, a expectação é sempre de quem ousa engendrá-la, torná-la táctil. Cecília sabia, pois que silenciara. Os cumprimentos corriqueiros, as mesmas perguntas iniciais e, novamente, um convite. Arthur queria conversar. Havia algo a ser dito.

‘És casado, Arthur? Por que me dizes isto?’ – sufocava a própria dor no peito. ‘Por que seria importante?’, castigava-se ainda uma vez. O sempre comedido Arthur, desconcertara-se. Seu corpo nunca coube em lugar algum. Bancário, protocolar, a vida nunca foi algo que lhe importara deveras. Sempre a calcular, mensurando o que se pode perder e o que se pode ganhar. Mas tem hora que falta pilha na calculadora, os números se embaralham e, ora, resta o coração. Num rompante, confia à Cecília seus desejos e sentimentos. Lembra Guido – conversa de cinéfilos – e reproduz o diálogo, por três vezes, com Dora. Cecília ri, embaraçada. As carnes se conversam.

Ei-la mais uma vez sorridente. Agora, de quando em quando, ao sair para o trabalho, acena não mais para o silêncio duma casa desértica. Uma outra mão lhe devolve o aceno, ao dizer-lhe, prazenteiro, ‘até mais, Dora’.

Porque morada de medo, Arthur, ante o encontro diário com a própria mulher, racionaliza o que sente por Cecília. Conversa com Miguel, seu amigo, e tem de escutar a dureza de quem dá eco ao coração.

– Arthur, estas coisas são assaz simples. Cecília é única, uma chance irrepetível. Com ela, todas as cidades aparentam Brasília. Que te importa o casamento de então, se jungidos pelo medo da vida, pelo conforto da segurança? Não te pareces inabilidade para o amor? Casaste, é verdade. Mas apenas uniram duas fortunas. Com Cecília, unirão duas indigências. A vida sem excrescências, acredite-me.

Impraticável o despejo de verbos ante ser empedernido. A pilha fraca da calculadora logo é substituída. Arthur vive numericamente. Relaciona-se como quem computa os lucros que poderiam ter sido, suas horas em dólar.

Miguel insiste. Lembra a leitura dum filósofo francês e assevera, procurando eloquência na voz:

– Surgindo-nos o amor, Arthur, necessário coragem. É preciso transpor os pontos de impossibilidade. Todos eles. Se te recusas à amar, terás que esperar por longos anos, até que apareça outro amor  com a mesma força. Não, tolice tua. Não és capaz de esperar, não. Tua incapacidade forja aptidão inalcançável.

Irredutível, de nada serve o alvitre do amigo. Vai ao encontro de Cecília, quer encerrar, de uma vez por todas, esta estória despropositada. Aferira, assustara-se com a possibilidade do não-lucro – ‘mas se minha mulher me tem tanto amor’. Correr o risco – recordava Miguel: ‘Amor é risco, Arthur!’ – de ser menos amado, ter de enfrentar a insegurança, não tinha mais idade para estes disparates. 32 anos, veja lá! Mulher já em casa, guardada, direito adquirido. Que lhe importa o amor que não tem? Tudo é questão de costume – a insustentável leveza dos dias! Mesmo a boca de Cecília não vale a aventura de procurar viver a terra. Batia seu dedo nos botões numéricos da calculadora.

Cecília sufoca um choro. Conserva-se silente por algum tempo. Arthur quer ouvi-la, o silêncio lhe aturdindo.

– Arthur, compreendo-te. Cheguei em tua vida e, como no conto de Cortázar, fui tomando os teus cômodos. Quis te livrar da casa, teu abrigo aquecido. Pensei em te dar minha vida como quem, num rompante, lança mão de um convite para a vida mesma, em estado bruto. Tu, fustigado pelo frio que faz do lado de fora, foi reconstruindo o teu lar. Que hei de te dizer, Arthur? Reergueu a tua casa, bem se vê. Sabes, porém, que o alicerce dela é o medo?

Calado, a tudo escuta sem que simule uma mínima objeção. Escuta aquelas palavras e recorda outras, ditas por Miguel:

– Tens de perder este teu medo de ver cessado o medo, Arthur. Como explicar a tua fuga? Preferes permanecer em braços lânguidos à deixar-te levar ao encontro duma boca que te incute coragem?

Cecília, ainda aceso o peito, caminha por vielas outras, várias. Quer fazer, do seu amor, outra coisa que não espera e cansaço. Recorda Arthur, sua hesitação incontida – mesmo no ato do não -, suas conjecturas imperdoáveis. Miudezas. Rememora Borges, aquela brochura vermelha. Cada homem é dois? O desperto e o que dorme? Arthur nunca acordará – a injustificável distração ante a vida. Esta modalidade soberba do morrer.

Olha ao derredor. A confusão das ruas, as casas – abrigos de medo. Quantos Arthur encondidos pela cidade? Seus olhos transpõe as paredes. Nota uma sala, muito bem ornada. Num canto, um homem lê o jornal do dia, a xícara no criado-mudo. Noutro, uma mulher usa a ponta do dedo para menear o tablet. Grande silêncio. Entre os dois, Cecília entrevê o medo, o conforto, o torpor – essas vidas asfixiadas.

Outra vez, Arthur, este fantasma, penetra-lhe a cabeça. Névoa. Com seu riso irônico, Cecília faz parar um transeunte:

– Não sabes?

– O quê? – devolve, contrariado.

– Arthur morreu de segurança. Sufocado.

E ri o riso dos vivos.

Breno S. Amorim

Frutos: mas que frutos?

 “Não levas tua beleza ao túmulo:
trazes ao túmulo o imprestável.”
(Nauro Machado, Hades)

BrenoAbriu a porta do carro e entrou. Marcelo estava ansioso, era o seu último dia de graduação. Cinco longos anos. A árdua aprendizagem que a universidade não lhe dera. Apresentada a monografia, adeus sala de aula. Horas estragadas, pensava. Angústia-resto.

Em casa, aprendeu a lição secular. Necessário ser alguém, todos lhe diziam. No início, não compreendeu bem o badalar perenal. Nascer não basta? O pai dizia que não. Assim a mãe, a vó e o irmão, mais recente aprendiz. A escola logo lhe apareceu como primeira gradação. Lá iria aprender a ser alguém, tornar-se grande. Matriculado, a velha liturgia fê-lo juntar letras, formar vocábulos. Riscado o quadro, a professora instigava os alunos à repetição. De tudo, a sonoridade das palavras o entontecia.

Em tempos de vestibulares, dois interesses colidiram, infranqueáveis.  Por sua própria vontade, escolheu Física, paixão cuja escola não conseguiu matar, absolutamente. Como, porém, explicar ao pai? Rubem, homem criado na lógica da mercancia, não dava ponto sem nó. Observava, mesmo uma flor, sob a ótica da lucratividade. Vá explicá-lo a propósito das paixões, dos impulsos! Debalde, pensava Marcelo.

— Menino, atente: é preciso ser grande, doutor. Física não te levará a lugar algum. Melhor te cairá um terno ou um jaleco… De médico, não me venha com graça! – sentenciava.

A contragosto, ei-lo advogado. Doutor, sim, senhor! Com que força – ou languidez – move-se um homem sob coerção? Bacharel, o diploma na parede, o pai estampava largo sorriso, enquanto mostrava aos visitantes o papel que era mais seu que do filho.

— Doutor, meu filho! – repetia, efusivo.

Sim, ainda havia outra árvore de que colher frutos. Grávida, a mulher abrigava uma prospecção. Tal a sua idiossincrasia, aos filhos bem poderiam ser os nomes dispensáveis. Antes um número – essas vidas estatísticas.

Nos livros, Marcelo afogava a própria tibiez. A literatura, precisamente, soprava em seus subsolos, clarejava sua água-furtada. Com que euforia lera as andanças do Cavaleiro da Triste Figura! E Dostoiévski, em continuação, que maravilha de idiota. Se ao menos conservasse a intrepidez de quem, elegendo ideais, segue a desafiar os percalços do caminho. Ser, também ele, guiado por uma pura beleza. Se Dulcinéia ou Nastássia Filíppovna, pouco se lhe daria. Importante, unicamente, um encanto arrebatedor, uma força a incitar coragem ante os despropósitos do mundo.  Mas, não. O medo o tornara isto que é, um títere que delira com cordéis inalcançáveis.

Fustigava-o a mínima decepção causada. O cotidiano afugentava, por seu próprio alvedrio, as lições tomadas nas brochuras literárias, tamanho o hábito contristado de fazer as vontades forâneas, alheias. Ser benquisto, não sabia Marcelo, requer, em muitos casos, a anulação de si próprio. Dizer não aos familiares – que fardo insuportável! O sorriso dos que lhe cercavam, queria crer, valia os seus infernos diários, os passos não dados, as cidades não vistas, as ardências longínquas. Seguia, tal a sua convicção.

Ante o impulso da satisfação externa, Marcelo enceta carreira por todos há muito esperada. Nascera com esse objetivo. Preestabelecido unilateralmente. Um feto a espera do ‘doutor’ a anteceder o nome, uma criança a brincar enquanto se delibera sobre seu futuro certo, pontual, irretorquível. Doutor, ei-lo. Primeiro cliente. Para ele, chateação. Ter de ir ao código, encontrar-se com juiz, dizer ao inaugural que não se preocupe, que fará tudo quanto alcance. Enfado. Por muito pouco, náusea.

Dia da audiência. Acorda cedo e, entre um e outro bocejo, sorve o café. Trânsito. Estrépito citadino. Chega. Atravessa a rua, distraidamente. Outro bocejo. A cabeça em outro lugar, caminha, displicente, em direção ao fórum. Não nota o carro em alta velocidade, motorista embriagado, logo cedo, que absurdo!

Em seu velório, o pai, em prantos, remói a própria dor. Tentam acalmá-lo. Falam nos desígnios de Deus. Que não, responde, não pode ser. Aos berros, lamenta os lucros cessantes. O filho morto depois de tanto investimento: escola, faculdade, livros técnicos, calculadora, régua. O que fizera para merecer tal, Senhor, o que fizera? Desconsolado, desvia o seu olhar para a barriga da mulher, já agora com oito meses. E como quem vê o prorromper de chama nova, estertora:

— Ao menos este fruto a colher, este doutor futuro, esta prospecção…

Breno S. Amorim

Companhia de teatro da região completa 10 anos e realizará série de espetáculos em Juazeiro e Petrolina

TeatroPara comemorar 10 anos de criação do grupo ‘Trup Errante’, que realiza um trabalho contínuo com o Teatro no Vale do São Francisco, está sendo organizada a segunda edição da ‘Trup Mostraa Errante’, apresentando parte do seu repertório, como espetáculos, performances, contações de histórias, sessões de filmes e uma exposição comemorativa. A mostra começa nesta quarta-feira (17) e prossegue até 27 de março, nas cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE).

Em Juazeiro, a estreia acontecerá no Centro de Cultura João Gilberto, com a peça ‘A Valsa de Nelson Rodrigues’, que surgiu a partir do desejo da grupo de aprofundar a pesquisa que já tinha desenvolvido sobre a obra de Nelson Rodrigues, um dos maiores da dramaturgia nacional. Com o intuito de brincar com o autor de “A Valsa Nº 6” – título original da obra -, a encenação de Thom Galiano propõe colocar o autor também como personagem e cria outros sentidos possíveis, principalmente para quem tem a curiosidade de mergulhar nas tramas do polêmico autor.

A história aparentemente simples trata de uma adolescente (interpretada pela atriz Raphaela de Paula) que, no auge dos seus 15 anos está na fase entre ser menina e ser mulher, com todas as dualidades e multiplicidades que essa fase carrega. A peça é um convite para quem quer vivenciar uma experiência teatral desafiadora e estará em cartaz amanhã (17) e no próximo dia 24 de fevereiro, sempre às 20h. Os ingressos custam R$ 10,00 (a inteira) e R$ 5,00 (meia). A 2ª Trup Mostraa Errante’ conta também com a realização do Coletivo Passarinho e da Associação Raízes.

Fonte: Blog do Carlos Britto

MICK JAGGER, PAUL MCCARTNEY E ELTON JOHN FARÃO TRIBUTO PARA BOWIE EM NOVA YORK

David BowiePaul McCartney, Mick Jagger, Elton John vão participar ao lado de outros 20 artistas de um concerto-tributo em homenagem a David Bowie, em Nova York, nos Estados Unidos.

O show já estava agendado antes da morte do cantor e seria em homenagem aos 69 anos do músico. Porém, após a morte, ele foi alterado para um tributo que será realizado no dia 31 de março no Carnegie Hall.

Em comunicado oficial, os organizadores do evento comentaram sobre a morte de Bowie. “A morte inesperada de David Bowie transformou esta homenagem na qual trabalhamos nos últimos sete meses em um tributo”.

Os organizadores também lamentaram a morte. “Estamos profundamente tristes por esta notícia. O momento da abertura de vendas para o público ganhou um timing bizarro. Este show ficou ainda mais emotivo. Descanse em paz David e que o amor de Deus esteja com você.”

Fonte: UOL

TURNÊ DE DAVID GILMOUR PELA AMÉRICA DO SUL FOI SUCESSO DE BILHETERIA

Davd GilmourA turnê de David Gilmour pela América do Sul foi um sucesso. Com ótimos shows e repertório, o ilustre guitarrista encantou e realizou o sonho de vários brasileiros que esperavam, há anos, por uma chance de ver o lendário músico tocando seus maiores sucessos.

Agora, informações detalhadas sobre os shows de Gilmour pela América do Sul foram reveladas, indicando o lucro com os seis shows dessa parte da turnê.

De acordo com os dados, a venda de ingressos rendeu $25,727,470 (cerca de 103.2 milhões de reais) ao guitarrista. Dos seis shows, três tiveram capacidade esgotada (Curitiba, Buenos Aires e Santiago) e todos os shows contaram com 257.145 ingressos vendidos, sendo que a capacidade total a turnê era de 272.698 pessoas.

Será que números tão bons quanto esses servem de motivação para David Gilmour voltar mais uma vez?

Fonte: Tenho Mais Discos Que Amigos/ Billboard

Sensaborias literárias

Breno“Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro”. Salta-me, do músico pernambucano, esta frase ante a leitura de certo suplemento literário. Linhas a traçarem perfis de escritores badalados, virtuoses de uma arte que, como alertara Graciliano, inviabiliza a existência de tais senhores.

Por falar no velho Graça, lembro-me de sua obra miúda – e maravilhosa. Tal lembrança, tenha em conta, decorre da leitura que estou a fazer. Aqui, nesta página defronte aos meus olhos, escritores demonstram certa empáfia ante o número grandioso de folhas e obras acabadas, diagramadas e, principalmente, colocadas à disposição do grande mercado. Digo, em todas as acepções. Artistas fazem dinheiro, ora.

Em tais suplementos, pouco ou nada se diz acerca da obra. Importante, diante dos reclames consumeristas, falar sobre o autor. Colocá-lo em evidência. Necessitamos, parece-me, saber a propósito da sua comida predileta, se é o jazz ou o blues que mais apraz-lhe. E no cinema, Woody Allen ou Truffaut? Caminha antes de escrever? Suponho que se coloca sempre em completa solitude… Importante ouvir sempre as próprias vozes interiores, não? Sempre as mesmas perguntas – para respostas repisadas, inalteráveis. E a obra, o último livro publicado? Ah, o senhor já está terminando outro, mesmo hoje, dia de lançamento do último? Trabalha em série? Ah, genial, és um operário da literatura!

Raduan Nassar, Dalton Trevisan… Onde vocês? Por que não ensinam, aos seus colegas, a propósito da importância do silêncio do autor, da necessidade de deixar a obra falar? Não somos ingênuos. Talvez não saibam eles. Esse afã de criar o autor, a personalidade que dá entrevista qualquer, tem objetivo determinado. Age deliberadamente. As grandes editoras lucram com a figura do autor, que é, também, sejamos francos, personagem. Impresso na capa, o nome do autor, por si só, viabiliza a comercialização, o destaque nos ‘rankings’ de livros mais vendidos. Quem, para dar um exemplo, não quer um tal Chico Buarque para publicar em sua editora? Se “O irmão alemão” é bom, literariamente falando, lá isto não interessa. Vende? – esta, sim, é a pergunta precípua.

Graciliano, em carta a Portinari, recordo-me, perguntara se eles, artistas, não representam o papel de exploradores da miséria. O que intrigava o literato alagoano era a impossibilidade de se fazer arte contundente num mundo “cor de rosa”, onde tudo fosse belo e justo. Ora, e quanto à “literatura do autor”, o que pode ser extraído? Claro está que tal sequer explora a miséria no sentido questionado por Graciliano. O que se tem, ao revés, é uma exploração da miséria, ao visar a sua permanência, através de uma escrita que nada discute. Não temos, aqui, a “literatura da ausência”, da qual Vintila Horia, em entrevista a Osman Lins, falara? Além: de tal modo, contribui-se para a miséria da própria literatura – coitada, tão fustigada em nosso país. Um amigo, grande leitor, acredita, inclusive, que músicos, como o Caetano, são superestimados justamente por nos faltar, no presente momento, literatura de grande vulto. Eu, por mim, não duvido. Tenho em conta os excelentes literatos, ainda atuantes em nosso país. Impraticável discordar, porém.

Parece-me, portanto, imperioso lembrar Abel, personagem de Osman, de modo a perguntar-se: “(…) Planejo escrever. Para quê?”. Debalde, qualquer tentativa de ludibriar o leitor atento: as palavras, lembremos Kafka, qual machado, devem rachar!

Breno S. Amorim