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Supereu: a inquebrantável (?) cultura jurídica

“(…) Mas do silêncio em que está encerrado é como se dissesse: ouve-me.” (Avalovara, Osman Lins)

BrenoQue personagem, o jurista! Dentre todos, o mais ingênuo – quando da exclusão da faceta assaz esperta, por suposto. Não afirmo tal em desamparo. Muitos me servem de arrimo. Warat e Osman, por exemplo.

O ingênuo não tem clareza a respeito de si mesmo. Pensa-se além da própria insignificância. Seguro – falsamente – de si, acredita deliberar a propósito dos seus atos. O que, sabemos, não parece verossímil. Ao revés, toda a sua prática está condicionada, adstrita a um espaço de há muito construído. Um títere, valha-me Deus!, a delirar com o manejo dos cordéis.

Em “O futuro de uma ilusão”, Freud esclarece: “(…) Faz parte do curso de nosso desenvolvimento que a coerção externa seja gradativamente interiorizada na medida em que uma instância psíquica especial, o supereu do homem, a inclui entre seus mandamentos”. No caso do jurista, tal se vê recrudescido. O nosso personagem, mais do qualquer outro, detém grande capacidade de interiorizar a coerção externa. Isto, está visto, desde o período universitário, em que o impedimento é tomado por norte pedagógico. Cá, o círculo vicioso de tolhimento dos impulsos. Castrá-lo implica em ausência de perturbação ante os alicerces.

O jurista é, antes de tudo, um crédulo. Disparate? Recordemos o já citado Warat. Em seu “A ciência jurídica e seus dois maridos”, o argentino fala-nos numa “cultura-detergente”. Precisamente, o maior cometimento cultural do jurista. Tal, diz-nos o jusfilósofo, representa piamente um pensamento sem sujeira. Crente, o nosso personagem julga toda a construção jurídica algo cristalino, translúcido. Ora, um advogado dissera-me pensar o direito como instrumento de pacificação social. Quanta candura!

Falta, ao direito, certo pirronismo. Justamente por não ousar a dúvida é que o jurista abisma-se nas significações instituídas. Ora, Jakobson nos ensinara que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer. O nosso personagem, porque ingênuo, toma emprestado, abruptamente, certo arcabouço linguístico. Em pouco tempo, vocábulos ressonam, reverberam – e nada dizem. O jurista, assim, ainda no período de formação, é, sem o notar, coagido à repetição de palavras cujas acepções desconhecem. Diz-se, portanto, “garantia da ordem pública”, “sujeito de direito”, “homem médio” etc. A vaguidão, como se vê, reclama certa estultice bucólica.

Em leitura livre de Freud, aventuro-me à determinada aproximação. Tomemos o direito por religião. Dessarte, estabeleçamos o jurista e o direito como uma “relação com o pai”. Isto, claro, no plano social, não-metafísico. De tal modo, chegamos na ambivalência, tratada por Freud. Eis o temor e a admiração, em convivência plena. O jurista raciocina (com raciocínio autorizado), conclui que será sempre uma criança. Necessita, pois, proteção contra poderes desconhecidos – ou não. A estes, enfim, empresta-lhes a figura paterna – aqui, o direito.

Inevitável, como já se vê, pelejar com a linguagem. Trapacear a língua, como nos ensinara Barthes. Para tanto, a compreensão não-oficial dos sentidos, entonada por Warat, cai-nos como exigência inadiável. O jurista, ao saber do sentido comum teórico, obterá o clarão necessário para operar internamente, lá onde são inoculados os discursos, as palavras permitidas, os valores-ídolos.

Por derradeiro, a sempre pertinente lição da literatura. Desta vez, Osman Lins, em “Avalovara”: “- A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres”.

Por: Breno S. Amorim