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MARIATÉGUI E A TAREFA LATINO-AMERICANA

“Aquele que sai da contemplação e desce à realidade pode colher mil flores”, Mao Tsé-Tung.

O dogmático, na fabulosa definição de Mao Tsé-Tung, é aquele que impõe à realidade sempre cambiante esquemas teóricos prévios, ignorando a necessária articulação entre a universalidade e a particularidade. Rechaça-se o positivismo acrítico que supõe uma realidade dada e imutável, como contraposição vazia do pensamento, e, ao mesmo tempo, o idealismo que se evade em conceitos altaneiros sem qualquer capacidade de se enriquecer com a realidade. O apelo teórico da dialética é que, saindo da posição plácida da contemplação, o teórico dirija-se à realidade porque, se souber ver, há de colher mil flores. É um chamamento poético para haurir na realidade os elementos para a transformação.

Engels, em livro sobre Feuerbach, afirma que a proposição hegeliana de que o “real é racional e o racional é real’’ não é a santificação do que existe enquanto tradição arraigada e opressiva, mas a mirada da disjunção entre o velho e o novo porque o real não coincidindo completamente consigo mesmo pode dar ensejo a algo novo.

A tarefa latino-americana é, portanto, profundamente dialética. José Carlos Mariatégui mostrou que aplicar esquemas prévios rígidos para uma realidade sempre movente não enseja teorias adequadas e anunciava a tarefa latino-americana: romper com a concepção colonialista da tradição e promover uma leitura crítica da tradição e a colocação da questão da raça em termos econômicos e sociais.

O movimento crítico da tradição não se confunde com a nostalgia romântica de um tempo primevo e paradisíaco, mas se trata de uma reintegração histórica e uma ruptura da tradição unívoca e monolítica, exigindo, então, uma inflexão no pensamento marxista que deve enfrentar a questão indígena, tema inexistente no marxismo europeu.

As formações sociais da América Latina, para retomar o conceito de René Zavaleta,  são “abigarradas’’ em que a questão da raça, gênero e classe estão imbricadas, repercutindo no plano econômico, político e ideológico de forma que a análise dogmática, além de efeitos nefastos de compreensão, engendra efeitos políticos nefastos (1).

Afirma Mariategui:

“O problema das raças serve na América Latina, na elaboração intelectual burguesa, entre outras coisas, para encobrir ou ignorar os verdadeiros problemas do continente. A crítica marxista tem a obrigação inadiável de coloca-lo em termos reais, desprendendo-o de toda tergiversação ou pedantismo. Económica, social e politicamente, o problema das raças, como o da terra, é, em sua base, o da liquidação do feudalismo” (2).

A questão da raça na América Latina está jungida à questão do imperialismo. As classes dominantes – oligarquias brancas- introjetam os ‘valores’ do imperialismo e não nutrem qualquer alteridade em relações aos povos originários, fomentando um conceito fechado de nação da qual apenas os dotados dos atributos da branquidão participam.

A ênfase no narcisismo das pequenas diferenças- pigmento da pele, origem étnica- serve para acicatar políticas de inimizades que se expressam, sobremodo, na investida do capital representado pela oligarquias sobre os territórios dos povos originários, na subsunção de formas arcaicas de produção e na maquinaria de políticas criminais de morte.

 Mariatégui discutiu o tema da terra no modelo teórico do feudalismo. Na verdade, se articularmos, como Marx o faz no Manifesto do Partido Comunista, a descoberta da América como elemento central na constituição da modernidade e do capitalismo, o tema do feudalismo precisa ser superado pela análise de como o modo de produção capitalista, desde sua gênese, subsume o escravismo colonial, seja dos negros nos sistemas de plantação, seja dos índios na encomenda e outras formas arcaicas de produção. E, no evolver, no surgimento das sociedades industriais, não só discutir a questão do exército industrial de reserva, mas a continuidade da acumulação primitiva pelas oligarquias brancas pelo modelo extrativista do próprio estado e pela política de desapossamento dos povos originários (3).

No livro Os quilombos como novos da terra, demonstramos que a acumulação primitiva do capital é uma tendência intrínseca e contínua do capitalismo e que consiste na expropriação violenta, sutil ou explícita, contínua e sistemática da base fundiária dos camponeses e dos povos originários. O capitalismo, para se reproduzir como modo de produção extrativista do trabalho, busca, de todas as formas, a expropriação da base fundiária dos camponeses e, na América Latina, dos povos originários para formar contingentes que serão inseridos na sobre-exploração do capital ou subsumidos na políticas de morte.(4)

Já em 2008, no texto A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, tínhamos enfatizados que, diante do corte unívoco das formações sociais ocidentais, tudo que foge da estruturação colonial do poder, é lançado na irracionalidade e na patologia. A tentativa de encontrar o crime em traços antropológicos cumpre a função hegemônica de estabelecer o Outro excluído como a figura fantasmática do mal e da potencial ameaça. Os arranjos ideológicos e imagéticos dessa concepção são propalados cotidianamente de forma a constituir um imaginário que justifique um arremedo de legítima defesa que, sob o pretexto de afastar o mal, instaura políticas de mortes. Se o outro excluído coloca em questão a forma social excludente, apresenta-se, de acordo com a ideologia colonial, como ameaça à ordem da propriedade privada e à pilhagem estatal pelas classes dominantes.

A própria desordem social, causada por determinações sociais e econômicas, é manipulada para reforçar os efeitos da ordem colonial. Em vez de buscar compreender as razões das injustiças, todas as contradições são lançadas ao plano da patologia: o conflito é catalisado pela lógica ideológica, sendo apresentado como problema de índole moral-individual. A política criminal que ganha compleição estatal em alguns cantões da América Latina é orientada pela noção nefasta de traços antropológicos e, imbuída de acendrado racismo, instaura políticas de inimizades que redunda na produção sistemática da morte.

Na verdade, a velha cantilena liberal da liberdade negativa é decantada para fazer de uma questão econômica uma questão de ordem individual. Hegel ao colocar a questão econômica no sistema de ética, inverte a posição liberal e afirma que não há que falar em liberdade sem a concretização dos direitos materiais, dentre esses o direito de manter-se em vida, exigindo-se, portanto, profundas alterações de ordem econômico-social.

A tarefa latino-americana, na linha de Mariatégui, articula-se com a necessidade ver o enclave da raça, gênero e classe na lógica dialética sem qualquer dogmatismo e pensar estratégias de profundas transformações política e econômicas.

  • É difícil traduzir a expressão ‘abigarrada’ de forma que é mais profícuo preservar a riqueza que tem no original.
  • MARIATÉGUI, José Carlos. La tarea americana. Buenos Aires: Prometeu Livros, CLACSO, 2010.
  • Há que fazer uma análise foucaultiana de obras que, a pretexto do desenvolvimento, são feitas em terras dos povos originários, expropriando-os dos seus territórios, cuja dimensão ultrapassa a relação de posse com a terra.
  • Sobre a subsunção de formas arcaicas de produção pelo capital e sobre o giro descolonizador ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.