Arquivos da Seção: Qui iure vindicet?/Marxismo/Lógica Dialética
Luís Eduardo: Prolegômenos para uma hermenêutica analógica
Em artigo publicado no site Justificando, o professor da UNEB Luís Eduardo Gomes do Nascimento, apresenta-nos noções prefaciais de uma hermenêutica a ser acolhida pela filosofia moderna como compreensão interpretativa consistente na revivescência psicológica dos processos de pensamento capazes de transpor certo saber necessário para imergir-se numa comunhão de almas.
Assim, negando a assertiva de que a escritura se desvela ainda presa à dicotomia epistemológica explicação/compreensão, onde natureza se explica e história se compreende, o insigne professor preleciona, em seu texto introdutório, que a hermenêutica seria a indicação do a priori intersubjetivo sobre a mera descrição dos fatos.
Destarte, por sua vez, a hermenêutica analógica apresentar-se-ia como uma saída para a celeuma entre univocidade e equivocidade. E uma vez que não há como apartar a analogia da interpretação do direito penal, o qual é informado pelo princípio da legalidade, restaria tão somente encontrar, dentre as múltiplas significações do ser, uma filiação que, sem proceder de uma divisão de gênero em espécie, constituisse ainda assim uma ordem.
Leia o texto Prolegômenos para uma hermenêutica analógica, em:
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/16/prolegomenos-para-uma-hermeneutica-analogica/
Comentários: Adão Lima de Souza
Qui iure vindicet? – CRÍTICA À DOGMÁTICA PENAL
Ao identificar a norma (estatal) como única expressão do jurídico, a dogmática se limita ao estudo dos dados normativos positivados, apartando-os da realidade sócio-política, apreendendo do fático apenas o que é colhido pelas categorias abstratas com que trabalha.
A dogmática formaliza o direito, desprende-os dos germes políticos que o obsedam. É um saber, diria Baudrillard, que empreende próteses, pois narra o social na total transparência de uma unidade harmônica e feliz, negando as divisões e os conflitos sociais. Desintegra, portanto, a realidade social para reconhecer apenas os esquemas e fórmulas simplicistas elaboradas a partir das normas. O jurista como geômetra reduz a dogmática ao estudo das estruturas lógicas do jurídico, sem se importar com os conteúdos das normas.
As próteses do saber dogmático revelam-se nas imagens fabuladoras do direito, apresentado desde nascentes nobres e tranquilas: o direito como promotor do bem comum e redutor do arbítrio. O direito como o grande Pai protetor, como fundador dos valores mais nobres: ordem, segurança e justiça.
Daí que a ‘realidade jurídica’ é engendrada pela narração ‘feliz’ dos juristas. A dogmática narra o direito e o social. Narrando o direito, tenta salvaguardar sua função política (mesmo ilusória) de realizar o êxito do bom governo. Propala que as expressões normativas, sobre serem expressão da vontade geral, são exteriores aos conflitos e, portanto, constituem o universo do neutro, da igualdade e da liberdade. Como assinala Jean-Pierre Faye, a narração é essa função fundamental e como que primitiva da linguagem que, carregada pela base material das sociedades, não apenas toca a história, mas efetivamente a engendra.
A dogmática narra o direito penal como visando a proteger os bens jurídicos mais importantes, garantindo a condições de existência da sociedade. Subjacente a este visão está a ideologia da defesa social que conduz o jurista (ingênuo) à crença no papel relevante do seu saber como forma de proteção das condições de existência da sociedade. Ao admitir, sem reflexão, a unidade do social-histórico, ignora que, enquanto existir conflito, o nódulo central não é a defesa social, mas a ampliação do espaço social dos cidadãos.
Postular a unidade é uma tática simplista que engendra conformismo e, como diz Alessandro Barata, uma irrefletida sensação de militar do lado justo.
No caso da dogmática penal, alimenta-se a convicção de que a lei penal se aplica igualmente a todos (isonomia) e que a lei proporciona a certeza e a segurança, expurgando-se, deste modo, o capricho do intérprete (legalidade). Assim ao defender acriticamente tais postulados, os juristas colaboram decisivamente com o engessamento do social-histórico.
O ‘idealismo’ da dogmática deveras constitui um grande obstáculo epistemológico e sua superação é de substancial relevância para fundar uma dogmática mais rica e comprometida com a democracia.
Daí a relevância de empreender um verdadeiro corte epistemológico na linha de Althusser ao trazer para o plano do saber a luta de classes. Se a filosofia é a luta de classe no plano teórico, requer-se que o rigor do saber novo se erija contra a filosofia espontânea que naturaliza a dominação e cuja natureza ideológica implica numa relação imaginária dos sujeitos sociais com as condições reais de sua existência.
Somente com este corte, podemos encontrar as coordenadas que permitam uma saber vocacionado à transformação e que, invertendo a lógica ideológica, possa, ao interferir no imaginário, afetar profundamente o real.
Foi Brecht quem nos exortou a liquidar as antigas ideologias e a teorizar o saber novo que possa ajudar no avanço da democracia radical.
Luís Eduardo Gomes do Nascimento Advogado e Professor da FACAPE E UNEBQui iure vindicet? – ONDE ESTÁ A ESQUERDA?
“Dedico este pequeno texto a minha filha Luiza Manhã de três anos”
A nossa época pode ser representada como a de uma neutralização de toda saída emancipadora. A sua ‘tolerância’ lacrimosa é erigida para evitar o escândalo que toda política implica. Só há política quando uma situação nos coloca diante de uma forte oposição em que os termos são incomensuráveis. Podemos exemplificar com a oposição entre os plebeus insurretos e os patrícios ciosos do conformismo. Entre eles não havia elemento comum a não ser a luta. Por isso, a política emerge quando se instaura a comunidade do litígio (Ranciére) e não a comunidade do consenso (Habermas).
Enquanto uma relação paradoxal nos coloca diante de uma escolha radical, a relação ‘tolerante’ nos coloca ante uma falsa oposição em que os próprios termos são falsos. Slavoj Zizek, no seu livro “Em defesa das causas perdidas”, lembra que a oposição atual entre democracia e fundamentalismo existe para foracluir a hipótese emancipadora.
A oposição entre a direita e a esquerda é uma típica situação de falsa oposição, pois entre estes termos se visualiza uma elemento comum que indica consenso. Que consenso unifica a direita e a esquerda? O consenso do capital-parlamentarismo. Para ser mais direto, o elemento comum é o capitalismo.
Direita e esquerda são Fukuyamistas, pois enxergam no capital-parlamentarismo o fim da história, partilhando, portanto, da mesma concepção de que a única forma do Bem é o menos pior. Quando isto acontece, a política deixa de existir. É preciso lembrar Jacques Ranciére quando afirma que uma sequência política é rara e só ocorre quando a ordem natural da dominação é interrompida por uma oposição incomensurável. Se esquerda e direita são comensuráveis na medida em que se verifica um elemento comum qual seja a aceitação da economia de mercado como necessária, é sinal de que não existe política e, portanto, vivemos em um tempo modesto e falso.
Somente um ingênuo ou um imbecil (ou os dois) acha que entre Dilma e Aécio há antagonismo. Como salienta Ernesto Laclau, o mecanismo básico da ideologia e, podemos aditar, da política contemporânea, é transformar um antagonismo em simples diferença. Entre Dilma e Aécio o que há é simples diferença porque, quanto ao essencial, concordam: na aceitação da necessidade intransponível do capital-parlamentarismo.
Quando a esquerda deixa de representar, se é que em algum momento representou, uma verdadeira oposição à direita, é porque chegou o momento de ter a coragem de dizer que esta esquerda faliu e deixou-se absorver pelo ideário direitista que é o conformismo e a aceitação da dominação como o único horizonte politico. Então, com esta esquerda, quem precisa de direita?
Quando Espártacus deflagrou a insurreição dos escravos, abriu com seu agir um possível cuja afirmação já perfurava a naturalidade da dominação. No momento mesmo da declaração da revolta já deixou de ser escravo porque se alinhava à divisa do possível/impossível que implica no engajamento: podemos logo; devemos.
A esquerda, sobre ser medíocre e confortada, não pode instaurar uma verdadeira política já que, refestelando-se na cadeira macia dos palácios e paços, renuncia, se é que já teve este ideal, a paixão pela igualdade.
Alain Badiou ressalta que o primeiro grito xenófobo na França não adveio de Le Pen, mas de um ministro de esquerda, demonstrando que há, nas questões centrais, uma cumplicidade entre a esquerda e a direita. Lula não foi o maior continuador de Fernando Henrique?
Diante desse cenário, não devemos ceder à conclusão de que devemos reinventar a esquerda, mas sim encontrar novas formas de organização que escapem a forma-partido com o fito de salvar o povo dos seus supostos salvadores, isto é, libertar o povo da tentação do esquerdismo. É preciso reinventar a política que se dá sempre no confronto e não no consenso enfadonho de nossa época.
Ao entabular esta crítica, não estou fazendo apologia da direita. Ao revés, estou denunciando a fraqueza da esquerda. Mas como os esquerdistas são péssimos dialéticos, irão afirmar que estou fazendo o jogo da direita. É que eles só entendem a lógica do ”isto ou aquilo” e não percebem que o pensamento radical cria, como diria o meu mestre Alain Badiou, um regime diagonal. Entre a direita e a esquerda, resta a diagonal da emancipação humana.
Quando irromperam várias manifestações em julho do ano passado, ficou evidente que a oposição PT x PSDB era uma mera diferença e não um antagonismo. Por isso, os manifestantes se declaram contra os partidos. Não demorou muito para que a medíocre dialética ressurgisse na boca de alguns que apresentaram o argumento tipicamente autoritário: partidos políticos ou ditadura. A forma deste argumento não é idêntica àquele de dolorosa lembrança “Brasil, ame-o ou deixou-o”.
É preciso romper com esta pobre dialética e esta gente que se coloca como redentora de nosso povo. Eles fazem o jogo do capital. Como diria Albert Camus precisamos de homens de Prometeu que, mesmo na densa escuridão, mantem o coração ligado às primaveras do mundo. Precisamos ser os guardiões do futuro da Ideia da Igualdade e da Justiça e não esquerdistas deslumbrados com o consumo.
Luís Eduardo Gomes do Nascimento Advogado e Professor da FACAPE e UNEB
Qui iure vindicet? – O Problema da Interpretação conforme Kelsen.
Kelsen, no seu clássico “Teoria Pura do Direito”, apresenta a famosa metáfora de que o direito a aplicar é uma moldura em que várias interpretações são possíveis. Acrescenta que o ato de aplicar o direito é sempre um ato de vontade e que a questão de saber qual é, dentre as várias possibilidades que se apresentam dentro da moldura, a escolha correta não concerne à ‘ciência jurídica’, mas à política do direito.
Como Kelsen postula o critério metodológico da pureza que implica na exclusão dos dados políticos da ciência do direito, incumbe a esta simplesmente reconhecer a plurivocidade da norma e que a tentativa de encontrar uma única resposta justa é vã e é expressão da ideologia da segurança jurídica.
Com tais assertivas Kelsen nomeou o problema sem resolvê-lo. Afirmar que interpretar é um ato de vontade (“Eu quero”) e não um ato de cognição (”Eu Penso”), significa reconhecer que interpretar é um ato arbitrário e, por isso, insuscetível de controle racional.
Aqui kelsen rende-se a Hobbes que, no Leviatã, deu expressão jurídico-política ao brocardo latino “auctoritas non veritas facit legem” (A autoridade, não a verdade, faz a lei).
Certa vez fiz um exame e perguntei o que garantia a legitimidade das decisões judiciais. Um aluno me surpreendeu ao responder que era a assinatura do juiz. Quando fui entregar o resultado, fiz-lhe algumas indagações e ele, peremptório, disparou: como interpretar é uma questão de poder e não de saber, o juiz ,investido da jurisdição, ao assinar impõe a sua vontade travestida de vontade estatal. No fundo, a posição do aluno nada mais era de que o desenvolvimento da teoria de Kelsen que se coloca no extremo oposto da concepção tradicional da intepretação.
Se a hermenêutica tradicional via o juiz como boca da lei cuja atividade se limitava a encontrar o pensamento do legislador, a concepção kelseniana, reconhecendo a plurivocidade da norma, implica um voluntarismo irracionalista sem qualquer controle. É nesta encruzilhada que nos cabe pensar a hermenêutica jurídica e resolver este espinhoso problema.
Luís Eduardo Gomes do Nascimento Advogado e Professor da FACAPE E UNEBQui iure vindcet? – Direitos Humanos é o novo nome do Niilismo Político.
Quando Jeanne Deroin, em 1849, se candidatou à eleição de cuja participação estava excluída por ser mulher, buscava com tal ato político demonstrar a contradição de um sufrágio universal que exclui o sexo feminino.
Quando Rosa Park , em 1955, sentou em um banco da frente do ônibus, lugar proibido aos negros por força das leis, mostrou os limites de uma constituição cuja premissa era a evidência (evidência, veja bem) de que os homens nascem iguais em direitos.
Ambas revelaram que a declaração universal dos direitos do homem trazia em sua gênese um processo de exclusão que lhe servia de complemento.
Os afamados direitos humanos são axiomas que convivem com inúmeras exclusões. Não obstante, são elevados à condição de motor da luta política. Afirma Lefort que ‘’apartir do momento que os direitos são postos como referência última, o direito estabelecido está destinado ao questionamento. Ele é sempre mais questionável à medida que vontades coletivas ou, se se prefere, que agentes sociais portadores de novas reivindicações mobilizam um força em oposição à que tende a conter os efeitos dos direitos reconhecidos. Ora, ali onde o direito está em questão, a sociedade, entenda-se a ordem estabelecida, está em questão.”
Será que sob o pálio dos direitos humanos se pode empreender uma verdadeira política?
Seguindo Ranciére, a política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Destarte, os direitos do homem não servem hoje como mecanismo ideológico para que não exista a verdadeira política? Não promove uma espécie de resignação ao capital-parlamentarismo cuja única universalidade que conhece é a do dinheiro?
Como alerta Alain Badiou, o que subjaz na promoção dos direitos do homem é a concepção vitimária do homem, isto é, concepção de que é a condição de animal sofredor que define o homem. De um lado, existe o que sofre. De outro, o que identifica o sofrimento e luta para cessá-lo.
Desta concepção, a única ”política” que emerge é a da piedade e do envio de alimentos e remédios aos esfarrapados. Quanto à proposta de alteração radical das condições socio-econômicas que permitem a existência de ‘sofredores’, o silêncio é total. Este humanismo é semelhante à ética de Maritain, conforme a qual os pobres deveriam demonstrar sua superioridade aceitando com o orgulho sua miséria. Enquanto houver vítimas, entroniza-se a lógica do sacerdote que fere e encontra o remédio para melhor sedimentar seu poder.
O que escapou a Lefort foi o caráter niilista dos direitos humanos. Na Genealogia da Moral, Nietzsche revela que o homem prefere querer o nada a nada querer. Niilismo nada mais é do querer o nada. Os direitos do homem, por acalentar a concepção vitimária do homem, implicam no niilismo, isto é, no querer o nada que aparece, na nossa sociedade, organizado como a aceitação da necessidade do capitalismo e no empobrecimento do valor ativo dos princípios.
A mídia aprecia captar um nordestino, um negro ou índio chorando e lamuriando, mas quando estes se organizam politicamente são tratados como baderneiros. Que Zumbi tenha o direito de lamuriar-se é certo, mas querer a liberdade é demais. Eis a lógica dominante. Que todos tenham o direito de lamentar e nada mais. Que esperem como o Pedro Pedreiro de Chico Buarque as coisas se ajustarem por si só.
Citemos Aristóteles: “A natureza, dizemos, nada faz em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi também concedida aos outros animais.”
Daí que hoje não podemos falar que há política, pois só se concede ao homem o direito de emitir a sua dor, reduzindo-o à mera animalidade. Como afirma Ranciére, o titular puro e simples do direito não é nada mais que a vítima sem frase, a última figura daqueles que é excluído do logos, provido apenas da voz que exprime a queixa monótona, a queixa de um sofrimento nu.
Na verdade, os direitos dos homens existem para acabar com uma política real de emancipação. É preciso resgatar, então, o valor ativo dos princípios políticos e uma imagem mais ativa do ”homem”. Enfim, uma verdadeira política de emancipação.
Luís Eduardo Gomes do Nascimento Advogado e Professor da FACAPE E UNEB.Qui iure vindicet? – Hoje, votar é um gesto vazio.
Cada vez mais as eleições obedecem a uma lógica similar à da competição no mercado. As eleições são um mercado cuja mercadoria é Poder. Os partidos-mercadorias só possuem o único programa de repartir os cargos e as benesses que o acesso ao poder proporciona.
O filósofo francês Alain Badiou tem enfatizado que a democracia em sua forma atual comporta duas ordens de corrupção: a corrupção empírica (as roubalheiras, infelizmente quase que cotidianas) e a corrupção da forma-democracia que existe para manter e preservar a lógica do mercado, convertendo os governos em verdadeiros fundos de capital. Bastar lembrar as crises dos bancos em que todos são convocados a salvá-los, suportando arrojos sufocantes.
Dentro desta lógica, o voto, tido pelos cientistas políticos como uma arma de transformação ou como a manifestação mais plena da cidadania, se torna um verdadeiro gesto vazio. Típica manifestação de uma escolha forçada em que só se pode escolher a opção ‘certa’, isto é, a opção imposta. Como a escolha já foi decidida de antemão (o candidato do capital) resta um gesto vazio em que fingimos escolher o que nos impuseram goela abaixo com o tempero de ilusões constitucionalistas.
A linguística ensinou que todo ato de comunicação é reflexivo na medida em que a fala humana, além da mensagem que veicula, afirma o pacto entre os interlocutores. Assim, o voto que apresenta superficialmente uma faceta de liberdade implica no consentimento (implícito) à lógica que domina a forma-democracia.
Agora que a democracia virou uma opinião autoritária é preciso ter a coragem de se reservar o direito de questionar seus limites, não para regressar às ditaduras de doridas lembranças, mas para radicalizá-la, isto é, arrancá-la do influxo do poderio das oligarquias.
E o primeiro passo é não se anestesiar com a mera possibilidade do voto que hoje mais do nunca significa veto. Veto de quê? Veto da possibilidade verdadeira de escolher. Vale a pena citar Jean Baudrillard: “Ação ou exação? O voto, os abaixo-assinados, a solidariedade, a informação, os direitos humanos, tudo isso vós é suavemente extorquido sob forma de chantagem pessoal ou publicitária”
Luís Eduardo Gomes do Nascimento Advogado e Professor da FACAPE e UNEBQui iure vindicet? – ORDEM PÚBLICA E PRISÃO CAUTELAR
Herbert Hart foi o primeiro a salientar a textura aberta do direito. No seu livro já clássico, afirma que a textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de condutas cuja definição jurídica devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários.[1]
Os estudos semiológicos do direito revelaram que a linguagem jurídica, por beber na linguagem ‘natural’, vem caracterizada pelos atributos desta, quais sejam: a vagueza e a ambiguidade. Um termo é vago quando não existe resposta definida quanto à sua aplicação (extensão indefinida). Um termo é ambíguo quando ostenta sentidos diversos em contextos diversos (intensão indefinida).
À fecundidade de tais estudos não se acrescentou o necessário alerta para o perigo do uso indiscriminado de termos vagos e ambíguos na seara penal e processual-penal. Se atentarmos para o fato óbvio de que o direito penal não colima proteger os bens essenciais à coexistência social (ideologia liberal), mas ostenta um evidente caráter seletivo, pois colhe suas vítimas preferenciais nas classes subalternas e nos rebeldes (artistas e militantes), a presença de termos vagos e ambíguos na tipificação das condutas delitivas e nos pressupostos para prisão cautelar, arruína o cerne do Estado Democrático de Direito, que é a certeza de qual efeito a ordem jurídica atribui a determinado comportamento, tornando a intervenção penal imprevisível e injusta.
Como assinala Nilo Batista, formular tipos penais genéricos ou vazios, lançando mão de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, equivale a nada formular, mas constitui prática política nefasta e perigosa.[2]
A presença do termo ordem pública no art. 312 do Código Processo Penal como pressuposto para decretação de prisão preventiva constitui resquício autoritário que deve ser combatido por quem ainda tem memória de como os militares usaram e abusaram da linguagem indeterminada para perseguir os que ousavam enfrentar o regime de chumbo instaurado em 1964.
Quem gosta de pronunciar o termo Estado de Direito deveria também, por coerência, combater o uso de termos vagos na seara penal.
O termo ordem pública padece de anemia significativa, isto é, não significa nada, mas pode significar tudo. Por isso, todo e qualquer fato pode ser enquadrado nos seus lindes indefinidos, vulnerando o ideário democrático cuja ação busca arrancar aos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e à riqueza a onipotência sobre as vidas.[3]
Por meio de termos vagos na seara penal, as oligarquias controlam e promovem a paz que lhes interessa, ou seja, o estado de coisas em que a miséria resigna-se no seu gueto sem organizar-se politicamente.
O jurista militante Amilton Bueno de Carvalho proferiu decisão cuja premissa argumentativa merece ser exalçada[4]:
“HABEAS CORPUS. Prisão preventiva. requisitos legais. presunção de periculosidade pela probabilidade de reincidência. inadmissibilidade.
A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva – que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo) – tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito – considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se – torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social.
A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático –, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada – mera repetição da lei –, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente, portanto!
– A gravidade do delito, por si-só, também não sustenta o cárcere extemporâneo: ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime 70006140693, j. em 12/03/2003).” Grifo nosso.
É preciso defender veementemente limites à intervenção penal ideologicamente voltada à criminalização de agentes e ações que não tem nada a haver com crime, mas que tangenciam os sintomas (fragilidades e incoerências) de uma determinada forma de organização societária para abrir horizontes políticos aqueles que são “parte de parte alguma’’, como bem definiu o nosso velho irmão atualíssimo Karl Marx.
Luis Eduardo Gomes do Nascimento Advogado e Professor da UNEB1 HART. L.A Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fund Calouste Gulbenkian, 1986, p. 148. 2 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. R. Janeiro: Revan, 1990, p. 78. 3 RANCIÈRE, Jacques. El ódio a La democracia. B. Aires: Amorrortu, 2012, p. 136. 4 Apud LOPES JR, Aury. Direito processual penal. S. Paulo: Saraiva, 2012, p.845.