Arquivos da Seção: Qui iure vindicet?/Marxismo/Lógica Dialética
Mônada: espelho ou torção e expansão
Somos uma mônada, mas onde tudo se decide: o logos, o cosmos, tempo-espaço, cidade-pólis, estado, nação, nações. Nas nervuras do sol, do sal, nos pélagos profundos, sobrevoar as falésias, um descampado, os milharais, os arrozais, as vastas extensões, o orvalho, a chuva de qualquer mês, o vento nos beirais, percorrendo os corredores, mas o que pode cada um?
Pensar em Aristóteles e realizar a universalidade sendo político ao viver no, com e por seu povo, totalmente entregue à vida pública ou ser filósofo buscando sob uma palavra um conceito enquanto dispositivo político. Ambos, à seu modo, e no âmbito de ação próprio, convertidos em um guerreiro entre as muralhas do Estado, espreitando a brecha por onde o sonho do povo pode passar. Podem o filósofo e político encontrar um ponto arquimédico ou ambos sabem que o real é a virtualidade de vários possíveis e que, quando chegada a hora, é preciso saber ver o momento que o acaso em velocidade infinita ensejou? Penso em Maquiavel – no seu texto longe dos estereótipos- que sonhava a unidade de seu povo e penso: De onde virá, de que lugar desconhecido, de que tempestiva imprevista, de que tufão inapreensível, virá quem possa ser o signo de uma nação cheia de unidade, força e forma de vida universal?
O Retrato do filósofo nas solidões da colônia.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
SUN YAT-SEN: O CIMENTO DA REVOLUÇÃO DE OUTUBRO
“Alguns acontecimentos históricos se consolidam sob a maneira de uma data. Mesmo sendo uma convenção, ganham a forma de signos explicativos. Penso em 01 de Julho, data de fundação do Partido Comunista da China e, em alusão à data, ao texto magnífico de Mao Tsé-Tung dedicado ao 28 aniversário do Partido. O texto é profundo e invoca dois personagens erigidos em personagens conceituais de tal forma que adensam as correntes e tendências e devir histórico da nação. As continuidades e as descontinuidades de uma revolução, os pactos necessários com o inimigo, a hora delicada em que, no curso dos acontecimentos, até o amigo se torna suspeito: é a chamada hora do lobo. O reacionário e inimigo da classe operária Chiang Kai-shek com o qual Mao, no auge da guerra anti-imperialista contra o Japão, precisa dialogar em nome da unidade nacional e da luta anti-imperialista. Era aí que conversava com meus amigos sobre a figura inusitada de Yukio Mishima e a importância da Revolução Cultural. Outrossim, aparece, no texto, a personalidade que representa a continuidade histórica das revoluções nacionalista e operária no momento de interregno: Sun Yat-sen. Declara Mao Tsè-Tung: “No auge do mais profundo desespero, Sun Yat-sen encontra a Revolução de Outubro e o Partido Comunista da China”. O que pensar desse personagem que, inicialmente, inaugura o movimento que fez os olhos e a inteligência de Lenin brilharem: os punhos da justiça e da concordância, o movimento que cimentou a Revolução. O próprio Lenin, no momento mais incerto da revolução de 1917, considerado agente alemão, mergulhou na mais profunda inquietude e no receio de ser considerado traidor. Toda revolução tem que atravessar os momentos nebulosos de incerteza, paranóia e dúvida. Nunca recusar o apoio de um aliado. É singular que, no ápice da luta nacionalista, Sun-Yat-sen tenha encontrado a classe obreira e classe campesina e tenha, no fundo do abismo em que toda revolução se funda, celebrado a Revolução de Outubro e o Partido Comunista da China, representando a mais profunda continuidade na descontinuidade histórica. Eu vi que os olhos de meus amigos brilharam ao citar este texto. E veio um verso de Paul Celan: Sobre as inconsistências se apoiar. Somos destinados à alteridade do outro e isto é a revolução. Nacionalistas e, ao mesmo tempo, internacionalistas, nos legou Sun-Yat-sen”
O retrato do filósofo nas solidões das colônias
DE QUAL FANON FALAMOS?
A Luma Mahin, rebelde, viva e, absolutamente, feliz.
Um dia, uma dia cheio de penumbra e expectativa de luz, talvez se faça a história da recepção dos filósofos: de como cada época se apropria de um autor para engajá-lo numa ou outra direção, de como um autor crítico pode ser desarmado por seus pretensos continuadores mediante a supressão das bases e das injunções que lhe move para lançá-lo nas vagas dos modismos do presente.
Se Sartre, em o Prefácio dos Condenados da Terra, mostra um Fanon capaz de abrir uma ferida narcísica no ufanismo eurocêntrico porque, hoje, se verifica um retorno a um Fanon reacionário mesmo que sob a aparência transformadora. Porque Fanon não é apenas um pensador que mostrou a relação intrínseca entre capitalismo e racismo, mas, sobretudo, um pensador que procurou as raízes profundas da alienação ideológica e econômica dos negros.
Uma forma de fugir da radicalidade de um autor é afastar a totalidade em que se engaja para abordar aspectos subalternos e retirar-lhe a seiva contestatória. De qual Fanon falamos?
Não basta dizer o óbvio de um excedente humano capitulado como refugo nem fazer uma aposta vazia na alteridade, é preciso coragem de enunciar qual o dispositivo do racismo numa formação social marcadamente exploradora? Dizer, no vago, sem desvelar a estrutura profunda da formação social capitalista, que não há capitalismo sem subsídios raciais é tergiversação incompatível com a injunção do pensamento que Hegel mesmo articulava à coragem da verdade e a fé no espírito humano1.
Dizer que há uma massa excedente fora da humanidade é render-se a uma lógica simplista, pois, na medida em que figura como superpopulação relativa sustenta a lógica da exploração daqueles que ocupam um lugar no sistema de exploração da mais-valia. A massa está fora e dentro ao mesmo tempo. É uma percepção dialética que deve realçada para que o aspecto da ‘necessidade’ estrutural da massa excedente nos marcos do capitalismo não seja obliterada.
Fanon, mesmo escrevendo no estertor e na agonia das lutas anticolonias e na tentativa furiosa de expressar de forma lacônica e explosiva a situação colonial, soube enunciar o sintoma do reacismo de forma muita clara:
“Resta evidente que a verdadeira desalienação do Negro depende da tomada de consciência abrupta das realidades econômicas e sociais” 2
Uma teoria é científica, conforme salienta Maurice Godelier, quando se esforça por estabelecer as relações e as correspondências entre as diversas instâncias que compõem uma formação social ainda que reconheça, na linha althusseriana, a relativa autonomia entre essas instâncias. Mais ainda, invocando a metáfora maoísta, a relação em espiral e de influência recíproca entre as diversas instâncias de uma formação social.
Depreende-se que o pensamento de Fanon remonta um fenômeno social às determinações econômicas e, nessa injunção, longe de pretender a crítica da razão negra, engaja-se, com furor e verdade, na crítica de todos os dispositivos e diagramas da branquidão como propriedade. Por isso, de que Fanon falamos?3
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
1 Em 2008, em A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, já tínhamos assinalado que a abolição da escravatura gera uma superpopulação excluída sem qualquer possibilidade de inserção na sociedade industrial, revelamos a necrofilia do poder, e definíamos a democracia como alteridade ao conflito e ao outro num abertura inclusiva e poética do mundo, mas, no enunciar isso, fazíamos referência à estrutura hegemônica da propriedade como forma de criar um humanismo excludente. Ou seja, ainda que naquele momento tínhamos crítica a Marx, nunca o abandonamos e, ao longo do tempo, o que era crítica era apenas um ausência: a ausência de uma leitura mais ampla e detida de Marx. Por isso, passamos a reinvindicar, com destemor, o marxismo ortodoxo. Nunca deixamos de nos mover em direção à verdade.
2 FANON, Franz. Ouvres: peau noire, masques blanc, Paris: Éditions La Découverte, Paris, 2011, pagina 66.
3 Pretendo, futuramente, dedicar-me a todas as determinações e consequências libertadoras da obra de Fanon.
UMA NOITE RUMO AOS PEIXES
Uma noite rumo aos peixes,
mas ainda o registro do encardido das coisas perdidas
Mas ainda o encardido das coisas
A lentidão da tarde infinitude inútil
O que fazer numa vastidão
O álcool que chega e arrasta o chão para outros terrenos baldios
Ainda é possível cantar o enorme dia do nascimento
Crescem minhas retinas nelas nasce tua beleza que faz chorar
Um tio ressuscita na lã do carneiro, transformado em sertão
Canícula, alforje, cheiro de esterco
Em que música encontro meu corpo?
Em que copo abandono a mulher que trouxe o gosto de sexo?
Não sei as savanas minadas de risco e possível?
Pulsar o teu hálito forte bafejo marinho
Trazes teu sexo e um venturoso ventre onde eu possa armar meu dia e minha tenda
Onde eu experimente claves e cores e ainda mais brasis
rangem no meu nome as combinações da vida
Chorando em acordes menores talvez venham as chuvas sonhadas
tubérculos e bulbos engolfando-se na terra e cipós farejando os sóis em si transmutam
Somos tudo glória e infortúnio
Augusto queria te dizer: só se sublima pela carne.
Os sólidos fervem seu pouso terrestre nos silêncios nascidos no clamor da vida
inteireza do que resiste….um rio encontra-se com teu ventre …. Frida e a fecundação… como se o que registra a tinta não fosse a vida querendo-se mais….era…
Desenho com meus dedos teu escuro no teu rosto…. às escuras posso te fazer tão bonita quanto és … criar: sopro sobre o abismo…. um desejo de encontrar o que: pedra e casa e cidade onde povoar os dias… Granulações do invisível
As ramagens escrevem à sutil maneira …. nos interstícios algo ocorre e é grande….os homens não sabem da beleza do pássaro que nada sabe apenas vôo e passagem nas rotas nunca redundantes…. não se registra nada…. tudo se apresenta velho preste a morrer de tão forte que a vida chega…
A futilidade chega como um soco…. esperma sobre o monturo sobre o corpo da prostituta…. dispêndio profuso de vinhos, álcool, aos borbotões, derramado sobre o chão ….sobre os corpos empalhados dos bêbados…. os banquetes dos cínicos que não podemos vingar….. Calígula instaura a morte… não será condenado? É possível redimir o tropel dos crucificados? Quem pagará as mortes dos que ousaram vindicar a vinha….
Um místico fervilhando os corações sabe a brincadeira da felicidade em estar sob o sol partilhando do calor do mar e das pedras e do descanso entre árvores…. por que a morte triunfa …. por que Antígona morre….Guevara sucumbe na altitude….Reich definha…
O beijo e a agressão se equivalem Camus? Matar trucidar é romper o equilíbrio do dia me respondes em algum lugar…..não te vi….mas te encontrei ….o escrito há tempo elaborado ninguém sabe sob que condições em que escrivaninha sob que temperatura….lançaste-o sobre as velas…trilhos ….estradas sem saber a que e a quem se destinava….e olha que numa tarde em que o absurdo se colava à minha veste desleixada …. a procura por um livro teu me fez pensar no absurdo e o que tua vida era naquele instante…um livro sobrevivendo ao autor agora poeira estelar cósmica renascendo em Tipasa nas madeiras velhas da casa onde nasceu na Lapa em salvador nas mãos ávidas pelo teu socorro…. volvia-me à praia emitindo o mesmo grito…a mesma ciência de que é preciso esgotar o possível….articular a minha respiração ao ofego selvagem do mar e da vida….saber que os corpos tostados ao sol passariam ….mas o milagre renascerá sempre nos sargaços e no olhar vago da senhora sobre a pedra num descampado que comoveu o amigo
o Grito: Terra, eu nós gritamos: a Terra, a Terra e evoca-se tanta coisa
Meus cabelos querem o mês em que os cipós nos obrigam à rendição….exigem a grande queda gloriosa de nada pretender e simplesmente estar….o querido exílio…..que as barbas cresçam como os cabelos das árvores o musgo sobre a parede…. os dentes da criança e a prudência nas cãs augustas de um velho que sabe o frio e o vinagre sem ressentimento…. Krischnamurti sabe que a morte é uma invenção horrível….. o que se chama morte é o maior abraço possível… a morte está quando se grita com ódio se estanca o fluxo se aniquila o devir o porvir que desestabiliza os amantes da ordem…..eu quero cantar, eu agora canto apenas peixe onda nuvem rio amazônia caatinga instante fulguração frágil….
Concomitante, aborta-se , crispam-se corpos miúdos ante a fatalidade, abrem-se girassóis….alfomadas florais….
ao longo do mar viril a sirene anuncia morte
a agonia de um vivente confronta a baba violenta do mar contra as pedras tudo estrugindo em minha consciência
ingênuo uma tarde qualquer me colocou na loucura a sirene e as ondas eu entre tudo que oscila os coqueiros arfantes a maresias
o sal ferindo o corpo e os edifícios
os transeuntes ignorantes do lodaçal que atravessa a cidade de ventre corroído pelas baratas ratos e as trapaças humanas….o fausto dos edifícios em cotejo com a pele pútrida de mendigos amantes dos monturos em colóquio com os limites do corpo e com o coração manchado de berros as vítimas que não podem ascender ao milagroso sol ….ficaram aos rés do mísero pão e das migalhas que lhes foram entregues por um desapiedado…. de vez em quando os ratos precisam se alimentar- pensa um rato triunfante, talvez não
Suas pulsações decaíram? O bêbado com pele amarelada e com barriga d’agua será que sabe da possibilidade do beijo? Encolhido contra as paredes espaventando o frio se concentrava nele da forma mais dorida
Eu posso esquecer tudo isso? Posso ainda jogar-me sobre o mundo com a venturosa inocência de meus filhos… Ó…. que o motor imóvel do cosmo não tenha consciência….senão ele é um eterno sofredor se não é ele é um eterno sonhador
Mas eu grito: a Terra e tudo se move, se emaranha, se distancia e renasce nasce e renasce e nasce sem que saibamos e sabemos que tudo poderia explodir mas tudo é prosódia e comunhão tudo é comunhão eu vi nós vimos tudo será e tudo foi ontem quando amanhecia atravessei o véu de maia e nada temo e nada desgosto e gosto de tudo e gosto de tudo de ti, de você e de mim e que ninguém mais perturbe a paz das horas.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Poema em Homenagem a Muhammad Ali
Nós, cujas mãos tingida de carvão, hulha e betume,
Arvóres de tronco milenar tornando-se mesa;
Nós, cujas retinas o sol agrediu, furiosamente
Arrancamos da pedra uma nesga de pão
Nós, os condenados e errantes, cujas farpas
Bruxuleiam ao vento acre, guardamos consaguinidade com os húmus
Que no escuro martela lenta e firmemente o solstício,
As estações nascituras, a sístole e a diástole do sol.
Nós, frutos que não inculcam a culpa, arremetemos contra o muro,
Fruímos de uma palavra corrosiva, de uma amizade salutar com o barro vivo desta casas
Nós que por puro amor somos obrigados a desfraldar a liberdade.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
O RETRATO DO FILÓSOFO NAS SOLIDÕES DA COLÔNIA
“Numa atmosfera plumbeia, aparecera meu grande amigo. Viera de outro país. Parecia ingênuo, mas era pura bondade. Éramos maoístas. Tínhamos a mesma formação. Disse-lhe, tranquilo, bafejando um cigarro: pensar de forma articulada é muito arriscado. Percebi, atônito, que nele se formara há muito o senso do risco, o risco de ter a inteligência que viajava entre as esferas e mergulhava no sistema das necessidades, ao me dizer: o problema é encarnar a contradição de toda uma sociedade. Concordando, disse: por essas plagas, o melhor caminho é o murmúrio da literatura e esperar os frutos do tempo. Falei dos pactos, dos inúmeros pactos que comportam a vida, desde Édipo às formas de governo, e lancei Lacan, referindo-me ao meu contexto: a palavra ou a morte. Atalhou num átimo veloz, como se rechaçasse eminências pardas,: para mim restou ”a política ou a morte”. Era como se uma lâmina refletisse o sol e o próprio sol doesse de dor. Silenciamos e ficamos horas a escutar o sibilo do vento enquanto lá longe um relógio imitava os corações. Um amigo profundo que, de alguma forma, me disse que talvez o caminho devesse ser o mesmo e já fosse tarde para mim, agora escritor recluso. Pensando bem, és um intelectual orgânico, disse. Antes de ir, pediu, taciturno, cuidado: “Estamos em tempos de interregno e neles as contradições se agudizam”. Lembrei que me disse que a lei é um artefato semiológico. Respondera-lhe que a linguagem é bom agasalho. Um samurai, cujo perfil sutil sumia no espaço deixando a amargura de sua ausência. Um grande amigo, entre a palavra e a política, a mesma vulnerabilidade dos seres pensantes. Quase lhe disse de longe a frase de Pascal: o ser humano é o caniço pensante. Nunca tinha pensando naquela metáfora e era uma alegria e um temor. E seu passo era de quem já não vacila nem teme o rugido”.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
MARXISMO E A RETÓRICA DA ESCASSEZ DOS RECURSOS
“Entre os dois mundos a trégua nos rejeita”
Pasolini
É preciso perguntar que diagrama de poder uma teoria secretamente secreta. A ciência econômica na medida em que se esvazia em números abstratos ao mesmo tempo, de forma sutil, alimenta políticas voltadas ao controle, conforme dizia Battaille, do fluxo de energia sobre a terra e, outrossim, analisando as várias pressões exercidas pela ação humana, recusa, invocando Marx, o topos da escassez dos recursos.
Marx sempre criticou o topos retórico da escassez dos recursos que sempre é esgrimido para justificar dilemas trágicos inexistentes, o fatalismo inexistente das desigualdades e o controle das populações. Na verdade, o topos da escassez é a forma com que a economia burguesa clássica legitima um modo de produção que cria uma superpopulação entregue à própria sorte, deserdada do comum e desterrada do sistema de necessidades, perecendo por inanição, fome e desemprego. O topos da escassez dos recursos, ao ocultar a forma predatória com que funciona o capitalismo, serve para evitar o tangenciamento do problema central: a questão não é da escassez dos recurso, mas do modo de produção que, forjado na lógica do mais-valor, leva ao esgarçamento do metabolismo ser humano e natureza.
Em Por uma renovação marxista da dependência (1), reiteramos necessidade de verificar as relações entre biologia e as ciências sociais. Na verdade, mais do que nunca é preciso fazer a genealogia da incursão biologicista nas ciências sociais. A própria sociologia, para além do monismo epistemológico pelo qual os modelos das ciências naturais serviriam de paradigma para as ciências sociais, na sua gênese, sofreu o desvio biologicista por Spencer e pela incorporação de um darwinismo social mediante o qual as lancinantes desigualdades encontrariam amparo no argumento de que prevalece o mais forte. Marx e Engels, por sua vez, tiveram que palmilhar um conflito de interpretação em relação a Darwin e, somente depois de um longo debate, entenderam que, em Darwin, a evolução não é a ascendência do mais forte, mas um longo processo pelo qual as espécies criativamente produzem uma homeostase tensa com a biosfera (2).
Ao desvio biologicista das ciências sociais devemos opor uma epistemologia marxista decolonial para que não haja formas silentes de construção de humanismos excludentes fundados na ideia de superioridade racial e formas de políticas inimizades contra os que são considerados inumanos (3). A retórica da escassez ocorre nesse engajamento e precisa ser desvelada para que não se legitime o controle malthusiano das populações.
Marx já assinala que o modo de produção do capitalismo só se mantém na medida em que socava as duas fontes criadores de valor, quais sejam: o trabalho vivo e a natureza. A questão não é a de escassez de recurso, mas sim de refundar o humanismo para que as formações sociais, imantadas pela requisição virtual de todos, estabeleça aquilo que Hegel chama, em A fenomenologia do espírito, de comunidade universal de bens em que se proveriam as necessidades sem distinções ou hierarquias e, para citar, superar a exploração do ser humano pela administração comunitária das coisas.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
1. NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Por uma renovação marxista da Teoria da Dependência. Juazeiro: Oxente, 2022. Se a economia, conforme salientava Engels, é a reprodução da vida, urge, primeiro, descolonizar epistemologicamente a ciência econômica para, depois, mais bem articular a libertação econômica. O livro é um ensaio fundador dessa superação decolonial da ciência econômica tradicional, versando sobre os caminhos factíveis da libertação econômica da América Latina, Ásia e África, desvelando a inflação e a dívida pública como principais instrumentos de dominação colonial e todos os deslocamentos políticos feitos para ocultar essas duas questões crucias, desde a questão das relações de trabalho às relações tributárias, num descortinar da totalidade que projeta a necessidade de refundar a economia no trabalho vivo e no metabolismo ser humano e natureza.
2. DARWIN, Charles. The origin of species. Hertfordshire: Wordsworth editions, 1998. Nas cartas em que tratam das ciências naturais, Marx e Engels revelam o evolver da compreensão de Darwin.
3. Sobre o conceito de ciência em Marx e os desdobramentos possíveis, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 202
EQUADOR INSURGENTE
A Aleida Guevara
“Art. 98.- Los individuos y los colectivos podrán ejercer el derecho a la resistencia frente a acciones u omisiones del poder público o de las personas naturales o jurídicas no estatales que vulneren o puedan vulnerar sus derechos constitucionales, y demandar el reconocimiento de nuevos derechos.”
Constituição do Equador de Outubro de 2008
Quando a multidão tomava as ruas na França para reivindicar contra as reformas trabalhista e previdenciária, François Hollande afirmava, no uso do lugar formal de poder, que o local para o debate político era o parlamento e tão-somente o parlamento. Na verdade, é uma tendência das classes dominantes reduzir à política as regras formais de deliberação para provocar o olvido de que o poder é uma relação em que os efeitos de dominação dependem da cumplicidade dos que lhe são afetados e que há um excedente democrático que, a qualquer tempo, pode se revelar no desvelamento de que toda forma de poder tem base comunitária. Uma opressão só instala quando se erige um mito fundador que subtrai o passado das contradições para instaurar a narrativa de um poder cuja fonte se torna imemorial justamente para produzir efeito de dominação na medida em que promove a justificação de hierarquias. Mais ainda: as classes dominantes tem sido um fator de anarquia e de desordem, corroendo de forma contínua o devido processo legal substancial, promovendo rupturas da ordem constitucional mediante o uso da força ou pelo poder suave da apropriação privada da linguagem. A apropriação privada da linguagem permite o monopólio dos sentidos pelos que representam a colonialidade do poder e a instauração de formas de opressão que são mais sutis e, por isso, de difícil identificação. Por isso, necessitamos de uma nova teoria da violência.
De Platão a Rousseau, a democracia significa a rivalidade das pretensões e a possibilidade de expô-las no debate público. Por isso, a democracia é o alargamento da esfera pública para que as pretensões dos pobres entrem em cena e possam revelar as limitações de um poder que se instaura e se mantém pela constrição dos espaços de liberdade. Quando em Roma os plebeus se rebelaram, Agripa Menênio teve que entrar numa grande encruzilhada: pressupondo que os plebeus não eram dotados de logos teve que se dirigir a eles por meio da palavra. Como usar da palavra em direção àqueles que não são dotados de palavra? É essa a encruzilhada da política e nela que se instaura a sua possibilidade: quando os que são considerados privados dos logos reivindicam de alguma forma a palavra e protesto para assinalar o direito à vida.
É por isso que, no Equador, passa algum fundamental para a América Latina de forma que a democracia, seguindo Mao Tsé-Tung, tem que ver com a exigência de que economia não pode significar a privação dos povos dos meios de existência e que a vida não poder ser monopólio dos centros de decisão da burguesia. Nesse sentido, a política significa encontra os meios de poder para resgatar as condições de produção da vida.
Que a multidão, no Equador, colhendo a constituição pela palavra, reivindique o sentido talhado pelo poder constituinte de que os bens comuns não podem ser apropriados privadamente e que o direito a não ser excluído do direito de lutar pelos seus direitos se converte no dínamo da própria constituição. Trata-se de uma constituição que, no art. 98, consagra a ideia de que o poder constituinte não se encerra na feitura do documento constitucional e nunca se aliena numa representação que não agasalha as pretensões do povo. O sentido do artigo 98 é de que o poder constituinte é permanente e, sendo de titularidade exclusiva do povo, quer queira ou não os que ocupam um lugar formal de poder, expressa o direito do povo a exigir e postular novos direitos. É uma constituição que não aliena o poder constituinte ao poder reificado e consagra o direito de resistência à opressão.
Há um mito do liberalismo pelo qual o indivíduo precede à sociedade e detém um conjunto de direitos de natureza individual que lhe confere uma esfera de liberdade intangível à ação estatal. Trata-se, para lembrar Marx, de um mito. Indivíduo e sociedade se constituem mutuamente numa espécie de ação de contragolpe, para citar Piaget. E isso tem consequências teóricas e políticas cruciais. A teoria é um dispositivo político e se engaja no cruzamento que anula qualquer pretensão de neutralidade axiológica ou de exterioridade às refregas políticas. Toda teoria é interna à luta política. Nesse contexto, Hegel, partindo da co-originariedade entre indivíduo e sociedade, afirma:
“A sociedade tem sobre o indivíduo o direito de que este seja formado com vista a um estado determinado e seja atribuído a esse estado; enquanto que ele, como integrante nativo dessa sociedade, tem sobre ela o direito à sua subsistência e à proteção contra as contingências que a ameaçam.”
Mesmo Hegel admitindo que uma singularidade possa questionar um determinado estado, o mais importante é que foi um dos primeiros a superar a problemática liberal e de ter articulado que uma formação social que não garanta a todos o direito de manter-se em vida faz da liberdade um valor-ídolo sem qualquer efetividade. Não há liberdade sem a concretização dos direitos materiais.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Pandemia, dilemas trágicos e dialética
“Um partido que suporta a contradição torna-se vitorioso’’
Hegel
Um dos mecanismos da guerra híbrida é o uso da comunicação patológica, lançando relatos divergentes para colocar as formações sociais no impasse decisório e na incapacidade de retomar os elementos básicos para a produção e a deliberação política. A ambiguidade, por meio de relatos divergentes, é mobilizada para a formação social perder os eixos das ações básicas de toda e qualquer formação social: produção econômica e deliberação política. A comunicação patológica produz a indecidibilidade política e, portanto, pode levar à destruição econômica.
O que é a indecibilidade? Numa analogia do campo jurídico, uma antinomia, no sentido técnico, ocorre quando a mesma conduta é regulada por modais deônticos contraditórios: por exemplo, a mesma conduta é proibida e permitida ao mesmo tempo. Nesse caso, o cidadão mergulha num impasse, numa indecidibilidade terrível, pois, o ordenamento jurídico- cuja função é orientar e estabilizar as expectativas- produz um ruído e o deixa confuso num impasse insolúvel. E se produz, de alguma forma, um jogo de soma zero.
A comunicação patológica cria justamente antinomias insolúveis, produzindo profunda desorientação na ação política e econômica. Por isso, na pandemia, algumas formações sociais estão mergulhadas em decisões ambíguas, ora lockdowm, ora retorno às atividades, produzindo relatos antinômicos, provocando incerteza, pânico e, última instância, repressão política para aniquilar a produção da economia. A própria pandemia, na medida em que não se descobre o principio de replicação do vírus, é orientada num sentido trágico de controle das populações, pois, a longo prazo, a paralisação da atividade econômica levará o país à bancarrota de forma que até o combate ao vírus se torna impossível sem aportes de recursos. A pandemia é mobilizada, mediante relatos ambíguos, e direcionada num só sentido: controle das populações e destruição de economias baseadas no trabalho vivo. A solução para tal dilema do prisioneiro é coordenar, de forma adequada, a reativação da economia sob controle rígido das regras sanitárias para evitar a expansão do vírus até se descobrir o princípio da replicação e o controle efetivo da pandemia.
Gregory Bateson foi quem descobriu a lógica do duplo vínculo e a desvelou em várias obras.
A pandemia está sendo usada e mobilizada para, produzindo indecidibilidade, arruinar a economia industrial de certos países, mergulhando num caos que , a longo prazo, levará à bancarrota e, pela via do vírus ou da destruição econômica, ao controle das populações, isto é, quem merece e quem não merece viver à luz da tétrica necrofilia do poder. A covid-19, por ser retrovírus, avança em proporção geométrica, e já se está na quinta onda, e , no horizonte, sombrio, várias ondas podem vir. O capitalismo é a pré-história da humanidade.
Marx, em carta a Kugelmann, mostra que o trabalho vivo é fonte criadora de valor ao conjeturar sobre os efeitos de uma greve prolongada e indeterminada: o que aconteceria com um país se os trabalhadores em geral deixassem de laborar por um período de um ano? A nação pereceria, conclui Marx. A pandemia enquanto interrupção da atividade econômica industrial pode gerar um cenário de massacre dos povos. Para a dialética, abordar uma situação significa entendê-la na totalidade sem fazer concessões a quem quer seja. Um conflito de interpretação pode ser ampliado para uma abordagem mais ancha da situação e aquilo que parece antinomia se revela abordagem complementar. A solução de uma paralaxe é ampliar o horizonte: união de horizontes. E, no caso da pandemia, é necessário, seguindo a linha de demarcação da dialética, coordenar de forma eficaz e combinada a manutenção da atividade econômica e o controle sanitário do vírus. Sem essa coordenação, o mesmo cenário, ainda que por vias oblíquas- vírus- ou concêntricas – vírus e destruição econômica, vai se desenhar sombrio: massacre de vidas humanas e populações.
Em sendo a covid-19 um retrovírus, o combate se insere na linha da guerra prolongada e, nesse momento, a questão sobre qual o modelo de economia determina a maneira de combater a pandemia.
Na visão do capital financeiro, marcado pela capital a juros, cuja fórmula é dinheiro-dinheiro, ”injetar investimentos” configura a fórmula para a circulação autorreferente de dinheiro. Sem investimento, a economia afunda, dizem os economistas oficias. Na política de confinamento, o capital a juros cresce em progressão.
Em se tratando de guerra prolongada e de movimento, busca-se reativar nos moldes tradicionais a economia sem a exigência de medidas sanitárias rígidas. O capital a juros continua prevalecendo. Enfim , o capital financeiro impôs à humanidade uma espécie de dilema do prisioneiro e um jogo de soma zero em que a vida parece não ter valor. O importante é o investimento, dizem. É preciso afirmar que investimento é trabalho objetivado que perdeu as bases materiais.
A solução para tal dilema do prisioneiro é coordenar, de forma adequada, a reativação da economia sob o controle rígido das regras sanitárias para evitar a expansão do vírus até se descobrir o princípio da replicação e o controle efetivo da pandemia. A questão chave é, então, coordenar o retorno à atividade industrial e o controle da pandemia mediante regras sanitárias rígidas.
É paradigma que coloca a vida em primeiro lugar sem descurar do apoio estatal à economia. É paradigma fundado na vida.
Marx salienta que, por forças das contingências históricas, numa única nação pode se concretar de forma complexa e ampla as lutas de classes decisivas de maneira que a nação se torna o epicentro da luta entre todas as nações.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
MAOÍSMO, HEGEMONIA E EMANCIPAÇÃO SOCIAL
A Bartolomé de Las Casas
Mao Tsé-Tung foi pensador genial em cujo pensamento a noção de estratégia é inerente aos próprios conceitos. Oferecia pensamentos argutos e diretivas políticas adensadas em fórmulas geniais. Um mestre insubstituível da cartografia política. ”Resolver as contradições no bojo do povo e resolver a contradições no bojo do partido” é uma diretiva que oferece uma cartografia conceitual para nos libertar da desorientação política e apresenta o mapa necessário de toda construção transformadora. No âmbito do povo, resolver as contradições significa unificar as classes dominadas na produção de uma efervescência democrática capaz de frear intentos despóticos e num bloco de poder coeso, capaz de autocrítica enquanto mediação mobilizadora e, no âmbito do partido, evitar a danosa infiltragem e a cooptação para o imperialismo, evitando-se o fetichismo político de forma que o partido se torna o instrumento de mediação do interesse geral do povo. Um povo unido constrói partidos capazes de traduzir em termos de decisões político-econômicas seus interesses universais.
A diretiva genial, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci.
Um dos problemas da luta social é a distorção dos conceitos e a incompreensão da forma com que se realiza a luta de classe. Na América Latina, a conjuntura é sempre mais complexa do que na Europa. Os governos de oposição consentida já tem o apoio secular da aristocracia financeira, dos grandes proprietários de terra e da pequena burguesia, especialmente a acadêmica que, sob o verniz de progressismo, é extremamente conservadora porque não abdica de seus privilégios obtidos pela lógica do prestígio e, muitas vezes, pela aparência progressista, se infiltram nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais para conter sua força expansiva. Nada mais reacionário do que o progressismo da pequena burguesia falante em suas ‘rebeldias’ performáticas vazias. Essas três classes tem aliança perpétua. Se, porventura, o país tem partidos de contradição antagônica e movimentos sociais coesos, os governos de oposição consentida, além da infiltração, buscam cooptá-los mediante benesses administrativas e privilégios camuflados, corrupção, ou, se não conseguir isso, mediante a estigmatização e a persecução penal da superpopulação relativa.
Um dos sintomas mais claro de que um governo não é de esquerda se dá quando sobrecodifica a questão econômico-social pela persecução penal dos pobres. E, nesse caso, rótulos só servem para escamotear uma estrutura profunda de repressão fascista.
O primeiro sinal do fascismo é a militarização das escolas e do cotidiano. Cria-se, sob o discurso da ordem, um panóptico sutil sobre os talentos. Nenhum fascismo se faz sem o jogo e o jugo do olhar censor sobre os talentos. Observa-se que os grandes escritores do nosso continente perceberam o panóptico colonial. Em vários contos de Córtazar se vê a forma sutil com que o fascismo, desde forma esmaecida, mas concreta, ganha figura, e, avultando-se tenebroso, desaba sobre os países. Estamos num período em que o fascismo se torna rizomático e, não dizendo seu nome, ancora-se mais sutilmente nas escolas e nas ruas, nas sondagens, na chantagem publicitária e na repressão absoluta da morte. O fascismo é o mecanismo político pelo qual se interdita o questionamento político das formações num processo contínuo e crescente de despolitização que, indo às últimas consequências, não tergiversa em instaurar a repressão pela morte. Pela sondagem militar e ilegal das pessoas, busca-se interditar àqueles que possam questionar a interdição; não sendo possível o silenciamento, instaura-se a morte enquanto mensagem cotidiana de poder obsceno: corpos empilhados nas ruas enquanto signo da ameaça.
Não obstante, seguindo Nietzsche, o fascismo nunca é ativo, mas é sempre reativo às insurgências democrático-comunitárias. Se há fascismo, é porque alguma comunidade pode se estabelecer.[1]
Em Ler em Louis Althusser, escrevo:
“A questão ‘’o que é se orientar na política?’’ emerge crucial e, ao entender que existe uma linha de demarcação justa, uma linha justa de definição, podemos evitar o diversionismo tão ao sabor do capital financeiro e devolver às formações sociais a orientação pela qual os problemas que lhe são congênitos sejam abordados e, por corolário, enfrentados corretamente.”[2]
Devolver às formações sociais a orientação pela qual possam enfrentar os problemas centrais é superar o progressismo. Os governos progressistas, sem exceção, giraram em torno de temas subalternos objetivando preservar a dependência econômica e, por mais paradoxal que seja, o desenvolvimento do subdesenvolvimento. É mais fácil iludir com bônus e bolsas famílias do que reprimir com canhões. Acontece que, quando o capital entra numa de suas crises cíclicas, aposta mais na repressão do que nas ilusões das demandas no sentido de Laclau. Ao mesmo tempo, quando começa um caldeamento teórico-prática de base popular em formações sociais de política fetichizada, a aposta é na oposição consentida. A jogada do império é criar uma espécie de duplo vínculo patológico que torna as formações sociais neuróticas no sentido da psicanálise, isto é, perdidas nas falsas antinomias de superfícies que, mantendo a aparência democrática, deixa intocáveis as bases econômicas da dependência, e mantém o jogo político como monopólio das classes dominantes. Entre os corifeus da repressão ostensiva e os fanfarrões dos bônus familiares, há uma grande cumplicidade, um solo comum: a aceitação acrítica da dependência econômica. Os progressistas integram, sem exceção, as classes dominantes. E todos sabem quem são os progressistas.
A vitória da esquerda, portanto, depende da construção do que Gramsci chama Hegemonia, a qual deve ser capaz de escapar, numa linha de fuga para citar Deleuze, do duplo vínculo patológico. Umas das razões da melancolia política na Europa e em certos países da América Latina é a incapacidade da oposição consentida em mobilizar os setores populares que, por serem dotados de percepção arguta dos problemas concretos, não se sentem mais mobilizados para a seara política. Há uma melancolia política ancorada num extremo realismo político. Por isso, apenas partidos de contradição antagônica tem a capacidade de fazer os setores populares sentirem entusiasmo pela política novamente.
Hegemonia, pois, consiste na capacidade de uma classe lograr apoio crescente das classes que estão na mesma situação de classe para produzir a mesma posição de classe, formando um bloco de poder que, pela força que ostenta, impede que qualquer representação se autonomize do projeto popular que a sustenta. Noutras palavras, a hegemonia é a força social que não se aliena mediante a representação de tal sorte que a representação não consegue se apartar da principiologia social que lhe deu origem. Conforme diz Marx:
“A emancipação humana não é realizada senão quando o ser humano reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais e não separe dele essa força social sob a forma de força política”[3]
Um partido é hegemônico quando a sua força política não reúne condições de se isolar e se autonomizar, de forma autorreferente, da força social que lhe deu substância. Se lograr a força social, pela intersecção da classe obreira, intelectuais orgânicos, movimento indígena, movimento campesino, movimento feminista anti-imperialista, o partido torna-se hegemônico, e a vitória é a inquebrantável. Não há como a esfera política se alienar da força social sem que sucumba nas suas pretensões ilegítimas. Nem o partido se insula na pobre autorreferência de interesses privados.
Portanto, a construção de um bloco de poder coeso e unido depende da resolução das contradições no âmbito do povo e das contradições no âmbito do partido.
A diretiva genial de Mao Tsé-Tung, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci e permite resgatar a viva paixão pela igualdade e pela política.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] Para a Sigmund Freud, a neurose se caracteriza pela incapacidade de aprender. O duplo vínculo patológico fecha o horizonte de emancipação de maneira que as formações sociais ficam perdidas em círculos viciosos políticos em que há o simulacro de alternância no poder sendo que o processo político continua monopólio das classes dominantes. Neutraliza-se o antagonismo irreconciliável pelo jogo das meras diferenças. Nesse aspecto, a recepção decolonial da psicanálise é fundamental para compreensão da colonialidade do poder e das manifestações do fascismo. Da mesma forma que o superego cria estruturas reativas, não há colonialidade do poder sem a perpetuação de formas reativas de ser-em-grupo, instaurando diagramas de repressão e de vigilância. O livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, serve de preâmbulo para essas novas escavações teóricas. Pode colaborar, também, para o desvelamento das situações em que o oprimido hospeda o opressor. Fanon usa a noção de mais-valia psíquica ao ir no rastro desse grave problema para os movimentos sociais. Enfim, é possível uma reinvenção decolonial da psicanálise.
[2] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Pensar desde as margens da modernidade: a emergência de novas heterotopias. Ebook. 2ª Ed. Juazeiro: Oxente, 2022, p. 14.
[3] MARX, Karl. Ouvres Philosophiques, Tomo V, Paris: Alfred Costes, 1948, p.202.