Arquivos da Seção: Qui iure vindicet?/Marxismo/Lógica Dialética

Ignota, no entanto brilha

Felina, na desconfiança

Pressentido tudo

No presságio dos pélagos

Em busca de algum signo

Que possa explicar

em breu

em chuva,

narinas e olhos

em fúria

em lâmina, cortando a superfície

para revolver a mina explosiva

abrolhos

Felina, na confiança felina

Sutil e densa

Sempre além

E assim, ela, brilha nela mesma

Quando é tudo

Desde que tudo exploda

Que tudo transcenda

Que tudo seja tudo

Que o bosque seja pássaro

Que a noite seja estrela

Que o rio seja água

Que no paladar a laranja

Lavre a voz adstringente

Lavre a voz luminosa

Lavre a voz na foz no fogo

nos vãos

em pleno dia

buscando a foz

A voz pela voz

Para esplender

Para ferir

Para sangrar.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Sobre o centenário de João Cabral de Melo Neto

No prelúdio da discussão sobre o conceito de natureza em Schelling, Hegel afirma: ”mas as pedras clamam e se suprassumem no espírito”

Neste interstício entre o inorgânico e o orgânico, o aspérrimo mistério da vida a desafiar a atenção aguda dos filósofos, dos poetas e dos cientistas.

A poesia de Cabral é uma inspeção meticulosa, difícil, bruta e afirmativa do clamor das pedras. A pedra não como metáfora da imobilidade, mas da maleabilidade das formas com que a vida em seus meandros e em seus enclaves complexos se materializa. A lição de pedra que resiste ao fluir, mas, ao fluir, a ser maleada.

O recurso à pedra não é um sucumbir ao imediato, mas uma forma de evitar a dispersão das representações vazias em que incorrem com muita facilidade a poesia sofrível de éter, nácar e nenúfar. Contra esta loucura que obsidia a poesia, João Cabral busca elementos nas experiências do enfrentamento com o inóspito, com as situações fronteiriças e, num combate espiritual à guisa de Rimbaud, a afirmação incondicional da vida. A poesia de João Cabral é repassada de um vitalismo. Não o vitalismo biológico de Deleuze nem o vitalismo matemático de Badiou. É um vitalismo periférico, da hulha e do betume, vitalismo a contra-pelo, contra o sol quando cresta demasiado, contra a queda.

O último Heidegger cedeu à possibilidade, que julgava inconveniente, de aproximar o pensamento e a poesia, colocando o poeta como o guardião do aberto. Não é fácil ser o guardião do aberto, pois, implica a assunção do risco. O aberto é o risco, mas, além e aquém da promessa, é o lugar da vida. No aberto, é preciso a força do cante a palo seco:

“O cante a palo seco

é um cante a esmo:

exige ser cantado

com todo o ser aberto;

é um canto que exige

o ser-se ao meio-dia,

que é quando a sombra foge

e não medra a magia”

É na pura lâmina da voz que o poeta sustém com toda força os fios da vida.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Novo Canto Geral

Partir e levar, para outras plagas, o sonho irremido dos imigrantes dos sonhos

E, se pelo espaço, o olor das refregas carregue o céu de obumbras manchas

Cantar e cantar rente ao azul

Surgir dos encantos inapreensíveis pelo afã vão dos silogismos

E escoar rente ao azul pelo milagre do pão e pela balança da justiça a desabar

Nos interstícios do cio da aurora nos interstícios da fúria esperada dos justos

Partir, Partir e Partir sem medo e nada deixar além da ilusão de pertencimento

Para poder pertencer para poder amanhecer rente ao azul

Sargaços marinhos sob as insígnias do que parece não ter retorno

Os signos marinhos bafejam as falésias porque amar é sobrevoar insandecido os promontórios em velocidade infinita

Vergar os campos onde os sumos adstringentes dessuma sob o sol e o cristal ainda por elaborar cutila no pomar da infância

A infância só termina quando nada mais assombra

A infância só começa quando não se teme mais o desvanecer das formas

Tudo o que vive em plenitude merece renascer   

A tua beleza pertence mais a mim do que a ti

Porque é em  mim que ela viceja drástica

Com seus sustos, surtos e arrebatamentos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

O corpo universal da nação

“Mágico que algumas cidades se colam ao céu numa proximidade encantatória, num agasalho que, nos dias nublados e cheios de mormaço, fortalece os liames da vida. No entanto, sempre foi levado a imaginar países cujo infinito é a nota mais peculiar. Pensou, um dia, no menino, diante do desamparo, olhando e procurando algum sinal singrando a infinitude sob o fantasma do fundador da República. Na mais funda inconsistência, ouviu a preleção de um amigo distante, o qual dizia que a clivagem mais importante é da interpretação: pois para entender um sentido vindo do Outro é necessário mudar a si mesmo, e, ao mudar a si, incorporar um sentido no qual a objetividade do conceito se adensa, tornando-se o corpo universal da nação: é o destino das pedras metamórficas e que se constitui, na linha platônica, em participação. Duas clivagens em uma só: a fundação renovada da nação”

O retrato do filósofo na solidão das colônias.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

O contratempo do tempo histórico

Um novo ciclo histórico se inicia mesmo arrastando para o turbilhão da história os problemas mais pungentes. Desde o encontro histórico, em 2002, entre Hu Jintao E George Bush, havia um consenso no imperialismo no sentido de ampliar os interesses comuns, dizia um importante chefe de Estado em 2017, sem explicitar quais seriam.

A singularidade gritante do nosso tempo é a ruptura do consenso imperialista, a derrocada do império norte-americano e a escalada de uma grande guerra comercial entre as potências e os problemas exegéticos que desata e a guerra contra a América Latina e Àfrica . Os tempos difíceis não terminaram. O imperialismo norte-americano sucumbe. A invasão do Capitólio sob os auspícios de Donald Trump simboliza a origem e o fim, reunidos. Às vezes, os símbolos comportam uma pesada materialidade. Os fantasmas de Hamilton, Madison, Jay flutuam inesperadamente extemporâneos. O imperialismo dos EUA não vai sucumbir sem detonar violência, mas o signo EUA já não significa muito.

No meio do torvelinho, um retrovírus que deflagra uma pandemia gerida para o controle e ao extermínio das populações e a pilhagem colonial das riquezas do mundo periférico.

Na América Latina, uma emergência democrática de base e a ausência completa de formas organizativas idôneas a canalizar e expressar essa força social ainda dispersa.

O esgotamento histórico do progressismo vazio e das formas partidárias que se lhe são congênitas. O fim do ciclo medíocre do PT, o triste exaurimento histórico do MAS-IPSP, o desvelamento de que o peronismo é superficial, a resistência hercúlea da Frente Sandinista, a descoberta de que nostalgias passadistas em Cuba é forma de fugir dos problemas, persistentes as figuras de Che e Chavez, por expressarem a vontade inquebrantável de mudar a América Latina, à guisa de um brado de Bolívar: “Si se opone la naturaleza, lucharemos contra ella y haremos que nos obedezca”, e, algumas cintilâncias, livros, jornais, inteligências, meio que perdidas no horizonte de ataque tão forte ao continente similar aos efeitos dos golpes em 64 e 73, no Brasil e Chile, sem saber que o suposto saber antigo se esfuma, na crise geral do sectarismo e do oportunismo, e a nova sequência que se desenha no mais sombrio tempo de interregno.

No núcleo, a amizade entre filósofos, o jornalismo radical, a consolidação do marxismo ortodoxo, na denúncia das formas de poder necrófilo que se arroga o direito de usurpar riquezas e eliminar parcela da humanidade e a necessidade imperiosa de reinventar o direito público internacional e o regresso às formas partidárias ortodoxas de contradição antagônica.

Veremos o que pode ser o signo China e o desafio histórico que recai sobre Xi Jinping e Wang Huning.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

Pequena ode a João Cabral, roubada a Erza Pound

Se te repudiei antes, João Cabral, é porque era cego
Não sabia o vinagre dessas pedras, cabras
da força do aço do osso inquebrantável
mesmo quando vacilam ou bruxuleiam os tendões de todo nordeste
Agora que os olhos se me abriram
vejo a grandeza pétrea, truncada e plástica de tuas palavras
Vejo a agonia e a força que sustentam os canaviais vencendo
a catadura rígida dos senhores sem engenho
Vejo o que não via: a resistência tenaz que abriga teus versos

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

A CONSTITUIÇÃO É O NOME DE QUÊ?

A constituição não é um significante primeiro, mas deve ser considerada como tal na medida em que instaura um campo de ações linguísticas possíveis. Aqui já se aponta para o caráter performático da constituição. A perfomatividade não pode ser confundida com um gesto vazio, mas como abertura de mundos possíveis. A constituição, como livro, para lembrar Heidegger, já é um vir-a-ser-mundo.

A constituição não se reduz a uma forma lógica desprovidada de materialidade. Há muito se tenta equacionar a relação entre normalidade e normatividade. Se toda normatividade implica na criação de esquemas e categorias, no rastro delas, está a constância de certos fatos, portadores da normatividade. A normatividade ancora-se na faticidade. Essa relação transporta-se para dentro da normatividade que, imbuída da faticidade, não se mumifica numa racionalidade abstrata e a si, num céu de conceitos a priori, nem também se dispersa a ponto de uma facticidade qualquer ou construída falaciosamente possa corroer a tessitura textual e intertextual do direito.

A faticidade juridicamente relevante é aquela que a normatividade agasalha, não uma suposta opinião publicada por órgãos de imprensa comprometidos com as classes dominantes. A dialética entre norma e fato não deve ser operacionalizada para que haja uma corrosão do texto nem para produzir uma normatização apócrifa dos fatos, como diz Müller, mas, para permitir que o trabalho do texto, que se dá no insterstício do sujeito e do objeto, se produza superando os obstáculos hermenêuticos numa espiral interpretativa voltada à produção de sentidos partilháveis no comum.(29)

A constituição como evento se revela como poesia, isto é, como indicação não de um dado naturalizado, mas como abertura a mundos possíveis. A constituição, como ato simbólico, é a tentativa de superar contradições, por isso, não se enrijece em significados fixos nem se dispersa em sentidos frouxos, mas abre um campo analógico em que a luta pelos sentidos se produz.

Manter acessa a gênese da constituição é crucial para preservação do sentido literal possível. Na medida em que o texto se produziu no trabalho coletivo e social, nele mesmo, na sua visibilidade mesma, está presente a luta de várias gerações, lutas tingidas de sofrimentos intensos, de gritos e martírios do povo, das ‘raças’ lançadas em zonas de não ser. Como ler a constituição sem ver no seu rastro as expectativas frustradas dos povos negros e indígenas? A constituição não encobre o outro, mas, por força da instauração de uma discordância concórdia, permite que o outro negado mostre seu rosto histórico. É o seu sentido. Não obstante, a colonialidade do poder impede que a constituição seja, como diz um escritor edificante, um novo começo. De que começo se trata? Existe um começo? Como falar de começo sem atentar para uma tradição fundada na exceção e na violência? Como falar de começo sem atentar para a necessidade de remover os obstáculos hermenêuticos ao fazer da Constituição?

Na modernidade periférica, fendida em espaço de ser e espaço de não-ser, a igualdade, mesmo a formal, não se concretiza, e uma antinomia gritante se apresenta: a declaração formal de igualdade e práticas violentas de exclusão territorial, física e simbólica. Eis uma antinomia que mostra o nosso começo: nos territórios nutridos pela mais-valia, a lei; nos territórios explorados, a violência mais bruta.

A colonialidade, diz Fanon, compartimenta o espaço, grava os seres de acordo com a cor da pele, submete-os a uma exclusão perversa e não demonstra racionalidade: é um exercício de poder no estado bruto.

É preciso retomar com vigor a ideia de Müller de que a textificação é faca de dois gumes que pode ser canalizada tanto para a colonização dos sentidos quanto para construção correta dos sentidos sempre aberta à alteridade. Como interpretar o enunciado de Muller de que os textos se vingam? Invocamos aqui Engels, discípulo fiel de Hegel, que, no Anti-Durign, afirma: “Os proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na aparência, que não se circunscreva à orbita do Estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-se extensiva a vida social e econômica.” (30)

Colher a constituição pela palavra significa estabelecer uma relação dialética entre experimentação e interpretação: instaurar, lembrando André Jean-Arnaud, uma prática jurídica social entendida como a ‘’atividade social que, quando confrontada ao processo de produção material e ao princípio de luta de classes, procura transformar as relações sociais regidas pelo direito em vigor.”(31)

Se a colonialidade se opõe à emergência do trabalho do texto enquanto instância que se exprime para além do subjetivismo e do objetivismo, devemos repetir o gesto de Espinosa. No tratado teológico-político, diante da apropriação privada da interpretação bíblica, instaura um conflito de interpretação (32) ao criar um método que permita a qualquer um encontrar, no trabalho do texto, o falar comum em que se estriba a produção dos sentidos.

O processo de interpretação e o processo de controle da aplicação do direito não pode ser limitado às instâncias de poder que, não raro, desgarram-se da razão comum e necessária, sobrecodificam sentidos hegemônicos sobre o texto.

Neste cruzamento, o direito é interpelado pela política. No Brasil, é preciso, mais do nunca, insistir na distinção, desenvolvida com Jacques Ranciere, entre poder e política. Existem duas formas de contar a comunidade. A primeira só conta os grupos construídos e erigidos por diferenças de nascimento, raça e gênero, e de funções e lugares que constituem o corpo social. A segunda envolve a parte de parte alguma, a inscrição política dos não contados (33). O poder colonial é uma engrenagem do primeiro tipo. Nessa lógica, os lugares estão previamente determinados pela ascendência de forma que toda a institucionalidade é parasitada, vergando-se aos interesses das classes dominantes.

A assertiva de Umberto Eco de que um texto quando se desprende das condições de sua emissão flutua no vácuo  é errônea. Primeiro, porque um texto sempre traz junto a si, ainda que de forma tênue, rastros das condições em que foi gestado. Segundo, porque todo texto, ao ser emitido, entra num horizonte indeclinável que determina e condiciona a sua recepção. Abundam exemplos na literatura. A obra-prima Grande Sertão: Veredas, que criou um novo idioma dentro do próprio idioma, foi recepcionada como uma mera novela picaresca de bandos de desordeiros em conflitos. Avalovara, de Osman Lins, é tão inovadora que é até hoje, absurdamente, ignorada. É nessa problemática que surge a teoria literária da recepção.

A estética da recepção, como corrente literária, busca justamente compreender o modo como um texto produz seus efeitos não num sentido mecânico como a palavra possa sugerir, mas como o texto, na medida mesma em que estrutura de forma a priori sua própria leitura, cria mundos. O fato de a estética da recepção ter enfatizado a importância da subjetividade na recepção do texto não sucumbe ao psicologismo nem confere importância exagerada à subjetividade que, supostamente, seria o alfa e o ômega da interpretação (34).

Os efeitos do texto são prefigurados pelo próprio texto ainda que a participação da subjetividade que o recepciona seja decisiva nesse papel. Não bastasse isso, nenhuma leitura ocorre fora da mediação de um horizonte de expectativa no qual os textos vão se deparar e ou brilhar na sua grandeza ou, muitas vezes, naufragar tristemente. Quantos autores geniais criaram obras que, de tão ricas, foram incompreendidas? Outras quantas de tão desafiadoras, de forma silente, foram censuradas?

Gadamer define horizonte como o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. O conceito não é satisfatório porque incide num espontaneísmo que ignora o influxo das lutas políticas e das lutas pelas palavras no embater social e que, no fundo, as grandes lutas de classe é o desacordo acerca da percepção da realidade. Karatani quando criou o conceito de Paralaxe quer mostrar que os conflitos de interpretação já demonstram que o real é um topos em que o futuro das formações sociais se desenha e se desenrola (35).  O próprio conflito de interpretação revela a não coincidência do real consigo mesmo e a abertura mesma dos possíveis. Podemos definir horizonte como regime de visibilidade e de invisibilidade instaurado pelas relações de forças que integram qualquer formação marcada pelas lutas de classes. O horizonte de expectativa define, de forma prévia, o que é visível e o que é invisível.

Muitas vezes o regime de invisibilidade é de forma sutil; outras, de forma violenta. Tudo com o escopo de impedir a elucidação das formas sociais e das mazelas que lhe são evidentes. Nessa cumeada, qual o horizonte de expectativa das constituições na América Latina? No que aqui importa, releva que as constituições latino-americanas são refertas em direitos sociais, criaram um sistema protetivo do trabalho e seguridade social ampla envolvendo previdência social, saúde e assistência momentânea até o debelar, por políticas públicas, da pobreza e das condições miseráveis em que vive, infeliz e tragicamente, parcela relevante de latino-americanos como nós num continente de riquezas inestimáveis. Como tais constituições são recepcionadas em países em que o conceito de nação é restrito às oligarquias brancas com a exclusão, mediante permanente estado de exceção, dos povos que nos formam, constitui problema fundamental?

Ocorre que tamanha projeção generosa se depara com uma montanha íngreme- a colonialidade do poder- cuja superação requer o esforço descomunal de várias gerações. A colonialidade estabelece várias divisões desde a divisão entre o trabalho manual – que é, erroneamente, objeto de desprezo e o trabalho intelectual: ocorre a racialização das atividades manuais; a divisão sexual na exploração do trabalho feminino: a classe operária é tendencialmente feminina como forma de precarização dos salários; a divisão etária, suprimindo das crianças o direito de desenvolver sua potência para serem exploradas como mão-de-obra escrava; a violência contra os gêneros diferentes. A foraclusão da questão de gênero e desatar da violência que deflagra.

 No plano político, o sistema é tão deficiente que impede, salvo raras exceções, a emergência de lideranças populares; o próprio termo populismo é usado de forma distorcida para lançar pecha em quem se arvora com coragem em defensor dos povos; os políticos e os intelectuais que entendem e colocam às claras e com veemência a questão colonial são objetos de campanhas intensas de estigmatização. No plano ideológico, a branquidão se vê como o estuário das qualidades universais da humanidade e, os outros, são bárbaros cujo direito à vida é desprezado e, quando demonstram algum talento exponencial, são rechaçados brutalmente. A colonialidade constitui um horizonte de expectativa contrario às projeções constitucionais.

A colonialidade do poder é a grande montanha que temos de vencer e é urgente. Para superar isso, somente colhendo a constituição pela palavra, isto é, pela torção político-hermenêutica que coloque o comum acima da branquidão como propriedade.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


  • MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2013. É preciso entender a normatização apócrifa em sentido mais amplo do que proposto por Müller. No processo penal, a apropriação privada da linguagem permite que fatos atípicos sejam qualificados como típicos, isto é, permite a normatização apócrifa dos fatos. Daí a importância crucial da epistemologia da prova.
  1. ENGELS, Friedrich. Anti-duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 89
  2. ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Porte Alegre: SAFE, 1991, p. 163.
  3. Sobre o conflito de interpretação consultar: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. Nesse livro, dentre tantas novidades, inaugura-se, no Brasil, a hermenêutica jurídica analógica como forma de combater a afasia linguística que nos assola hoje.
  4. RANCIÈRE, Jacques. Nas margens do político. Lisboa: KKYM, 2014, 146-7.
  5. WARNING, Rainer: Estética de la recepción. Madrid: La balsa de la Medusa Visor, 1989. Coleção em que os conceitos centrais da estética da recepção são desenvolvidos.
  6. KARATANI, Kojin. Transcritique: On Kant and Marx. London: The MIT Press, 2003.
  7. Capítulo 1.4 da Obra Pensar Desde as Margens da Modernidade: A Emergência de Novas Heterotopias, ebook, Editora Oxente, 2022.

Ao nosso Partido

Se trapos e farpas bruxuleiam no desconsolo
O partido urde o conjunto inabalável
Se o trigo demora e a chuva tarda
Os rios se turvam
Os oceanos se fecham
E os astros se despenham perdidos
O partido organiza as oníricas projeções
e as insere em diagramas fecundos
Se a vindima não viça
E as charruas travam sobre o cultivo
Não brota no pão o fogo vivo do trabalho
E nos fornos em convulsão a brasa lenta
Não fornece o dia necessário
Se nas casas de farinhas
Nos vergéis sonhados pelo camponês pela camponesa
Nos engenhos o mel não brota
O nosso partido organiza o conjunto inabalável
A beleza perdida
Os choros pungentes
O nosso partido sabe que não há justificação
E organiza o conjunto inabalável
e fecunda o tempo
e faz de cada vinha
de cada fábrica
o redivivo sonho inabalável dos que, no passado,
não puderam existir
e engendra o alimento
de todas as manhãs
e fecunda o calor
de todas as noites

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

HEGEL

Em que infância adormece teu vigor de filósofo
Abraçando, voraz, a nado, todas as contradições
Que pululam neste vergel
Nesses sonhos que pervagam sobre extensões ínvias e ignotas

Pude um dia saber-te
E me vi no aberto, para o aberto
E lanças lancinantes
Golpes pérfidos
Abraços delicados
Sonhos de pureza golpearam-me
E desconfie de sublimações
Quis mesmo foi o corpo no solene de se esprair sobre o infinito

O teu espírito em movimento saindo das épocas distantes
Juntando-se aos mais próximos acontecimentos
Jornais, livros e tua fome de tudo abarcar
Desde a chama do cigarro à elipse dos planetas
Em que infância adquiriu tanta coragem
Tanta vulnerabilidade
Para poder provar da dor do saber
E do vinagre de, em plena revolução,
Ver que, na mais imperfeita das trajetórias,
Pode emergir uma grave manhã
Sem trombetas e sem alarde
Puro instrumento cortante
tropas calcando aos pés flores,
Derruindo sonhos pueris
Esgarçando esperanças vãs
Para poder fazer nuvem chuva densa
Compacta tempestade
Furações que fulminam os campos sem esperança
Para conferir-lhes o amanho do pastor
O sonho do profeta amante do silêncio
Em pleno deserto
Em peleja pelo equilíbrio
Pela justa medida
Nem pastor do ser, nem sentilena do vazio,
Mas aquele que, sob as mais prementes circunstâncias,
Tenta cingir as mais complexas constelações do presente
Júpiter, Netuno, riachos, cafezais,
Sonhando o deus do feldspato, ígneas possibilidade do sol
No meio-dia, na meia-noite, na meia-lua
Nos extremos das mil milhas, jardas, alqueires de solidão
Pousando na mão, na forma vã dos dias sem arautos
Não são os anos, os séculos dispersos?
Que fio os atravessa dando-lhes fibra e têmpera?
Que razão fulgura tecendo-os numa razão sempiterna?
Em que infância mora o teu dissabor
Por sensaborias e edificantes palavras
Quisera mesmo o profeta de verbo adunco, de intrincadas sentenças,
Emaranhados enunciados onde se possa refulgir as vastas manhãs dos descaminhos humanos transitando até a ágora universal onde bicho, planta, sargaço, limo,
Engenho, motor, ladrilhos, sobrados, trilhos e casas guardem um pouco do esplendor do sol
Foi auscultar e viu que só no fundo é possível brotar águas nuas
Quão estreita a via por onde a verdade aflora
Por isso, pergunto em que infância homizia-se teu vigor de filósofo?
Foste velho desde a infância mesmo jovem
Se tudo prorrompeu é porque te guardaste do riso fácil,
Dos arruídos solenes
Quão firme esteve em amar o difícil
Porque, se do átimo do agora, colhemos apenas o tropel inútil
A mim ensinou que é preciso amar o longe
na fenomenologia dos povos, no espírito encarnado
na via crucis,
na via de sempre renascer nas sublimes redenções dos povos em Cochabamba,
Em Pequim
Ou em um templo em Constantinopla ou transitar de novo qualquer embarcação fenícia
Em que velhice encontro a infância em que te torna mais do que um nome
Uma estrela, um amigo, um irmão, uma estrada
Em que cabe tudo quanto pude conceber, sentir, pensar
Em que rincão, em que revolução encontro o encontro
A enseada de tantas estações,
Pois melhor do que ter descoberto um outro planeta
Foi ter assentado o promontório de tanta comunhão

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

PANDEMIA, DILEMAS TRÁGICOS, DIALÉTICA E LINHA DE MASSA

A René Zavaleta e a Zhou Enlai

“Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens do que na terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só uma criatura humana?” Rei Édipo, Sófocles

O PESO DO SÉCULO
A Zhou Enlai
Diáfana presença no ar de chumbo
Mais sutil do que vento
Hidráulico, sabe a tempestade
Sabe dos campos minados onde se emaranham passado e porvir
Das longas marchas onde o possível e o fel se intricam
Pudera eu ver-te, camarada;
Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;
Nos teus ombros de leveza
Pesa a dor do século
aprendi que, no mais emaranhado dos cafarnauns, tua presença diáfana trouxe
a cã calma, a tez da aurora, o júbilo dos povos,
Pudera eu ver-te, camarada
Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;

É preciso perguntar que diagrama de poder uma teoria secretamente secreta. A ciência econômica, na medida em que se esvazia em números abstratos, ao mesmo tempo, de forma sutil, alimenta políticas voltadas ao controle, conforme dizia Battaille, do fluxo de energia sobre a terra e, outrossim, analisando as várias pressões exercidas pela ação humana, invoca o topos da escassez dos recursos e, por corolário, justifica o controle das populações.

Marx sempre criticou o topos retórico da escassez dos recursos que sempre é esgrimido para justificar dilemas trágicos inexistentes, o fatalismo inexistente das desigualdades e o controle das populações. Na verdade, o topos da escassez é a forma com que a economia burguesa clássica legitima um modo de produção que cria uma superpopulação relativa, entregue à própria sorte, deserdada do comum e desterrada do sistema de necessidades, vogando à sombra do fantasma de Malthus, perecendo por fome e por desemprego. Malthus defendia que os recursos crescem em proporção aritmética e as populações avançam em proporção geométrica. Dessa forma, os recursos disponíveis se tornariam escassos, postulando as mais variadas formas de controle das populações, desde a doença à guerra.

O topos da escassez dos recursos serve para evitar o enfrentamento do problema central: o funcionamento do modo de produção que, forjado na lógica da extração de mais-trabalho e mais-valia, leva ao esgarçamento do metabolismo ser humano e natureza e produz uma superpopulação errante e desprovida dos direitos materiais.

É necessário verificar as relações entre biologia e as ciências sociais. Na verdade, mais do que nunca é preciso fazer a genealogia da incursão biologicista nas ciências sociais. A sociologia, para além do monismo epistemológico pelo qual os modelos das ciências naturais serviriam de paradigma para as ciências sociais, na sua gênese, sofreu o desvio biologicista por Spencer e pela incorporação de um darwinismo social mediante o qual as lancinantes desigualdades encontrariam amparo no argumento de que prevalece o mais forte. Engels, em carta, averba:

“Toda a doutrina darwinista da luta pela vida é simplesmente a transposição da sociedade na natureza animada da doutrina de Hobbes sobre o bellum omnium contra omnes [ a guerra de todos contra todos], a doutrina econômico-burguesa da concorrência, juntas à teoria demográfica de Malthus”

O modo como a pandemia está sendo gestada conjuga todos esses elementos numa manifestação funesta, tétrica e sombria do controle das populações. A pandemia, então, tem sido usada e mobilizada para arruinar a economia industrial de certos países, mergulhando num caos que, a longo prazo, pela via do vírus ou da destruição econômica, desemboca no controle das populações, isto é, do corte necrófilo entre quem merece e quem não merece viver, à sombra da tétrica necrofilia do poder. A covid-19, por ser retrovírus, avança em proporção geométrica, e já se está na quinta onda, e, no horizonte sombrio, várias ondas podem vir.

Marx, em carta a Kugelmann, mostra que o trabalho vivo é a fonte criadora de valor ao conjeturar sobre os efeitos de uma greve prolongada e indeterminada: o que aconteceria com um país se os trabalhadores em geral deixassem de laborar por um período de um ano? A nação pereceria, conclui Marx .

A pandemia enquanto interrupção da atividade econômica industrial pode gerar um cenário de massacre dos povos. Trata-se de um jogo de soma zero em que todas as escolhas, mesmo múltiplas, representam a mesma escolha de fundo: a da valorização do valor futuro da forma-dinheiro destacada da forma-mercadoria. É necessário, seguindo a linha de demarcação da dialética, a linha de massa, coordenar de forma eficaz e combinada a manutenção da atividade econômica e o controle sanitário do vírus. Sem essa coordenação, o mesmo cenário, ainda que por vias oblíquas- vírus- ou concêntricas – vírus e destruição econômica, vai se desenhar sombrio: massacre de vidas humanas e populações.

A questão chave é, então, coordenar o retorno à atividade industrial e o controle da pandemia mediante regras sanitárias rígidas. Contra o jogo de soma zero, onde todos os lances expressam, com variações, a mesma escolha de fundo, como num lance teórico de Kierkegaard, escolher a própria escolha para poder produzir um mundo em que a consigna “o ser se diz de várias maneiras” seja a força motriz de um modo de produção comunitário.

Reescrevendo a divisa de Tupac Katari: resistiremos e seremos milhões.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lettres sur les sciences de la nature (et les mathématiques. Paris: Éditions Sociales, 1973, p.85. Não obstante, tiveram que palmilhar um conflito de interpretação em relação a Darwin e, somente depois de um longo debate, entenderam que, em Darwin, a evolução não é a ascendência do mais forte, mas um longo processo pelo qual as espécies criativamente produzem uma homeostase tensa com a biosfera: DARWIN, Charles. The origin of species. Hertfordshire: Wordsworth editions, 1998. Nas cartas Marx e Engels revelam o evolver da compreensão de Darwin.
MARX, Karl. Lettres à Kugelmann. Paris: Editions Sociales, 1930, p. 99-100, carta de julho de 1868.