Arquivos da Seção: Qui iure vindicet?/Marxismo/Lógica Dialética
A Glauber Rocha
O papel do artista é convocar um povo ainda que inexistente, assim gritavam os filmes de Glauber Rocha. O vir à palavra que, segundo os gregos, conforma o homem nada diz aos rostos sofridos que, numa linguagem gutural, expõem ao ser os estertores das formações sociais excludentes. Glauber Rocha sofria a ausência do povo e a dispersão de sua força viva na alienação religiosa e política. Por isso, entremeiam-se nos seus filmes os rostos encarquilhados, rostos sulcados pelo martírio secular que a colônia impinge, rostos que no silêncio gritam e reverberam na ira santa de Corisco, na conversão de António das Mortes. Glauber Rocha sabia que o papel do artista é suster com toda fibra e têmpera o povo por vir, espreitando nos fluxos a virtualidade da política redentora.
Glauber Rocha: um vulcânico ser em combustão, arrancando da terra pedras metamórficas com que arregimentar o poema-força. Um guerreiro com o vigor do sertão: enorme, agreste, inóspito e exuberante, árido e florescente. Um guerreiro no deserto das deserções e dos opróbrios, que sempre comungam, mas podendo figurar o grito que pressagia a coragem da justiça : “mais fortes são os poderes do povo”.
Glauber Rocha: uma câmera e uma ideia: filme-charrua colhendo as contradições ainda em gestação para revolutear o ar e o mar e a água e o futuro.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
Quantos oceanos guardas em tua existência
Sobre o mar que te habita
Quantos oceanos guardas em tua existência
Para sustentar-te em pleno revoo
E poder confiar em algum fundo liame
Entre as longuras mais vastas
Vime, fios, tecidos, tranças
Qualquer linha infinita onde pousas
E me olhas assustada
Infinitamente bonita
E calma
Como se repousasse sobre o medo
E pousasse sobre a própria tez
E me falas de mar
Eu posso ser ainda um eco
Que não reboa em nenhum lugar
A não ser em ti
Reboar em ti
Em tuas lendas
Em teus espaços
Em tua lua
Para estender ainda mais
Ainda mais além
No aquém perdido
Fundar a vida
A vida no mar revolto
No ar desalinhado
No chumbo das colônias
Declaro-me o teu poeta
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
O DILEMA DA PANDEMIA
No que concerne à pandemia, três ações são complementares e necessárias:
1) resolver o dilema do prisioneiro através do retorno à atividade econômica industrial e o controle sanitário dos vírus;
A suspensão da atividade econômica e o mero retorno da atividade econômica sem controle sanitário do vírus são variações falsas de um problema que deve abordado de maneira ampla.
“Marx, em carta a Kugelmann, mostra que o trabalho vivo é a fonte criadora de valor ao conjeturar sobre os efeitos de uma greve prolongada e indeterminada: o que aconteceria com um país se os trabalhadores em geral deixassem de laborar por um período de um ano? A nação pereceria, conclui Marx.”
2) para depois, encontrar o princípio da replicação do vírus, pois, dos estudos do materialismo dialético sobre o ser genérico e o estar em homeostase com a disposição desse ser, depreende-se a natureza monstruosa do coronavírus (retrovírus), o qual configura uma verdadeira bomba biológica na medida em que, avançando em proporção geométrica, destrói os mecanismos do ser genérico manter-se em vida. Já tínhamos destacado que nova variantes irão surgir.
e, no meio do torvelinho, 3) o risco no plano interno e externo, decorrente da totalidade numérica prevista pelo jogo de soma zero:
“Trata-se de um jogo de soma zero em que todas as escolhas, mesmo múltiplas, representam a mesma escolha de fundo: a da valorização do valor futuro da forma-dinheiro destacada da forma-mercadoria”
No plano interno, a desindustrialização e maior financeirização leva ao risco da falência; Na América Latina, muitos estão entregando as nações aos bancos internacionais.
No plano externo, as flutuações geram instabilidade para o sistema monetário e o risco de países sem parque industrial irem à falência.
O que caracteriza o capitalismo na fase monopolista é a exportações de capitais: o capital não tem pátria e, ao circular na sua forma autorreferente mediante exportação, busca a subjugação colonial dos povos. O livro Por Uma Renovação Marxista da Teoria da Dependência descreve essa tendência de forma completa e, ainda que de forma elíptica, indica caminhos de liberdade.
Todos os caminhos, sem a intervenção nacionalista-popular, levam ao controle das populações e a construção de hegemonias.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
OS DESAFIOS DO MARXISMO NA AMÉRICA
Marx, pela influência do legado do idealismo alemão, não sucumbiu ao positivismo que hipostasia os fatos na medida em que os capta de forma desajuntada e propôs uma nova ciência (realizando o sonho de Vico).
As mistificações que pairam sobre Marx não decorrem somente do fracasso da apreensão de uma obra monumental que deve ser estudada linha a linha com rigor e profundo amor, mas do medo de que haja uma compreensão no nível cotidiano das reais relações do modo de produção capitalista.
Lukacs, um grande continuador, em Histoire et Conscience de Classe, mostra que a ciência burguesa fixa em coisas sólidas os efeitos das relações humanas em movimento. Apreender o movimento, ou para usar Hegel, o fundamento implica em mostrar como as antinomias e as contradições só são apreendidas quando se solicita a totalidade aberta.
Todo discurso ideológico, ao contrário do que se diz, não opera por lacunas. Ao revés, o discurso ideológico, ao reificar a realidade, precisa ocultar as lacunas; precisar produzir a conta-por-um para rechaçar a aparição que desestabiliza toda a estrutura.
A ideologia da técnica faz do saber econômico um lugar ínvio à lógica democrática que rechaça o argumento da autoridade ou da especialização reservada. Destina-se a economia aos reprodutores do capital, passando a ser o lugar de uma mística cujo acesso é exclusivo dos iniciados na linguagem mística, inacessível, teoricamente inconsistente, mas cheia de efeitos retóricos, produzindo o efeito de verossimilhança de um saber coerente e verdadeiro, apenas no efeito retórico.
A renovação marxista da teoria da dependência ainda está por fazer em seus níveis mais profundos. A América Latina, mesmo inserindo-se no capitalismo mundial integrado, teve experiências históricas cuja leitura sintomal colabora decisivamente para consolidação de modelos econômicos salutares e igualitários. E aqui não foram criações cerebrinas, mas experiências históricas de formações sociais, a exemplo do que ocorreu no Brasil, do período Vargas de 30 até 45, e na Argentina, no período de Juan Peron, nas décadas de 40 e 50, do século passado.
São tentativas de uma formação social adquirir autonomia que merecem um balanço histórico na linha althusseriana da leitura sintomal.
Getúlio Vargas desenvolveu a linha da industrialização com substituição de importações e trouxe muitas questões em termos de problematização da dependência. Juan Peron, por sua vez, tangenciou outra dimensão da questão.
Vale dizer que só por comodismo colocamos épocas históricas sob o signo dos mandatários do poder. Naquele momento, de muitas contradições, inclusive repressão política, foram as formações sociais no seu todo, incluídos a classe operária e os intelectuais orgânicos, que, na luta, fizeram avançar num processo dialético profundo. Não é fácil ser marxista.
Em 1964, o Brasil vivia uma intensa criatividade e efervescência política: a teoria da dependência e o pujante movimento operário. O Brasil entrava em uma crescente consciência de si mesmo impulsionada contra os arranjos estruturais da propriedade e do racismo. Foi esse movimento pujante que o golpe interrompeu e cujas reverberações ainda povoam o imaginário, as institucionalidade e o cotidiano hoje. Foi essa vulcânica aparição do novo vivo que foi interrompida. Nesse sentido, como dizia Marx, as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos como um pesadelo. Pesadelo que tentou conjurar os signos do novo que nos cabe captar e levar à frente com a luta pela ressurreição das lutas fracassadas em cujas fulgurações as lágrimas dos torturados nos interpelam. O Brasil reprimido em 1964 precisa ser reativado na nossa práxis.
Marx afirma:
“Um trabalhador, na usina de algodão, produz somente algodão? Não. Produz capital”
Se, entre mercadorias heterogêneas, não há como recortar um elemento comum a não ser o trabalho e, vincando a distinção entre a determinação do valor pelo salário e a determinação do valor pelo trabalho objetivado, a criação de valor tem por fonte primacial o trabalho. Adam Smith já salientava o trabalho como fonte da riqueza.
Tal descoberta, para além de qualquer sentimentalismo, constitui um marco científico indeclinável. E, considerando a heterogeneidade estrutural da América Latina, a renovação da teria da dependência ainda está no início. Os problemas emergentes da dependência e da busca das formações sociais adquirirem personalidade histórica permite ver os problemas econômicos de uma maneira diversa da economia burguesa e realizar uma torsão teórica inovadora.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
O FIM MELANCÓLICO DO REVISIONISMO TEORICISTA E A RESSUREIÇÃO DO MARXISMO ORTODOXO
A Louis Althusser, a Alain Badiou, a Jacques Rancière e a Jean Hyppolite
O que entender pelo revisionismo? Uma tentativa de adaptação do marxismo às novas condições de maneira a afirmar que os textos do marxismo autêntico estavam extemporâneos à realidade, exigindo atualização? Ou uma forma sutil de capitulação sob a forma teoricista?
É preciso entender o gesto de Louis Althusser, quando diante do desastre obscuro chamado Stalin, reivindicava a coerência interna do discurso marxista. É um gesto cujo significado só é suscetível de compreensão quando articulado às injunções históricas, gesto cuja profundidade apenas agora podemos entender em sua magnitude histórica. Em Ler o Capital afirma:
“Nós devemos, em todo rigor, ir mais longe e refutar a assimilação, mais ou menos indireta, da teoria marxista da história ao modelo empirista de uma hipótese aleatória que precisaria atender a verificação da prática política histórica para poder afirmar a verdade. Não é a prática histórica posterior que pode dar ao conhecimento produzido por Marx o título de conhecimento. É a prática teórica de Marx que fornece o valor demonstrativo, o título de cientificidade das formas que assegura a produção desses conhecimentos.”
Não se trata de aqui de proteger a teoria marxista das práticas políticas feitas em seu nome, mas de navegar contra corrente e, contra tudo e contra todos, afirmar a imanência da verdade do marxismo justamente para poder aferir a validade das práticas políticas históricas, sem qualquer submissão às ilusões linguísticas frágeis. Resulta fácil pelas categorias marxistas avaliar se uma prática, ainda que em nome do marxismo, adere ou não à verdade dos enunciados de Marx e Engels.
O revisionismo não tem sentido histórico, pois, não configura o que Hegel chama ordem na contingência. Dois exemplos desse revisionismo capitulador ultrapassado: Negri e Fredric Jameson.
A tese de Negri, apenas uma, em suas variações tediosas, é que a informatização do trabalho muda a própria natureza do trabalho e que a forma atual do trabalho é o intelecto geral. À sociedade-fábrica Negri opõe novas formas de organização que estariam fora do controle do capital e engendrariam novas subjetividades. A forma informatizada do trabalho, segundo as elucubrações do autor, tornaria o capital algo obsoleto, incapaz de organizar a produção e, por fim, inexistente.
Afirma Negri:
“Mas por que, hoje, a dialética do desenvolvimento capitalista historicamente reconhecida se rompeu? A resposta repousa sobre uma asserção fenomenologicamente fundada: no momento em que o capital cede o comando do trabalho produtivo cooperador ao operário social, ele não é mais capaz de planejar o desenvolvimento. A nova subjetividade não pode mais ser circunscrita nos termos do desenvolvimento capitalista, entendida como movimento dialeticamente realizado. A recusa das formas velhas e novas da exploração capitalista abre espaços nos quais a cooperação do trabalho vivo pode exprimir autonomamente as próprias capacidades produtivas. E, por mais que o comando possa renovar as suas formas , a auto-valorização separa-se ativamente dele. A função organizativa do comando capitalista torna-se, assim cada vez, mais parasitária. A reprodução da vida social não depende mais do capital.”
O que Marx entende por intelecto geral? O conceito de intelecto geral consta da parte de O Grundrisse sobre as máquinas. Intelecto geral nada mais é do que a subsunção do conhecimento científico, enquanto capaz de produzir tecnologia, às necessidades de autovalorização do capital. Não é libertação que se vê, mas a adaptação da técnica, enquanto única forma de saber legitimado, à lógica da produção de mais-valia. Nesse contexto, a tese de Negri, justamente por ser epistemologicamente errônea, é ontologicamente inadequada. O que se vislumbra, no atual estágio do capitalismo, é uma disjunção extrema entre o capitalismo financeiro e o capital industrial a gerar graves problemas sócio-econômicos: o capital abstrato do centro capitalista guarda a necessidade de subsunção de formas arcaicas de produção-trabalho escravo, trabalho infantil etc- em concomitância com formas fluidas de relação de trabalho, no plano interno e externo. A profecia de Negri é uma bolha teórica que flutua no vácuo. Enfim, é um problema de hermenêutica de Marx.
Quanto a Fredric Jameson, na linha da escola de Frankurt, segue a chamada virada cultural a ponto de defender que produção da cultura é fenômeno econômico central da globalização. Afirma:
“Assim, qualquer nova teoria abrangente do capitalismo financeiro precisará se estender para incluir o domínio expandido da produção cultural a fim de mapear seus efeitos: de fato, a produção e o consumo culturais de massa- a par com a globalização e com as novas tecnologias de informação- são tão profundamente econômicos e tão totalmente integrados em seu sistema generalizado de mercantilização quanto as outras áreas produtivas do capitalismo tardio’’
Nessa questão, devemos ser ortodoxo: a economia determina em última instância e a palavra globalização não substitui a tão atual palavra imperialismo. Gramsci sabia do papel que as metáforas cumprem na ciência. Logo percebeu o risco que a metáfora da infraestrutura e da superestrutura implicavam para a dialética e, num lance inusitado, removeu tudo quanto de mecanicismo imbuía aquelas metáforas. Devemos recusar a virada cultural. Chaplin é mais profundo: o libelo de Tempos Modernos não é a crítica à indústria, mas o fato de que, na divisão do trabalho em que cada trabalhador está vinculado a mesma operação parcial, o trabalho perde o caráter de arte.
Bem melhor a Fredric Jameson que o seu narcisismo fosse o do absoluto, o qual atribui injustamente a Hegel num livro menor contra Hegel. E talvez lendo as passagens de O Grundrisse- em que Marx fala da alienação do saber sob a tematização abstrata da linguagem- encontre um bom espelho.
Qualquer teoria abrangente do imperialismo não pode abdicar de Lenin. E, se o capitalismo atual busca camuflar-se sob a forma de políticas falsas de inclusão, devemos ter a coragem de bradar com Alain Badiou: é melhor ser desprezado do que ser reconhecido porque, nesse estado do capital autorreferente, ninguém é reconhecido se não for para ocultar e legitimar formas perversas de alienação ou destruição do outro.
Não renunciamos ao comunismo nem ao marxismo ortodoxo. E, se o marxismo está vivo, foi porque Althusser, na mais absoluta premência, souber preservar vivos os motivos que moveram Marx.
No original: “Nous devons em toute rigueur aller plus loin, et refuser d’assimiler plus ou moins indirectamente la théorie marxiste de l’histoire au modele empiriste d’une ‘hypothese’ aléatoire, dont il faudrait avoir atendu la verification par la pratique politique de l’histoire, pour pouvoir affirmer la ‘verité’. Ce n’est pas la pratique historique ulterieure qui peut donner á connaissance que Marx a produit, ses titres de connaissance. C’est la pratique théorique de Marx est fourni dans la pratique théorique elle-même, c’est-à-dire par la valeur demonstrative, par la titres de scientificité des formes qui ont assuré la production de ces connaissances.” Althusser, Louis. Lire Le Capital: Paris, Presses Universitaires de France, 1965, p. 66.
Por exemplo, na China e na Coreia do Norte temos a tétrica experiência do Partido-Estado que aniquila toda contradição por uma maquinaria polialesca e pelo panóptico em que cada cidadão se converte num algoritmo vigiado o tempo todo para valer a circularidade do dinheiro autorreferente. A reificação do Estado na figura do Partido é uma necessidade de proteção da bolha financeira em colapso. O Partido como mediação de si mesmo nada mais do é que o dinheiro a juros enquanto mediação de si mesmo. Despiciendo dizer que tais experiências de totalitarismo perverso nada tem que ver com marxismo. Para fazer valer o sentido comum da palavra comunismo é necessário corresponder ao povo.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. O Trabalho de Dionísio: Para a crítica ao Estado Moderno pós-moderno. Minas Gerais: Pazulin, 2004, p. 151. Para nós, marxistas ortodoxos, o nosso arquétipo é Prometeu que, ao tirar o fogo dos deuses, promoveu a liberdade dos seres humanos.
JAMESON, Fredric. A Cultura do dinheiro: Ensaios sobre a Globalização. Rio de Janeiro: Editora Vozes: 2001, p. 152, Não se nega que a cultura tenha uma função no todo complexo estruturado muito menos o trabalho dos que, mesmo sob uma aparência abstrata, tocam no núcleo dos mais gritantes problemas do nosso tempo.
Sobre a questão cultural, basta ver, por exemplo, o papel alienante e deletério que a mal chamada MPB, salvo exceções, cumpre no Brasil ao criar a farsa do país idílico, pacífico e integrado e, sobretudo, a tentativa, hoje malograda, de que o nacionalismo se identifica com provincialismo para atender as expectativas do centro capitalista. A MPB não cumpre mais nenhuma função no imaginário popular. José Ramos Tinhorão tinha, teve e sempre terá razão. É hora da boa literatura e da verdadeira música popular.
Sobre o pensamento ver o poema Hegel: https://www.eapois.com/hegel.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
A NECESSÁRIA TIPICIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONATÓRIO
Ao saudoso jurista Giuliani Fonrouge
No âmbito da Administração Pública, o exercício de cargo público está jungido a um conjunto de deveres, articulados à concretização dos mais variados interesses públicos. A garantia da estabilidade, ao contrário de certas imunidades deferidas, é um garantia para que o exercício do cargo não seja marcado por temores reverenciais nem por outros vícios coloniais herdados há muito tempo. Nesse contexto, em que a estabilidade é uma garantia, o poder punitivo precisa ser cingido de limites e desenvolvido no contraditório e, especialmente, na ampla possibilidade do direito de prova. Isso porque uma das formas de violar o contraditório é dificultar ou restringir o amplo direito à prova.
Alguns publicistas, talvez por buscarem mais imitar do que pensar o direito no contexto próprio, fazem da dogmática jurídica caudatária de decisões que, muitas vezes, corroem a garantia própria ao direito. Sendo um dos papéis da dogmática a formalização dos dados jurídicos para que a interpretação do direito seja realizada nos quadrantes do sentido literal possível, cumpre-lhe o papel de exercer o uso público da razão para, inclusive, melhorar a aplicação do direito.
O direito, na medida em que formaliza a atuação estatal, opera pela tipificação da conduta. O pensar tipificador, inerente ao direito, tem que ver com a necessidade de, ao criar hipóteses abstratas, selecionar os predicados que, enfeixados, constituem o cerne do esquema abstrato prévio, o qual figurará como vetor de interpretação. Por isso, não se deve confundir a hipótese tipificadora com o fato inserido no mundo. São coisas diversas. Uma coisa é o fato inserto na hipótese enquanto fruto do procedimento abstrato-concreto seletivo do legislador; outra coisa é o fato acontecido nos eixos do espaço-tempo que, pela incidência da hipótese, é juridicizado.
A questão metodológica central do direito é o modo como os fatos serão classificados pela interpretação. Desde A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, temos salientado que a interpretação, se não aderir aos predicados constantes da hipótese, pode alterar o âmbito de validade das normas, atingindo situações alheias ao direito ou alijando outras claramente abarcadas pelo esquema normativo. E, de forma velada, sob pretexto de aplicar os dados estabelecidos pelo legislador, mediante uma sombria promoção ontológica que a produção dos sentidos permite, classificar erroneamente situações e produzir tragédias e absurdidades.
Em O conceito de direito, Herbert Hart entende o direito como jogo. O direito, consoante afirmamos em As Antinomias do Direito na Modernidade Periférica, é um jogo de linguagem em que cada lance precisa ser interno às regras do jogo. Isso porque o jogo sobrepuja a subjetividade dos jogadores. O jogo é transindividual e objetivo. Todo partícipe que faz um lance fora das balizas pré-estabelecidas corrói o jogo de linguagem e instaura, de forma ilegítima, a partir de sua própria subjetividade um novo jogo, mas sem qualquer amparo na forma de vida comunitária que instaurou o jogo. Não se cria do nada uma forma de vida, uma prática social.
Para corroer o jogo, verifica-se uma cláusula não escrita de, quando o jogo não favorece a um dos partícipes, criar um lance que, na aparência pertence ao jogo de linguagem, mas constitui sua subversão.
Dentro dessa ampla visão, o poder disciplinar deve ser revestido de legalidade estrita e tipicidade em todos os seus desdobramentos. Portanto, a realização de sindicância ou de procedimento administrativo depende da existência prévia de juízo de tipicidade seguro e da existência de provas inicias lícitas. Há que distinguir provas iniciais da mal chamada prova indiciária. Indício não é meio de prova. O indício na medida em que está desarticulado de um conjunto que lhe confira um significado seguro flutua dando margem às mais variadas conjecturas ilógicas.
A sindicância e o procedimento administrativo não podem constituir forma sutil e ilegal de devassa na vida do servidor nem ser uma incógnita desprovida de descrição fática consistente que inviabiliza o direito de ampla defesa. A indecidibilidade na descrição fática é forma de abuso de poder inadmissível numa democracia e deve ser objeto de rechaço veemente.
São corolários dessa mirada: 1) a sindicância deve se arrimar em fato certo e concreto, 2) não se admite indiciamento, seja em sindicância seja em procedimento administrativo, sem a descrição de uma conduta típica que constitua infração administrativa e sem a descrição fática que permita a ampla defesa; 3) não se instaura sindicância e procedimento administrativo com base em provas ilícitas e 4) todas manifestações estatais que reflitam na esfera jurídica do jurisdicionado deve-se articular no contraditório que, para além do binômio informação-reação, funda-se no direito amplo de provas. O cerne do contraditório, conforme temos tido de forma inaugural, é o direito de prova.
No direito administrativo disciplinar, exige-se que a acusação seja certa, objetiva, circunstanciada e o fato imputado ao servidor público subsumido em um tipo legalmente previsto, decorrendo tais exigências dos princípios da legalidade, da tipicidade e da segurança jurídica
Então, se a Administração Pública atua vulnerando os critérios adunados incorre em crime de abuso de poder a ser debelado por todas as vias cabíveis, inclusive a resistência legítima.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
DOS LIMITES E DAS POSSIBILIDADES DA CUSTÓDIA CAUTELAR
“É dever da cidadania recusar o cumprimento de ordem judicial manifestamente ilegal”
É preciso suplantar o estereótipo, reforçado pela dogmática jurídica acrítica, de que o processo cautelar tem por objeto o resultado útil de outro processo. Na verdade, o objeto do processo cautelar circunscreve-se à tutela de uma situação cautelanda, a qual tem realidade em si, objetivamente considerada, enquanto direito, e não em relação ao resultado de outro processo.
No caso do processo penal, avulta de importância a necessidade de fazer esse giro. Na medida em que o foco se dirige à situação cautelanda, encontram-se critérios mais objetivos para assegurar que a custódia cautelar possa acontecer nos marcos rígidos da democracia. É incompatível com a democracia a custódia cautelar erigida como forma de antecipação de pena.
A cominação concreta de uma pena exige um processo penal arrimado no contraditório com amplas possibilidades probatórias culminando no título executivo adensado na sentença penal transitada em julgado. Por isso, é preciso cingir de garantias indeclináveis a custódia cautelar para que a legalidade e a tipicidade sejam respeitadas em todos as lindes do direito. Afirme-se de forma clara: a custódia cautelar não se confunde com a forma insidiosa e abusiva de antecipação de pena.
Não é apenas no direito penal material que a tipicidade se expressa. Na medida em que o processo constitui um conjunto formalizado previamente, as medidas cautelares devem se revestir de tipicidade. Não existe poder geral de cautela no processo penal. Ou há medidas típicas ou não há.
O giro proposto aqui, de forma absolutamente original, exige novos requisitos para a custódia cautelar, quais sejam:
- juízo de tipicidade seguro e consistente de que o fato, atual e concreto, se enquadra nos predicados constantes do tipo penal. Não há falar em fumaça de cometimento de delito. Há de haver um juízo de tipicidade seguro de que uma conduta punível aconteceu. Nesse sentido, a decisão precisa detalhar de forma clara e consistente que se estriba num juízo de tipicidade consistente. Inúmeras consequências decorrem dessa premissa: a conduta deve ser atual e concreta. O direito sempre se reporta a uma dada situação.
Anota Lourival Vilanona:
“(…) o domínio das normas é linguagem não formalizada, não algoritmizada, com referências semânticas a situações objetivas na realidade social da conduta ( As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo)
Assim, ilações despidas do mínimo de substrato fático não têm idoneidade para justificar a privação do maior dos direitos: a liberdade. Não podemos incorrer numa prática escatológica e cheia de previsões funestas.
2) como no processo a cautelaridade se desdobra em várias possibilidades, desde a prisão até outras medidas, há que verificar a proporcionalidade, no sentido da lógica do razoável de Recasens Siches e de Aristóteles, da prisão preventiva. Há proporcionalidade, quando, em cotejo com as outras medidas cautelares disponíveis, a única forma viável de acautelar a situação seja a prisão. Havendo outra medida menos gravosa aos direitos fundamentais e idônea a produzir os efeitos preordenados de tutela da situação cautelanda, a prisão preventiva revela-se abusiva e configura o crime de abuso de poder.
As legislações hodiernas, com pequenas variações, tem estipulado a prisão preventiva para os casos de lesão: 1) à ordem pública, 2) à ordem econômica, 3) à conveniência da instrução criminal e 4) assegurar a aplicação da lei penal.
No que concerne à ordem pública, a dogmática vinculada à filosofia da linguagem ordinária- Hart- tem enfatizado que a linguagem jurídica haure seus atributos na linguagem natural, a saber: vagueza e ambigüidade. Um termo é vago quando não é possível precisar seus limites precisos (extensão indefinida)? É ambíguo um termo que apresenta diversos sentidos em contexto diferentes.
As observações de Hayakawa coincidem com as declarações acima ao declinar que os termos possuem um significado extensional (aquilo que ele indica, a classe que o termo denota) e um significado intensional (aquilo que nos é sugerido (conotado) na nossa cabeça).
O termo ordem pública, fora dos eixos comunitários da linguagem, constitui um exemplo de termo que ostenta um significado intensional, apresentando textura aberta e indefinida de forma que qualquer situação, mesmo fora do alcance da normatividade, pode ser facilmente enquadrada nos seus lindes.
Engendram-se tormentosas dificuldades para definir tais termos. Por isso, os grandes pesquisadores da interpretação/aplicação do direito (salientamos o nome de Luis Alberto Warat) revelam que urge estabelecer, para dirimir o problema, critérios de decidibilidade, isto é, critérios semiológicos que irão orientar a definição mais adequada possível. Assim, a ordem pública só pode ser invocada para proteger um valor albergado na Constituição e não para obliterar/ofuscar as garantias que a informa.
Pensamos que a semiologia jurídica de Luis Alberto Warat, ainda herdeira das vacilações de Herbert Hart, apesar das inestimáveis contribuições, apresenta um sentido mais iconoclasta do que perscrutador da necessidade de limitar o poder estatal.
Analisando a aplicação do direito, sob o signo ordem pública agasalham-se os mais variados significados: 1) salvaguardar a credibilidade das instituições; 2) o modo de execução da conduta punível; 3) a pena cominada em abstrato atribuída ao fato punível; 4) possibilidade de reiteração criminosa.
Num Estado democrático, o ser humano na concepção de Kant não pode ser reduzido à condição de res (coisa), emergindo como fim em si mesmo, como centro de valor que fundamenta e irradia a ordem jurídica. Vedado está o uso promocional do ser humano, não se justificando a constrição da liberdade para garantir a credibilidade das instituições.
Analisar, concretamente, o modo de execução para aferir a culpabilidade já constitui exame de mérito e, portanto, forma oblíqua de antecipação de penal.
Quanto a considerar a pena abstratamente cominada, trata-se de questão de política criminal, referente ao momento nomogénetico, que expunge qualquer possibilidade de aferição em momento prévio à avaliação judicial jungida ao contraditório. É um critério avaliativo inerente à atividade legislativa e não poder servir de vetor para a constrição da liberdade em caso de custódia cautelar.
Na verdade, as instituições devem desenvolver os processos penais de maneira a seguir os procedimentos formais estabelecidos previamente e, somente, após à aferição em contraditório, punir. Usar uma deficiência de gestão da justiça para promover, à custa das liberdades constitucionais, indevidamente, a imagem da justiça constitui perversão da democracia a ser combatida. A credibilidade das instituições depende da produção adequada dos sentidos jurídicos possíveis. Não se defende a impunidade, mas se critica uma forma enviesada de atuação estatal que, na ausência de processos articulados no contraditório e na ampla possibilidade probatória, no marco de uma temporalidade razoável, busca produzir efeitos simbólicos de legitimidade mediante a punição desgarrada de bitolas legais.
Portanto, somente no caso em que há possibilidade concreta de reiteração criminosa, concretamente considerada, é que se justificaria a custódia cautelar sob o signo da ordem pública. Todas as demais hipóteses são casos evidentes de apropriação privada da linguagem, isto é, usurpação do sentido legiferante do termo.
A ordem econômica, de acordo com a hermenêutica jurídica analógica, constitui o conjunto de normas que regulam a produção e a circulação de bens e serviços bem como o regramento das competências e da competição. Conforme salientou a criminologia crítica, as classes dominantes delinquem; não obstante, em razão da suspensão colonial do direito, estão protegidas sob a forma de acordos implícitos.
O ataque à ordem econômica produz graves males sociais e deve ser objeto de consideração numa ordem democrática em que a igualdade perante a lei é regra motriz.
Não há exemplo, na jurisprudência atual, de prisão preventiva no caso de lesão à ordem econômica, demonstrando-se o caráter seletivo do processo penal que, mediante as agências estatais, convertem apenas parcela da população em criminosos. É ingênua a visão de que criminoso é aquele que viola a lei penal. A experiência mostra que criminoso é aquele que as agências estatais produzem como criminosos mesmos nos casos de vulneração das garantias constitucionais.
Quanto á conveniência da instrução criminal, volta-se à proteção da produção adequada das provas e da lisura do próprio processo. Nesse contexto, cabe à custódia cautelar quando há possibilidade de fraude processual. Inclusive, a legislação hodierna ampliou o tipo de fraude processual para abarcar a orquestração maquinada para operar a normatização apócrifa dos fatos.
No que tange a assegurar da aplicação da lei penal, a doutrina, sob essa hipótese, considera a possibilidade de risco de fuga. Temos que, na inteligência sistemática das medidas cautelares, o risco de fuga pode ser neutralizado por outras medidas que não a prisão e, apenas e tão-somente, após o descumprimento dessas medidas é que a prisão preventiva torna-se possível. Nesse contexto, cabe a custódia cautelar quando se violam, de forma habitual, as medidas cautelares voltadas à proteção do comparecimento à justiça.
Por isso, dentro da lógica do razoável de Recasens Siches, havendo medidas outras que podem acautelar a situação de forma a ponderar os valores em jogo, salvaguardando-se o interesse geral sem o sacrifício dos direitos fundamentais do indivíduo, a prisão preventiva configura verdadeiro crime de abuso de poder a ser debelado imediatamente pelas vias adequadas.
A prisão preventiva não pode se converter, como sói ocorre na América Latina, instrumento de persecução penal dos pobres e forma de controle das populações. É hora de defender a legalidade e a tipicidade processual para evitar que o direito penal seja instrumento de encarceramento dos pobres e da neutralização do potencial político de uma nação.
Deve-se lembrar sempre, na lição fantástica de Carlos Cossio, que o fundamento ontológico de todo ordenamento é a liberdade.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
CARTA À JUVENTUDE BRASILEIRA
“Quando tu verás na tua terra um Dostoiévski, um George Eliot, um Tolstoi- gigantes destes, em que a força de visão, o ilimitado da criação, não cedem à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes não vieram – quando?”(Lima Barreto)
Gramsci- o filósofo por excelência, no enfrentamento com o poder instituído- era uma pensador da totalidade cuja obra ainda está por revelar, dizia que é importante perguntar o que motiva uma formação social: se são interesses alheios ou se há uma motivação genuinamente nacional, aberta às diferenças.
No caso do Brasil, há pensamento nacional, mas falta um bloco de poder com pujança para articular as classes dominadas para a tomada do poder.
Hoje, temos uma cena deprimente em que poderes autorreferentes se deparam com um grande vazio. Não representam mais o Brasil das novas gerações: representam os interesses dos imperialismos e, portanto, atuam contra o próprio povo. Não têm força nem soberania para defender o povo brasileiro e entram numa das mais graves crises de legitimidade. E é irremediável no marco institucional vigente.
Há dois Brasil em conflito: um, colonial, violento e totalitário, cujas raízes remontam a 1492; outro, profundo, consistente e capaz de articular soluções nacionais.
A juventude brasileira não deve alimentar ilusões: o Brasil colonial só se mantém se reprimir o Brasil que vem no encalço de Lima Barreto, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond, Castro Alves, Alberto Guerreiro Ramos, João Gilberto, Jamelão, Zé Keti. É um Brasil inteirado das questões e engajado na constituição da solidariedade. E , por isso, vai na contramão de uma extensão cada vez mais abusiva do modal deôntico proibido expresso, sobremodo, na delação premiada que agora atinge níveis capilares e as instituições públicas. É um mecanismo claro para coarctar as possibilidades críticas nas novas gerações. Não nos enganemos, a formação social brasileira atual é totalitária, invía à crítica e repressora de qualquer questionamento problematizador das engrenagens coloniais de poder. Já há elementos robustos de que o Estado Brasileiro trata intelectuais orgânicos como inimigo.
Nessa disjunção profunda, cabe à juventude brasileira não fazer qualquer concessão às formas normalizadas da colonialidade do poder, mas perserverar na afirmação incondicional do novo que brota gradativamente. A filosofia mundial já resolveu, em linhas gerais, a grave questão da pragmática econômica, cabe agora conquistar a autonomia política para, vencendo os jogos de soma zero- Alain Badiou- empreender as reformas econômicas produtoras da igualdade.
Sem ilusões e com pensamento estratégico, podemos alcançar a nossa auto-determinação nos moldes da libertação!
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.
A FARSA DO PLANO REAL
A Ruy Barbosa Oliveira, cuja vocação pública faz enorme falta
Os subscritores do plano real escreveram que: 1) a vinculação dos preços de mercadorias e serviços ao dólar teria efeito deflacionário; se não fosse trágico pelos efeitos deletérios que provoca nos interesses nacionais, seria risível a assertiva; 2) a diminuição e a desburocratização de impostos geraria concorrência entre as mercadorias e serviços importados em cotejo com os nacionais, tendo como fundo compartido o dólar, e, portanto, a diminuição dos preços de mercadorias e de serviços. Na verdade, desata a destruição da economia nacional e prejuízos incalculáveis aos setores exportadores e às trocas comerciais, ante a realidade cambiante da dinâmica internacional.
Na verdade, o plano real é uma farsa; uma forma ardil e artificiosa de, por meio de linha de menor resistência, combater a inflação à custa da economia popular e do achatamento, sutil e indisfarçável, do poder aquisitivo. É uma farsa para submeter o Brasil aos efeitos dominadores do dólar. O real não é existe. A moeda nacional, se seguirmos rigorosamente o marxismo ortodoxo, é o dólar.
Todos os governos que se alinharam ao plano real- o pior plano econômico da história do Brasil- são antinacionalistas e antipopulares. Na verdade, não temos burguesia nacional. Para citar Gunder Frank, na modernidade periférica, temos uma lumpemburguesia que, de forma explícita, sem qualquer pudor, subordina a economia aos interesses imperialistas dos bancos internacionais sob o domínio dos EUA.
O tal do plano real indexou a economia nacional de forma que, qualquer flutuação fronteiriça, provoca o aumento dos preços dos produtos de consumo básico, a desaceleração da atividade produtiva e prejuízos inestimáveis ao setor exportador, afetando, sobremaneira, a balança comercial, tornando a discussão sobre superávit sibilinas afirmações desprovidas de critério científico. Industrialização, economia nacional-popular e plano real são antíteses, insolúveis. Não deixa de ser irônico que o sintoma venha a público apresentar-se como solução. O plano real- que alguns se jactam de ter criado- é um plano inflacionário cujo efeito principal é a devastação da economia nacional e das relações comerciais da nação na medida em que se arrima num cenário mundial monolítico.
Na aurora da República, Rui Barbosa- jurista genial, mas de retórica empolada, criou o encilhamento, um plano econômico profundo de cunho nacional que foi boicotado pelo Império Britânico. Ah, eram tempos em que, mesmo na premência do mais cruel colonialismo, havia inteligências. O Brasil sempre está por nascer.
O plano real, na encruzilhada em que estamos metidos, cria, imediatamente, duas disjunções: a) a existente entre os setores exportadores e a aristocracia financeira, e b) a existente entre a submissão ao dólar e a necessidade imperiosa de trocas mercantis mais equilibradas de maneira que, nas oscilações do capitalismo mundial integrado, estamos a atingir a borda da falência.
A incompetência das classes dominantes, representadas por todo o espectro político, no Brasil, não cabe mais no orçamento. Uma nação cuja institucionalidade não é porosa à contradição e à crítica emperra de forma irremediável.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado, Professor da UNEB.
PANDEMIA, O FIM E O COMEÇO DA POLÍTICA
Ao filósofo Bernard Bourgeois, o mais hegeliano de todos
Toda definição correta, desde Aristóteles, deve estabelecer o gênero próximo e a diferença específica. A endemia e a pandemia abrangem situações de propagação de doenças; na endemia, limita-se a uma região e os números de casos se mantêm em proporção aritmética de forma regularmente controlável; a pandemia estende-se a várias regiões e a doença se propaga em proporção geometria, podendo tornar-se incontrolável.
No contexto de formações coloniais, marcado pela colonialidade do poder, a pandemia desata um conjunto de questões problemáticas, sobretudo, no que se refere ao problema central da política.
Jacques Rancière articula o político ao desentendimento, isto é, à luta de classes como condição do político? Mas para definir o fenômeno devemos nos limitar à condição? Não seria necessário engajar o problema numa dimensão mais ampla?
Chantal Mouffe, ao vincar a distinção entre o político e a política, define política como antagonismo constitutivo da sociedade[1]. Mesmo desenvolvendo o conceito em relação ao liberalismo, falha, a nosso ver, grave, vejamos como aborda a questão:
“(…) entendo por ‘o político’ a dimensão de antagonismo que considero constitutiva das sociedades humanas, enquanto entendo por ‘política’ o conjunto da prática e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizada a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo política’’[2]
É um grande equívoco definir a política em referência à constituição de uma ordem. Conforme afirma Badiou, numa tradição que remonta a Maquiavel, passando por Rousseau a Althusser, a política existe para evitar o enfrentamento de um vazio que obseda as formações sociais. A política é menos o lugar da unidade do que a luta para preencher um vazio.
Laclau invoca o X incognoscível para indicar o vazio. Não há nada de incognoscível. O vazio é fruto do movimento dinâmico das lutas de classes, nas intersecções econômicas e políticas.
Outro equívoco grave de Mouffe é associar a concepção deliberativa a um resgate da moralidade no âmbito político[3]. É nada conhecer sobre Aristóteles.
Pensamos que a grave questão foi bem colocada por Engels, apesar de não ter levado à consumação plena o princípio dialético ‘’o um se divide em dois’’:
“O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é ‘a realidade da ideia ética’, nem ‘a imagem e a realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, essas classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro de limites da ‘ordem’. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, o Estado.[4]”
Fazendo uma ligeira variação, podemos definir o Estado como instância da totalidade social-histórico, isto é, como lugar de mediação que, em razão da correlação de forças, pode ser um lugar de repressão ou de expressão da vontade geral. Nesse sentido, é crucial resgatar o conceito de deliberação. Não se delibera sobre o impossível nem sobre o necessário, já articulávamos em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social.
A deliberação se insere num contexto de escolha da própria escolha. Afirma Aristóteles que ‘’do justo e do injusto leva à aporia’’, isto é, a contingência não enquanto caos, mas como abertura conjuntural em que há possibilidade de escolher para além das engrenagens internas de um sistema reprodutor de sua mesma forma sob variações enganadoras.
Em razão das contradições do capitalismo, as formações sociais, desenvolvidas ou não, no contexto de pandemia, já não deliberam mais. Por exemplo, os discursos do Premier chinês Li Keqiang sobre taxas é uma prova cabal de que não se delibera mais.
Conforme disse Marx, o capital é o limite do capital. Em que sentido limite? No sentido platônico do conceito. O peso da dívida pública, as contradições no âmbito das classes dominantes, a dispersão popular, em contexto de pandemia, engendram um acúmulo de problemas e, como corolário, a incapacidade de deliberar, descambando-se para proscênio tétrico e sombrio de massacres de populações.
O livro Por Uma Renovação Marxista da Teoria da Dependência, demonstrando a dívida pública como mecanismo de reprodução da dependência econômica das formações sociais periféricas, é um ensaio preliminar para o retorno da política e, por corolário, da deliberação. Não há política no atual contexto do capitalismo mundial integrado.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor da UNEB.
[1] Em 2008, Em A Legalidade como Instrumento Retórico de Conformismo Social, definimos a política democrática como enfrentamento leal dos conflitos.
[2] MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 8.
[3] Habermas tem resgatado o conceito de deliberação esvaziado da dimensão profunda que tem em Aristóteles.
[4] ENGELS, Friedrich. A Origem do Estado, da Família e da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 160.