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DA RESISTÊNCIA À DEMOCRACIA NAS FORMAÇÕES SOCIAIS COLONIAIS
A democracia é um regime de visibilidade aberto em que qualquer um pode emergir sem a necessidade de ostentar títulos, seja a riqueza, seja uma suposta superioridade. Nas formações marcadas pela branquidão como propriedade, aparece como um grande escândalo, pois significa a emergência de grupos não contados conforme a ascendência e a hierarquia, significa dizer que à branquidão não se confere o privilégio exclusivo de governar e que os não contados integram a comunidade política. Fácil inferir que, na modernidade periférica, o que caracteriza as lutas políticas constitui um confronto aberto contra a resistência- no sentido psicanalítico- à democracia e em prol da emergência dos que tem como título a ausência de título e ostentam a corporalidade viva, que luta por dignidade. As lutas políticas são deflagradas para que se possa constituir a luta política genuína e democrática.
Como a colonialidade do poder incute a superioridade da branquidão, instaura-se uma verdadeira patologia: os que ostentam a branquidão se veem como predestinados exclusivos aos atributos universais da humanidade e se arrogam a condição de privilegiados e únicos capazes de representar o todo social e, portanto, de governar. Engolfados no narcisismo das pequenas diferenças, perdem qualquer alteridade, isto é, qualquer disponibilidade ao outro que não se enquadra no rol de propriedades- sejam biológicas, sejam culturais- com que se identificam, acicatando, como corolário, maquinarias de exclusão simbólica e territorial. É o que Alberto Guerreiro Ramos chamava de patologia do branco.
Nesse contexto, as eleições, como momento importante da democracia, figuram como um verdadeiro fantasma, o fantasma de que, pela aleatoriedade que lhe é constitutiva, o exercício do governo acabe indo para mãos dos que não são os ‘predestinados’, isto é, os grupos não contados pela laminação unívoca da ordenação colonial e que podem, pelo exercício do poder, alterar e transmontar a distribuição colonial dos bens, incluídos os simbólicos.
A política, então, se torna um processo totalmente controlado pelas oligarquias brancas reacionárias, tendo por característica a reatividade à qualquer emergência popular. Não há que se enganar: nas formações sociais coloniais, as oligarquias brancas são violentas e resistem violentamente à emergência democrática, à emergência do qualquer um: o qualquer um sem título que desarma a lógica hierárquica da branquidão como propriedade.
Como conjurar a aleatoriedade das eleições? Pela criação de um sistema cerrado, sutil ou explícito, de exclusão. Jacques Rancière assinala que os Pais-Fundadores não viram nenhuma contradição em erigir o homem proprietário como o único capaz de fazer da esfera pública um lugar infenso a interesses particulares. Ingenuidade? Marx, por sua vez, já na análise semiológico-política das declarações francesas do século XVIII, entreviu a contradição entre o homem, que luta pelo próprio interesse, e o cidadão, que deve figurar como elevado membro da comunidade.
Enquanto o homem luta pelos próprios interesses, faz dos outros meios para atingi-los, o cidadão, enquanto membro da comunidade, deveria agir conforme o interesse público. A contradição, segundo Marx, se resolve pela predominância do interesse privado real sobre o interesse público etéreo e ilusório. Nas formações sociais coloniais, não há esfera pública, o comando já é imediatamente dominado pela lógica privada (1). As eleições são tomadas justamente para conjurar o risco da emergência dos não contados. Conforme salienta Fanon, o poder, nas colônias, é privilégio dos dotados de branquidão e identificados com os valores imperialistas.
A democracia, portanto, constitui o escândalo que embaralha a ordem do discurso. Não é só pela situação discursiva em que aqueles que normalmente são privados da palavra emergem na esfera na pública pelo discurso que a democracia é temida e odiada, mas também pela iminência de que o uso da palavra, ao torcer e suplantar o monopólio do simbólico pelas oligarquias brancas, estimule, esporeie, fomente a constituição de um bloco de poder nacional-popular. É pelo exercício da palavra ou dos gritos de martírio que o povo assoma na seara pública apresentando-se, à luz da lógica colonial, como ameaça à ‘benfajeza’ ordem dos privilégios seculares. A mera emergência de um não contado é vista como ameaça e se verificam manifestações, patentes ou latentes, de racismo. Por isso, conforme salientei no livro As antinomias do direito na modernidade periférica, nas formações coloniais, a única política admitida pelas classes dominantes é a despolitização mediante o silenciamento, pelos mais variados meios, dos que enunciam os sintomas e as contradições das formações sociais.
Mas não há que desesperar da política. A emergência das massas em organizações de disciplina coletiva sempre é possível e, desde que se estabeleçam, pela luta, critérios seguros de verificabilidade da constituição do poder, o jogo pode mudar: as massas silentes podem assomar no vigor da poesia e da criação política de novas formas de ser e de viver.
Espargiu-se, até mesmo pela vulgata marxista, a noção de um Gramsci culturalista e domesticado. Mas Gramsci por ele mesmo não pensava em termos de cultura; como pensador da conjuntura, pensava em termos de poder e entendia a práxis como a busca, diuturna e incansável, pela constituição de um bloco de poder, nacional, popular e revolucionário (2). Lembrando Hegel, o ser humano, ao construir uma casa, usa os elementos da terra para se proteger da própria terra. Então, trata-se de criar um bloco de poder capaz de enfrentar e superar a branquidão como propriedade.
Notas:
1 Assiste razão a Dussel ao enfatizar Fichte como modelo de intelectual para a América Latina. Para Fichte, em momentos graves e difíceis da nação, cabe ao filósofo assumir o risco de, lutando pela instauração de uma verdadeira esfera pública, ser um momento reluzente e complexo de autoconsciência.
2 Para Gramsci, os partidos se tornam pessoas históricas quando se transformam no crisol da unidade entre teoria e prática, entendida como processo histórico. Não há qualquer transformação social sem que se verifique uma efervescência teórico-prático no âmbito dos partidos, sindicatos e movimentos sociais. No caso do Brasil, ainda impera o enunciado popular do período do Império em que havia dois partidos – o liberal e o conservador: ‘’Nada mais conservador do que um liberal no poder, nada mais liberal do que um conservador no poder”. No período ditadorial explícito (1964-1985), tivemos o partido do sim (MDB) e o partido sim, senhor (ARENA). Nada mudou. Mas nada impede o surgimento ou a configuração de partidos antirracistas, anticoloniais e anticapitalistas, constituídos em laboratórios para pensar e articular a totalidade social. Conforme dizia Guerreiro Ramos, os fenômenos sociais são totais, exigindo a superação da perspectiva fragmentária tão ao sabor do império.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB
O RETORNO DA POLÍTICA COMO O RETORNO DO RECALCADO
A política só acontece porque na articulação dos conjuntos sociais sempre há uma fresta entre a topologia social cerrada e a emergência de novos sujeitos capazes de questionar a ordenação colonial. É sempre num enclave, numa junção disjunta, que a política retorna. Em que enclave? No entremeio entre os que definem o campo social a partir de ascendências e hierarquias e os que, embora não contados, insurgem-se e se afirmam como sujeitos políticos e em cuja afirmação já se manifesta a clivagem social, isto é, a divisão social.
Os verdadeiros sujeitos políticos se inserem no momento em que a clivagem social se manifesta. Ou melhor, nascem no momento em que, ao afirmarem a sua existência mesma, demonstram o irrepresentável que obseda sempre o que conta numa determinada situação.
Um modo de produção para se reproduzir precisa coisificar os sujeitos sociais e o próprio caráter processual da realidade. Althusser diz que a ideologia interpela o indivíduo enquanto sujeito de tal forma que o indivíduo, imaginando-se acima de qualquer pertencimento social, vê-se como determinante último do real. Uma ilusão de autonomia que constitui a estratégia de dominação, pois, em sendo interpelado como sujeito, o indivíduo se enxerga acima da história quando não passa de um grande murmúrio no silêncio das formas sociais injustas.
Na ideologia, as imagens das formas sociais também são coisificadas. O produzir-se das formas sociais que constitui um projeto jogado, isto é, como escolha civilizatória dentre outras, entrevê-se como destino fatal. Ver o produto social sem o processo de produção é o cerne da fetichização. A política se fetichiza quando o sentido deliberativo da política é negado das formas sutis desde a repressão mais aguda à reprodução de mandatos políticos sem força e autonomia para tocar nas contradições. Só se admitem novidades reacionárias.
Dessa forma, uma formação social só se reproduz pelo trabalho diuturno de negação de seus problemas. Quando há um mínimo de tecido social, a dominação se exerce mediante a criação de noções de desorientação ou pela desnaturação de conceitos com potencial elucidador. Toda a cantilena sobre semipresidencialismo, presidencialismo de coalização, reformas superficiais eleitorais são táticas diversionistas.
O método dialético tem justamente essa tarefa infinita de criticar as noções de desorientação e, no elucidá-las, transpor a situação alienada com a indicação de um horizonte de possíveis factíveis. Pensar é transpor, diz Ernst Bloch.
Não há nada atrás das cortinas, todos os temas veem a tona. A questão é que as classes dominantes, cujo instinto de classe é apurado, desenvolvem estereótipos com o objetivo de, sob o pretexto de tangenciar os problemas, operar uma verdadeira deserção do real. Por isso, a assertiva de Mao Tsé-Tung de que ‘’não se deve esquecer nunca as lutas de classes’’ deve ser entendida no sentido de que o trabalho teórico da critica, de que a prática teórica não deve cessar nunca e que esse exercício torna-se infinito na medida em que se propalam, pelos mais variados meios, temas e problemas e respostas de desorientação. Onde há desorientação, que haja método: trabalho incansável de elucidar a sociedade.
A subsunção material, definida por Marx, não consiste somente na reprodução do trabalho como trabalho assalariado, do trabalho como mercadoria, mas pela reprodução da subjetividade que introjete os valores sobressalentes das formações sociais capitalistas. Sem a fabricação do indivíduo insulado, mergulhado na luta pelos próprios interesses, sem compreensão do horizonte que integra, sem sentido comunitário, o modo de produção capitalista não sobrevive.
Não há fetichização da política sem a supressão da potência política dos sujeitos. Somente por um longo processo de desidentificação com os valores predominantes que o indivíduo se emancipa. Dessubjetiva-se da lógica da dominação, subjetiva-se não mais como dobra do poder, mas como potência comunitária que, visualizando a totalidade social, apreende no ler o real o rastro da emancipação.
A melhor fórmula para definir a existência da política é a fórmula lacaniana: o recalque é o retorno do recalcado. O fato de se estabelecer representações em que as contradições são dissolvidas imaginariamente, construindo uma ‘realidade’ cuja versão é precária, é apenas um índice da existência da política. O fator determinante é a constrição de todas as formas de projetar a possibilidade de que, pelo uso público da razão, as formações sociais cheguem à compreensão de que não são obra do acaso ou do fatalismo, mas são projetos jogados, isto é, são frutos de escolhas que se materializam em instituições. Noutras palavras, o poder constituinte nunca cessa, nunca para, está sempre em movimento em todo pensador genuíno, em todo movimento social consequente, em todo partido que articula a totalidade.
É quando emerge a palavra sem murmúrio ou sibila o grito da dor contida, dizia Fanon, nos ossos dos colonizados. Surge então potências políticas que, sem temer o suplemento do poder punitivo, afirmam o comum. O recalque é o retorno do recalcado. Rebentam pensamentos metamórficos que, sob a pressão, recolhem as chispas e as lágrimas do que a palavra comunismo promete e anuncia.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
DA APROPRIAÇÃO PRIVADA DA LINGUAGEM À ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL
“O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes’’ Mikhail Bakhtin (Volochínov)
A hermenêutica filosófica de índole gadameriana reduz o ser à linguagem. O ser a ser compreendido é linguagem- eis a divisa mais forte dessa corrente. Aposta-se que, na linguagem, adensa-se toda a historicidade da tradição ancorada no acordo comunitário. A redução de toda ontologia- teoria do ser enquanto ser- à linguagem é, deveras, idealista, mas ao mesmo traz em relevo o papel que a linguagem cumpre na dinâmica da sociedade. O semiólogo russo Mikhail Bakhtin traz aportes mais dialéticos e demanda o estudo dos signos na materialidade concreta e diante e dentro da correlação de forças. Como afirma, se a linguagem é indiferente às classes, por sua vez, as classes não são indiferentes à linguagem.
No plano jurídico, a forma com que o legislador plasma as leis e o papel crucial no uso da linguagem cumpre papel decisivo e merece atenção de toda comunidade. Pode-se afirmar que, na técnica legislativa de construção dos documentos normativos, estabelece-se a verdadeira refrega pela produção dos sentidos e quem produz os sentidos detém todos os elementos para forjar a política de uma nação. A própria colonização inicia-se pelo poder de designar, de dar nomes, por isso, é um risco fatal a uma sociedade o monopólio da produção dos sentidos pelos agentes coloniais do império. A questão é mais premente quando se percebe que toda legislação a ser produzida deve instaurar sentidos equivalentes ao texto constitucional. Dessa forma, a legislação não pode ser vista como ancilar à constituição, mas como concretização dos sentidos analógicos da constituição. Nos ensina a experiência que uma constituição, por mais avançada que seja, não se realiza se não houver uma legislação ulterior que se lhe desdobre e se lhe dê efetividade. Não se deve descurar das produções das leis como continuação e como efetivação do projeto constitucional.
Assim como o interprete pode atribuir sentidos alheios à moldura analógica da norma, embutindo sentidos estranhos ao sentido literal, apropriando-se da lei, na legislação também é possível pela redação deliberadamente anticonstitucional entabular outra modalidade de apropriação privada da linguagem. Noutras palavras, é possível promover a apropriação privada da linguagem pelo ato de legislar, discrepando-se, distorcendo-se, anulando-se os sentidos constitucionais.
Ao regulamentar a questão ambiental, a constituição traçou critérios qualitativos que condensam de forma plena a concepção da sustentabilidade, que deve ser entendida como manutenção salutar do metabolismo ser humano e natureza para as gerações atuais e futuras.
Estabelece o art. 225 da CRFB o direito ao meio ambiente equilibrado, o qual deve ser estruturalmente vinculado às balizas objetivas que caracterizam a função social da propriedade. Articula-se a proteção do meio ambiente ao cumprimento da função social da propriedade. As notas definidas no art. 186 da CRFB para a efetivação da função social da propriedade são:
- Aproveitamento racional e adequado;
- Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
- Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
- Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores;
Tais balizas necessitavam de desdobramentos e, no fazer os detalhamentos, esses elementos foram, por meio da legislação infraconstitucional, desvanecidos, esfumados e desnaturados de tal forma que se pode afirmar que o texto foi submetido a uma espécie de revogação pela lei inferior. É preciso cuidar da produção dos sentidos. Só para criar a imagética adequada: lançar um número de animais em certa propriedade, por si só, configuraria cumprimento social da propriedade de forma a favorecer o latifúndio e o avoengo coronelismo.
A lei 8.629/93 estabelece como aproveitamento regular:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:
I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.
Veja-se que, conforme define o incisivo II do § º 2 do art. 6 da indigitada lei, a quantidade do rebanho define o aproveitamento regular, frustrando a expectativa constitucional. Trata-se de um caso de apropriação privada da linguagem por intermédio da legislação.
O projeto de lei 2633 segue o mesmo curso, pois, apropriando-se da linguagem, esporeia a acumulação primitiva do capital, suprimindo a base fundiária dos povos originários e dos camponeses. É condição básica de reprodução do modo de produção capitalista a contínua acumulação primitiva do capital- dizia Marx, esse funcionário da humanidade. O capitalismo não abdicará, sem resistência, da retirada da base fundiária dos povos originários.
Não há apropriação das terras dos povos originários sem a apropriação privada da linguagem. Consoante afirma Bakhtin:
Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presenta em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação 1
É preciso estar atento para evitar que, sob o pretexto de regulamentar a constituição, opere-se rarefações ideológicos verbais, aniquilando-se os sentidos comunitários que a constituição homizia e, por sua existência mesma, instaura nos momentos de armistícios sociais.
- BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010, p.38
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
DA MONTANHA QUE TEMOS QUE VENCER COM URGÊNCIA
Comunistas do mundo, uni-vos
A José Ramos Tinhorão, em nome de quem envio um abraço fraternal a dois poetas decoloniais.
“Toda questão de ordem ideológica, toda controvérsia no seio do povo não pode ser resolvida senão por métodos democráticos, métodos de discussão, de crítica, de persuasão e de educação; não se pode resolver nada por métodos repressivos e coercitivos’’ 1
A assertiva de Umberto Eco de que um texto, quando se desprende das condições de sua emissão, flutua no vácuo é errônea. Primeiro, porque um texto sempre traz junto a si, ainda que de forma tênue, rastros das condições em que foi gestado. Segundo, porque todo texto, ao ser emitido, entra num horizonte indeclinável que determina e condiciona a sua recepção. Abundam exemplos na literatura. A obra-prima Grande Sertão: Veredas- que criou um novo idioma dentro do próprio idioma- foi recepcionada como uma mera novela picaresca de bandos de desordeiros em conflito. Avalovara, de Osman Lins, é tão inovadora no que concerne a forma e, consoante a cibernética, a forma já é mensagem, que até hoje a obra é, absurdamente, ignorada. É nessa problemática que surge a teoria literária da recepção.
A estética da recepção, como corrente literária, busca compreender o modo como um texto produz seus efeitos não num sentido mecânico como a palavra pode sugerir, mas como o texto, na medida mesma em que estrutura de forma a priori sua própria leitura, cria mundos. O fato de a estética da recepção ter enfatizado a importância da subjetividade na recepção do texto não sucumbe ao psicologismo nem confere importância exagerada à subjetividade que, supostamente, seria o alfa e o ômega da interpretação.
Os efeitos do texto são prefigurados pelo próprio texto ainda que a participação da subjetividade que o recepciona seja decisiva nesse papel. Não bastasse isso, nenhuma leitura ocorre fora da mediação de um horizonte de expectativa no qual os textos vão se deparar e ou brilhar na sua grandeza ou, muitas vezes, naufragar tristemente. Por exemplo, a obra de Lima Barreto que desnuda com toda força as contradições pungentes do Brasil revela como um olhar-se no espelho e o reflexo não é nada formoso. O horizonte de expectativa, no contexto brasileiro, por conseguinte, mostra-se totalmente infenso à obra desse gênio que já demonstrara em contos e romances que o racismo deixaria de ser biológico para tornar-se cultural, antecipando muitos filósofos e questões hoje prementes. Quantos autores geniais criaram obras que, de tão ricas, foram incompreendidas? Outras quantas de tão desafiadoras, de forma silente, foram censuradas?
Gadamer define horizonte como o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. O conceito não é satisfatório porque incide num espontaneísmo que ignora o influxo das lutas políticas e das lutas pelas palavras no embater social e que, no fundo, as grandes lutas de classe é o desacordo acerca da percepção da realidade. O filósofo japonês Kojin Karatani quando criou o conceito de Paralaxe quer mostrar que os conflitos de interpretação já demonstram que o real é um topos em que o futuro das formações sociais se desenha e se desenrola (2). O próprio conflito de interpretação revela a não coincidência do real consigo mesmo e a abertura mesma dos possíveis.
Podemos definir horizonte como regime de visibilidade e de invisibilidade instaurado pelas relações de forças que integram qualquer formação marcada pelas lutas de classes. O horizonte de expectativa define, de forma prévia, o que é visível e o que é invisível.
Muitas vezes o regime de invisibilidade é de forma sutil; outras, de forma violenta. Tudo como o escopo de impedir a elucidação das formas sociais e das mazelas que lhe são evidentes. Nessa cumeada, qual o horizonte de expectativa da constituição brasileira vigente? No que aqui importa, releva que a Constituição de 1988 é referta em direitos sociais, impôs freios ao sistema do capital financeiro com normas de eficácia plena- que fora totalmente desregulamentado- e criou um sistema protetivo do trabalho e seguridade social ampla envolvendo previdência social, saúde e assistência momentânea até o debelar, por políticas públicas, da pobreza e das condições miseráveis em que vive, infeliz e tragicamente, parcela relevante de nacionais como nós num país de riquezas inestimáveis. Como uma constituição dessa jaez é recepcionada num país em que o conceito de nação é restrito às oligarquias brancas com a exclusão, mediante permanente estado de exceção, dos povos que nos formam?
Ocorre que tamanha projeção generosa se depara com uma montanha íngreme- a colonialidade do poder- cuja superação requer o esforço descomunal de várias gerações. A colonialidade estabelece várias divisões desde a divisão entre o trabalho manual – que é, erroneamente, objeto de desprezo e o trabalho intelectual: ocorre a racialização das atividades manuais; a divisão sexual na exploração do trabalho feminino, no livro Os Quilombos como novos da terra apresento a hipótese de que a classe operária é tendencialmente feminina como forma sutil de efetivar a precarização dos salários; a divisão etária, suprimindo das crianças o direito de desenvolver sua potência para serem exploradas como mão-de-obra escrava;a violência contra os gêneros diferentes; a foraclusão da questão de gênero e o desatar da violência que decorre disso.
No plano político, o sistema é tão deficiente que impede, salvo raras exceções, a emergência de lideranças populares; o próprio termo populismo é usado de forma distorcida para lançar pecha em quem se arvora com coragem em defensor dos povos; os políticos e os intelectuais que entendem e colocam às claras e com veemência a questão colonial são objeto de campanhas intensas de estigmatização e tidos como caudilhos machistas. O caso emblemático é do grandioso político Leonel Brizola, trabalhista autêntico e crítico ferrenho do modelo econômico colonial que nos afunda na tragédia social. No plano ideológico, a branquidão se vê como o estuário exclusivo das qualidades universais da humanidade e, os outros, são bárbaros cujo direito à vida é desprezado e, quando demonstram algum talento exponencial, são rechaçados brutalmente(3). No Brasil, a colonialidade constitui um horizonte de expectativa contrario às projeções constitucionais.
A saída não é a iconoclastia dos que, como Augusto dos Anjos, ao criticar o fetichismo, destruiu os próprios sonhos (4). A questão é estabelecer o método de elucidação, organizar a sociedade e, criando a disciplina coletiva, colher a constituição pela palavra, efetivando-a para salvaguardar a humanidade com um futuro compartilhado.
A colonialidade do poder é a grande montanha que temos de vencer e é urgente.
- TSÉ-TUNG, Mao. Le Petit Livre Rouge. Paris: Éditions seuil, p. 35. Uso o negrito e indico com precisão a fonte para que saibam um pouco quem foi um dos mais libertários seres humanos da humanidade.
- Quem compreendeu a filosofia de Mao Tsé-Tung sabe que, nas fímbrias de um discurso, às vezes perfunctório, é possível captar o real. Marx dizia que apreendeu economia política estudando a linguagem dos ‘liberais’.
Quando o presidente Fernando Henrique disse que a constituição é um empecilho à governança-palavra que não diz muita coisa- revela que a política que desenvolvera foi no sentido de frustrar as esperanças da constituição. Não é um discurso liberal. O liberalismo é um mito ocidental porque não existe nenhuma burguesia que não seja estatal. Basta ver as subvenções. Toda burguesia é estatal.
Além disso, Mao Tsé-Tung dizia que o liberalismo é apenas um nome vazio para dividir a nação e destruir a disciplina coletiva. E, quando uma nação está desorientada, a tarefa mais urgente é criar o método de elucidação. Criemo-lo, juntos e unidos.
- KARATANI, Kojin. Transcritique: On Kant and Marx. London: The MIT Press, 2003.
- O exemplo de Carolina de Jesus, Lima Barreto, Alberto Guerreiro. Itamar Assumpção, Maria Firmina, Luiza Mahin, Mariele Franco são emblemáticos.
- Excerto do poema Vandalismo de Augusto dos Anjos:
“E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!”
É preciso manter os sonhos. A vida é, também, doce, amigo. E no dia que em encararmos Lima Barreto será um momento de esperança.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
POR QUE O SEMIPRESIDENCIALISMO É ANTICONSTITUCIONAL NO BRASIL?
A Dom Pedro Casaldáliga
“Se alguém pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz, através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.” Franz Kafka
Todo debate de índole constitucional deve partir, por razões de segurança jurídica e fidelidade ao projeto constitucional, do texto e de suas interações estruturais. Conforme salientei, alhures, a interpretação constitucional comporta três níveis: o textual, o estrutural e o histórico. O texto, na medida em que é um vir-a-ser-mundo, traz em bojo a estrutura de sua própria leitura.(1)
Em razões das várias crises político-econômicos por que passa a nação, vez ou outra, uns publicistas- que se arrogam a condição de mentores do país- propõem, contra o texto e contra o intertexto constitucional, a inserção, no nosso sistema político, do semipresidencialismo.
A ideia, para citar Nietzsche, confunde causa e efeito. Todos os problemas políticos brasileiros emanam da autorreferência do poder político que, na incapacidade de deliberar e resolver os problemas coletivos, reduz a dinâmica parlamentar à repartição mesquinha de benesses e prestígio.
A política – que é um ofício nobre- vira simplesmente uma prática de repartição colonial de interesses comezinhos e anti-republicanos.
Para ocultar tais mazelas, forjam-se termos os mais frágeis do ponto de vista teórico tais como presidencialismo de coalização, verdadeira noção de desorientação e, por corolário, ofusca o problema em vez de esclarecer. Na verdade, são termos sem qualquer conteúdo científico e que não merecem nem ser mencionado na medida em que não passam de ideologia da mais simplista possível. (2)
Duas notas técnicas sobre o tal semipresidencialismo:
- Afronta o fundamento maior da República- a Soberania Popular;
- O Presidencialismo é clausula pétrea e, portanto, integra o núcleo imodificável da constitucional;
Reza o parágrafo único do art. 1 da CRFB:
“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
É de hialina clareza que o mandato político, qualquer que seja, emana da vontade popular e não de interposta instituição ou pessoa. Fica evidente a esfuziante anticonstitucionalidade do semipresidencialismo (3). É importante remarcar que a expressão ‘’diretamente’’ se refere às formas de manifestação direta da soberania como plebiscito, referendo e projeto de iniciativa popular, não agasalhando qualquer interpretação que indique a possibilidade de intermediação entre o voto do povo e a produção dos mandatos políticos. A relação entre o povo e os mandatários se dá mediante o voto e não por vias transversas (nível textual).
No nível estrutural, verifica-se que, no âmbito do que Pontes de Miranda denominou princípios sensíveis, tem-se o sistema representativo e a autonomia do Poder Executivo. É de compreensão basal que o semipresidencialismo não se compadece nem se coaduna com o sistema representativo (nível estrutural).
Reza o art. 34 da CRFB:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
Os princípios sensíveis, conforme o gênio de Pontes de Miranda, são aqueles que, sendo inerentes à identidade da constituição, não podem ser retirados sob pena de se deformar o projeto constituinte originário. O sistema representativo e a autonomia do Executivo informam de forma indelével à ordem constitucional hodierna, podendo ser alterados somente por outra constituinte.
No núcleo imodificável da constituição, inserto no § 4º do art. 60 da CRFB, consta a presença indisfarçável do sistema representativo e do voto inalienável, o que, numa leitura intra-estrutural do dispositivo, deixa fora de dúvida que o sistema de governo adotado pelo constituinte é o Presidencialismo. É curial que nenhuma proposta com tendência- é de tendência que se trata- a abolir o presidencialismo não pode sequer ser objeto de deliberação. (4)
Do ponto de vista histórico, a única vez que inseriram o semipresidencialismo foi para manietar a vontade popular nos idos de 1961 para suprimir o poder do presidente popular e trabalhista João Goulart, evitando-se o acicate das reformas de base que ensejariam a mudança sócio-econômica do país. Tanto que deflagraram o golpe militar (nível histórico). Enfim, o Poder Executivo integra a unidade da constituição.
De que o Brasil precisa é de real democracia, retirando da oligarquia o monopólio da política e da vida. E que os publicistas cumpram o seu papel sem apropriação privada da linguagem.
Na cena final do filme- Deus e o Diabo na Terra do Sol- do genial baiano Glauber Rocha, Corisco alvejado, rodopia no ar, tomba e lança o grito ‘’mais fortes são os poderes do povo’’; o grito alteia-se, reverbera, retine, reluz e se eterniza da mesma forma que a arte ultrapassa a individualidade que a concebe.
Fortes também são os poderes do conhecimento e o povo partilhará do sabor de saber-se livre.
- NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018;
- Ver nosso: https://lavrapalavra.com/2021/04/12/da-metodologia-juridica-na-producao-e-na-interpretacao-do-direito-estudo-de-um-caso/
- A diferença entre inconstitucionalidade e anticonstitucionalidade é essencial em países de modernidade periférica. Zagrebelsky, em El Derecho Dúctil, traz essa importante distinção e que deve ser desdobrada com mais vagar. A anticonstitucionalidade demonstra um pendor deliberado em frustrar a constituição.
- Conforme Jurisprudência inaugurada pelo Eminente Jurista e Ministro do STF Marco Aurélio, no caso de tramitação de projeto que fere cláusula pétrea cabe mandado de segurança preventivo a ser impetrado por parlamentar com escopo de garantir o devido processo legislativo e sustar a tramitação (MS 22183/DF, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio).
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
O RETORNO ESTRUTURALISTA A SCHLEIRMACHER: A VIA DAS CIÊNCIAS DO TEXTO
A Manfred Frank e a Lauro Campos
Por sempre nos movermos no horizonte de concepções prévias, a compreensão se apresenta como um círculo no qual as visões são condicionadas. Para Gadamer, o círculo hermenêutico não é apenas uma relação formal entre o todo e a parte, uma relação mecanicista, mas apresenta um nítido sentido produtivo-material. O círculo hermenêutico se apresenta como totalidade em provimento: como a obtenção de um saber mais abrangente. Em toda interpretação atua sempre uma pré-compreensão como condição de possibilidade. A interpretação é estruturada por uma compreensão prévia. Na medida em que a interpretação consiste na mediação daqueles pré-elementos não corre o risco de sucumbir a certo irracionalismo? Como na interpretação verifica-se o vir à tona dos elementos prévios da compreensão?
Gadamer aproxima o tema da finitude (Heidegger) e o tema do negativo (Hegel). À finitude como a impossibilidade do saber absoluto da história é aditado o negativo, não como uma limitação, mas como a experiência que abre espaço para um saber mais abrangente. A finitude, como o ser-aí mergulhado na tradição que lhe acontece, implica a superação do historicismo arrimado na crença de um saber absolutamente objetivo do histórico. A finitude revela a imersão do ser-aí, a pregnância à tradição que nunca se apresenta sob a forma de objeto. A própria imagem do conhecimento se modifica. Não é mais figurada como um sujeito diante de um objeto, pois, na medida em que o ser-aí já é histórico, todo sujeito já é ser-em-situação e não num estado de sobrevoo a partir do qual pudesse, isento das determinações espaço-temporais, apresentar um domínio absoluto sobre todas essas determinações. O ser-em-situação indica que a história nunca será um objeto alheio, mas a matéria em que já se detém desde sempre o ser-aí. A finitude enquanto historicidade rechaça tanto uma objetividade alienante quanto uma autotransparência expressa numa autopossessão completa.
A finitude, nesse contexto, demanda a crítica da fé metodológica de um saber objetivo que pudesse fazer da tradição um objeto alheio ao sujeito cognoscente. É aqui que emerge o tema da pertença à tradição. Gadamer critica a tendência do saber científico que, ao figurar o conhecimento como a posição subjetiva em face de um objeto, esquece que a tradição já opera tanto no sujeito quanto no objeto. A tradição não é um objeto posto aos olhos de um sujeito desenraizado, em pura contemplação. Compreender, diz Gadamer, é pertencer ao ser daquilo que se compreende.
A tradição configura-se como instância de veracidade. A tradição, como comunidade de preconceitos, permite, primeiro, a distinção entre os preconceitos, imbuídos de historicidade, e os juízos da subjetividade, espelho deformante. O estímulo da tradição permite, segundo Gadamer, separar os bons preconceitos dos maus preconceitos. A produtividade hermenêutica do círculo hermenêutico tem uma riqueza produtiva na medida em que permite destacar um preconceito e aferir sua validade histórica. Destacar um preconceito não é afastá-lo dos olhos nem depurá-lo pela abstração, mas visualizar nele a força operante e produtiva da tradição.
Um dos pontos mais críticos da hermenêutica de Gadamer é estabelecer uma linha de demarcação entre o preconceito que obscurece a interpretação e o preconceito que, ao receber o estímulo da tradição, permite fundar um acordo comum. É nesse contexto que Gadamer erige a tradição como instância de validação da estrutura prévia de compreensão. Na medida em que uma pré-compreensão se estrutura no estímulo que a continuidade histórica proporciona obtém sua validade intersubjetiva.
A história efeitual significa a força operante do passado que faz do tempo não um abismo, mas, pela continuidade, reverbera nas compreensões do agora. A compreensão não se limita a reproduzir um sentido já consolidado no passado, mas à cada situação revive e revigora-se na produção de novos sentidos que, não obstante, não se desalinham dos sentidos pretéritos. A tensão entre o passado e o presente é um desafio para o intérprete que, não sendo meramente passivo, também não pode ao alvedrio criar tudo como se fosse tábula rasa. A ênfase na tradição implica em compreender a subjetividade como espelho deformante.
O problema, como assinala Luigi Pareyson, não é a subjetividade em si, mas a subjetividade que se mantém fechada e insulada e não se dispõe à alteridade da verdade que emerge da historicidade. Gadamer, também, nesse ponto, não articula uma interpretação adequada de Hegel. É certo que Hegel põe ênfase no espírito objetivo, mas não limita a atividade do sujeito a uma inserção mecânica na objetividade. Nem a objetividade em Hegel deve ser entendida como algo alheio à subjetividade. Para Gadamer, Hegel hipostasia a subjetividade transcendental de forma que todas as operações do conhecimento, em última instância, remontam à reflexibilidade da subjetividade. Não parece que essa interpretação guarde consonância com o texto de Hegel (1).
Gadamer resgata o conceito de preconceito cujo destino foi obumbrado pelas tendências do iluminismo. O iluminismo propunha a crítica da tradição a qual sempre esteve vinculada ao poder factual insuscetível de questionamento. Dessa forma, a tradição se identifica com a opressão. Para Gadamer, tal perspectiva resulta exagerada, pois, existe uma legitimidade própria da tradição que não se conforma com o poder factual dos dominadores. Na linha da analítica do ser-aí de Heidegger, Gadamer confere ao conceito de tradição uma nova compleição e se lhe atribui a capacidade de legitimar as formas de comunhão inseridas na historicidade da linguagem. A linguagem passa a ser vista como um medium em que opera desde sempre um acordo, uma comunidade de pré-juízos. Nessa perspectiva, a tradição, em vez de figurar como instância opressiva, passa a ser cânone capaz de diferenciar e legitimar as antecipações estruturantes da histórica.
O texto, mergulhado que está na tradição, já está imbuído de estruturas prévias que orientam o intérprete. Aqui se flagra uma contradição que parece muito mal resolvida na teoria hermenêutica de Gadamer. Em várias passagens, ressalta a alteridade do texto, isto é, que o intérprete deve estar aberto ao que o texto tem a dizer, mas, ao mesmo tempo, assevera que somente pelo estímulo da tradição, pelo destaque de um preconceito, é possível asseverar a legitimidade de uma interpretação. Ao se dirigir a um texto, o intérprete não está vazio de pressuposições; na verdade, não há interpretação que não esteja inserida numa totalidade estruturante, numa totalidade de sentido de tal forma que o intérprete não encara o texto sem a mediação das estruturas prévias. Não obstante, a abertura a alteridade do texto é fundamental para que o intérprete não sobrecodifique o texto, impedindo o trabalho do texto. Como Gadamer resolve essa antinomia? Para ele, uma antecipação de sentido é fundada quando encontra ressonância no texto. Dessa forma, é o texto que valida os preconceitos – entendidos como estruturas históricas.
Mas, mesmo ressaltando a alteridade do texto, falece a Gadamer a compreensão da linguística moderna e seus aportes fundamentais para articular melhor a relação entre texto, autor e intérprete. O compreender o método como necessariamente alienante talvez tenha travado o desenvolvimento mais aprofundado das ciências do texto bem como ofuscado a compreensão das lições axiais que Schleiermacher antecipou acerca do método gramatical.
Por isso, Gadamer visualiza todo método como objetificante, tornando o objeto desvinculado da tradição a que pertence. A recusa de toda metodologia parece indicar que Gadamer nem sequer coloca o problema. Tanto é que mesmo evitando falar em interpretação correta, fugindo a toda implicação normativa de regras de intepretação, não afirma que, em toda a interpretação correta, os conceitos temáticos desaparecem naquilo que fazem falar na interpretação?
A falha do sistema de Gadamer é não situar corretamente a relação entre a subjetividade e historicidade e atribuir a todo método uma natureza reificante. Talvez por isso Gadamer tenha afirmado que os elementos subjacentes que operam na interpretação não se tornam conscientes e, mesmo diante de uma boa interpretação, desaparecem, comprometendo toda noção de método, que constitui elemento fundamental de toda hermenêutica. É preciso remarcar que a construção de métodos não significa, de per si, reificação do conhecimento, mas que a reificação que eventualmente possa ocorrer não é algo intrínseco ao genuíno método. Outrossim, nem todo método envolve um distanciamento alienante da realidade. Assiste razão a Gadamer ao afirmar que a pertença à histórica inviabiliza uma metodologia que se supõe acima dos condicionamentos. Todo conhecimento emerge de seres-em-situação, sendo enraizados na história. Não obstante, o fato de estar mergulhado na história não significa a impossibilidade de um saber objetivo e de métodos científicos dotados de objetividade.
Ainda que não tenha desenvolvido um método, Gadamer traz alguns aportes que são essenciais para a apreensão de qualquer hermenêutica. A inevitável historicidade do ser-aí significa dizer que sempre se está no horizonte de uma situação. Desde Kant, o conceito de horizonte tem vigência na filosofia alemã. ‘’Horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto”. Se em Heidegger justamente por estarmos já numa certa compreensão do ser o ser era oculto, Gadamer demonstra que a estreiteza do horizonte estar em ver apenas o que é próximo, limitando-se o âmbito de visão. Por isso, a boa interpretação é aquela em que o horizonte do intérprete se amplia e se alarga na medida mesma em que se movimenta e se abre ao trabalho do texto na superação dos obstáculos hermenêuticos. A ideia de horizonte também se articula com a dialética da pergunta e da resposta que Gadamer vai buscar no historiador britânico Collingwood. Ao interpelar as ações históricas dos agentes, Collingwood afirmava que toda ação histórica é a tentativa de responder às perguntas que emergem da situação. Ao perguntar a que questão os agentes históricos respondiam, é possível identificar o sentido histórico de suas ações. Ao incorporar essa tese, Gadamer afirma que a obtenção de uma situação hermeneuticamente fundada está em propor as questões que a própria tradição coloca e que ressoa nos textos. A obtenção de um horizonte não significa apartar o que está próximo, mas, por meio de um possível distanciamento, inseri-lo numa perspectiva mais abrangente. É sempre possível alargar o horizonte.
Para o intérprete, no que se refere ao aspecto gramatical, o distanciamento fundamental é a distinção entre as associações psicológicas e o significado das palavras. Desde Frege, a distinção entre representação e significado encontra cidadania na linguística. O verdadeiro intérprete suspende as representações subjetivas para partilhar em comum com o significado sempre de natureza comunitária e não só intersubjetiva. Por isso, a apropriação privada da linguagem demonstra que o intérprete não partilha da comunidade dos intérpretes, alheando-se ao ponto de avocar o direito de instaurar a linguagem a partir das próprias representações. Toda interpretação correta sempre envolve a participação num sentido comunitário. A questão que emerge é porque em certos momentos da história e sob que injunções um intérprete se arroga o direito de corroer a linguagem comum e impor suas representações como se fossem intersubjetivas. Marx, em Ideologia Alemã, afirma que a linguagem é a consciência prática e exsurge da necessidade de comunicação entre os seres humanos. A linguagem é desde sempre comunitária.
A reinvenção da hermenêutica passa pela recepção estruturalista de Schleirmacher, enfatizando-se não mais a analítica existencial de Gadamer, mas as ciências dos textos na dinâmica concreta das produções dos sentidos. Nesse sentido, Schleiermacher, na medida em que colocou a necessidade da hermenêutica não no acordo prévio, mas na urgência em resolver os ruídos de comunicação, sempre esteve atento à necessidade de erigir um método gramatical rigoroso capaz de fundar critérios para aferição de interpretações corretas e idôneas. Não deixa de surpreender que, muito antes de todo estruturalismo linguístico, Schleiermacher tenha estabelecido as premissas sólidas de uma ciência do texto. O retorno a Schleirmacher requer, portanto, superar a tradição psicológica com que sua teoria é incorretamente divulgada, para situá-la na juntura entre interpretação divinatória (autor) e interpretação gramatical (texto) e sua recepção (leitor) numa dialética fecunda e criativa em que os sentidos são produzidos de forma objetiva e comunitária sem qualquer disseminação corrosiva (2). Para este mestre, o falar comum é o remédio contra a irracionalidade que pode integrar as subjetividades fechadas e crispadas na aliedade (3).
- A interpretação de que a filosofia remonta todo o conhecimento às operações da reflexividade do sujeito de conhecimento é equivocada. A compreensão de A filosofia de Hegel é que a subjetividade, desde que se mergulhe no ritmo da coisa, pode alcançar a objetividade e a efetividade do conceito. Longe de Hegel de resumir o conhecimento aos meandros da subjetividade insulada.
- Friedrich Schleirmacher antecipou todas as conquistas da linguística de Saussure.
- Aliedade é a suspensão do mundo em voo imóvel e quebra da comunidade de comunicação. A aliedade, pois, se apresenta no intérprete que impõe ao texto suas representações (subjetivas), imaginando-se acima da comunidade e da história. Desenvolvi esse conceito com base na poética de Octavio Paz, poeta da alteridade e do encontro criativo com o outro. A interpretação correta é aquela que, suplantando a aleidade, agasalha a alteridade do texto.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
UMA NOTA SOBRE A QUESTÃO DO MARCO TEMPORAL E A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS DOS POVOS ORIGINÁRIOS
Ao humanista DALMO DALLARI
A interpretação do direito, na modernidade periférica, corre o risco de ser sobrecodificada pela colonialidade do poder que, no plano da linguagem, envolve a possibilidade de colonização dos sentidos comunitários e objetivos dos textos pelas representações subjetivas e ideológicas dos intérpretes. No contexto em que a colonialidade do poder se apresenta subjacente às práticas interpretativas, pode acontecer a distorção da analítica normativa com o objetivo de revestir de aparente legalidade interpretações absurdas que constituem atentados graves à ordem jurídica, sempre articulados para promover os interesses das classes dominantes em detrimento do sentido textual, intertextual e histórico do direito vigente.
Quanto à analítica jurídica, o jusfilósofo Lourival Vilanova, de forma profícua, estabeleceu que toda normas tem quatro âmbitos de validade: 1) o pessoal; 2) o temporal; 3) o material e 4) o espacial.(1)
A semiologia jurídica demonstrou que é possível, por meio da apropriação privada da linguagem, alterar os âmbitos de validade da norma com o objetivo de atingir situações, fatos e pessoas que estavam fora do alcance do espectro normativo ou limitar ou suprimir indevidamente um direito consagrado mediante a inserção de notas ou características que, não integrando a norma, são embutidas por meio de falácias criando-se a impressão epidérmica de que aqueles elementos imantam as normas quando são impostos pelo intérprete, afetando-se a consistência interna do direito para produzir efeitos externos prejudiciais a determinados grupos.
No caso das normas que reconhecem os direitos dos povos originários, as normas da constituição vigente – inscritas no art. 231- se referem sempre às terras tradicionalmente ocupadas e aqui o advérbio tradicionalmente, pelo seu teor literal, indica, clara e evidentemente, as terras que originariamente já são ocupadas pelos povos originários. O âmbito de validade temporal das normas do art. 231 remonta ao que originariamente pertence aos povos originários, inexistindo, no texto normativo, qualquer modulação temporal limitada ao marco específico da data da promulgação da constituição de 1988 ou outro marco ligado àquela data.
A validade temporal das normas consagradoras dos direitos territoriais dos povos originários não tem qualquer relação com o marco temporal a partir da promulgação da constituição – 5 de outubro de 1988- ou com qualquer outro critério vinculado àquela data. Inserir um marco ad hoc atropela o texto constitucional, altera o âmbito de validade temporal das normas referidas e vulnera a força normativa da constituição.
A questão é ainda mais grave quando é público e notório que a questão dos registros de propriedade no país sofre de absoluta falta de transparência e é questão pendente e padecente de atuação escorreita pelo Estado. A economia do projeto de lei 490/2007 mal disfarça que, valendo-se dessa indeterminação, a falaciosa noção de marco temporal objetiva expropriar as terras dos povos originários. O projeto de lei não passa pelo cotejo constitucional e constitui afronta aos três níveis básicos da interpretação jurídica, quais sejam: o textual, o estrutural e o histórico.
A metodologia jurídica permite identificar as interpretações que se inserem no arco hermenêutico -as possibilidades interpretativas legítimas- e as que, mediante a colonização dos sentidos, inserem notas ou aspectos alheios à tessitura textual da norma, criando-se novos textos, confundindo-se a atividade interpretativa- do judiciário- com a criação jurídica-legislativo.
Conforme salientava Pontes de Miranda, a topologia das normas – o lugar em que estão inseridas- pode servir de norte para a interpretação. Nos Atos das Disposições Transitórias Constitucionais consta regra sobre a demarcação das terras indígenas, a saber: “Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
A questão da demarcação, portanto, se insere no direito constitucional transitório que visa a estabelecer uma continuidade segura entre o passado anterior à constituição e o futuro de tal forma que o indigitado marco temporal vinculado à promulgação da CF de 88 vulnera, além do art. 231, o direito transitório e se revela como um sofisma destinado não só a restringir mas também a suprimir os direitos povos originários por meio da desfiguração do direito vigente.
Causa pasmo que, após quase 33 anos, a norma do art. 67 voga no limbo jurídico das normas desprovidas de eficácia jurídica. Mas sempre é tempo de colher a constituição pela palavra e fazer valer sua força normativa. (2)
- A importância da Arquitetônica Jurídica Analógica decorre da necessidade de articular as categorias epistemológicas que ensejam a aplicação segura do direito. Sobre os três níveis da interpretação jurídica ver o capítulo I, sobre a colonialidade do poder como obstáculo hermenêutico à eficácia das normas constitucionais ver o capítulo 2 e 8, ambos do livro “As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.
- O caráter performativo da constituição não se confunde com gesto vazio, mas serve para enfatizar a necessidade de engajamento social no uso público da razão e do intérprete na comunidade de comunicação instaurada pela constituição, realizando de forma objetiva os sentidos comunitários nela talhados. É o que o filósofo espanhol André Ortiz chama de hermenêutica da implicação em que a subjetividade do intérprete, em vez de se fechar, abre-se à historicidade objetiva do texto.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.
MARIATÉGUI E A TAREFA LATINO-AMERICANA
“Aquele que sai da contemplação e desce à realidade pode colher mil flores”, Mao Tsé-Tung.
O dogmático, na fabulosa definição de Mao Tsé-Tung, é aquele que impõe à realidade sempre cambiante esquemas teóricos prévios, ignorando a necessária articulação entre a universalidade e a particularidade. Rechaça-se o positivismo acrítico que supõe uma realidade dada e imutável, como contraposição vazia do pensamento, e, ao mesmo tempo, o idealismo que se evade em conceitos altaneiros sem qualquer capacidade de se enriquecer com a realidade. O apelo teórico da dialética é que, saindo da posição plácida da contemplação, o teórico dirija-se à realidade porque, se souber ver, há de colher mil flores. É um chamamento poético para haurir na realidade os elementos para a transformação.
Engels, em livro sobre Feuerbach, afirma que a proposição hegeliana de que o “real é racional e o racional é real’’ não é a santificação do que existe enquanto tradição arraigada e opressiva, mas a mirada da disjunção entre o velho e o novo porque o real não coincidindo completamente consigo mesmo pode dar ensejo a algo novo.
A tarefa latino-americana é, portanto, profundamente dialética. José Carlos Mariatégui mostrou que aplicar esquemas prévios rígidos para uma realidade sempre movente não enseja teorias adequadas e anunciava a tarefa latino-americana: romper com a concepção colonialista da tradição e promover uma leitura crítica da tradição e a colocação da questão da raça em termos econômicos e sociais.
O movimento crítico da tradição não se confunde com a nostalgia romântica de um tempo primevo e paradisíaco, mas se trata de uma reintegração histórica e uma ruptura da tradição unívoca e monolítica, exigindo, então, uma inflexão no pensamento marxista que deve enfrentar a questão indígena, tema inexistente no marxismo europeu.
As formações sociais da América Latina, para retomar o conceito de René Zavaleta, são “abigarradas’’ em que a questão da raça, gênero e classe estão imbricadas, repercutindo no plano econômico, político e ideológico de forma que a análise dogmática, além de efeitos nefastos de compreensão, engendra efeitos políticos nefastos (1).
Afirma Mariategui:
“O problema das raças serve na América Latina, na elaboração intelectual burguesa, entre outras coisas, para encobrir ou ignorar os verdadeiros problemas do continente. A crítica marxista tem a obrigação inadiável de coloca-lo em termos reais, desprendendo-o de toda tergiversação ou pedantismo. Económica, social e politicamente, o problema das raças, como o da terra, é, em sua base, o da liquidação do feudalismo” (2).
A questão da raça na América Latina está jungida à questão do imperialismo. As classes dominantes – oligarquias brancas- introjetam os ‘valores’ do imperialismo e não nutrem qualquer alteridade em relações aos povos originários, fomentando um conceito fechado de nação da qual apenas os dotados dos atributos da branquidão participam.
A ênfase no narcisismo das pequenas diferenças- pigmento da pele, origem étnica- serve para acicatar políticas de inimizades que se expressam, sobremodo, na investida do capital representado pela oligarquias sobre os territórios dos povos originários, na subsunção de formas arcaicas de produção e na maquinaria de políticas criminais de morte.
Mariatégui discutiu o tema da terra no modelo teórico do feudalismo. Na verdade, se articularmos, como Marx o faz no Manifesto do Partido Comunista, a descoberta da América como elemento central na constituição da modernidade e do capitalismo, o tema do feudalismo precisa ser superado pela análise de como o modo de produção capitalista, desde sua gênese, subsume o escravismo colonial, seja dos negros nos sistemas de plantação, seja dos índios na encomenda e outras formas arcaicas de produção. E, no evolver, no surgimento das sociedades industriais, não só discutir a questão do exército industrial de reserva, mas a continuidade da acumulação primitiva pelas oligarquias brancas pelo modelo extrativista do próprio estado e pela política de desapossamento dos povos originários (3).
No livro Os quilombos como novos da terra, demonstramos que a acumulação primitiva do capital é uma tendência intrínseca e contínua do capitalismo e que consiste na expropriação violenta, sutil ou explícita, contínua e sistemática da base fundiária dos camponeses e dos povos originários. O capitalismo, para se reproduzir como modo de produção extrativista do trabalho, busca, de todas as formas, a expropriação da base fundiária dos camponeses e, na América Latina, dos povos originários para formar contingentes que serão inseridos na sobre-exploração do capital ou subsumidos na políticas de morte.(4)
Já em 2008, no texto A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, tínhamos enfatizados que, diante do corte unívoco das formações sociais ocidentais, tudo que foge da estruturação colonial do poder, é lançado na irracionalidade e na patologia. A tentativa de encontrar o crime em traços antropológicos cumpre a função hegemônica de estabelecer o Outro excluído como a figura fantasmática do mal e da potencial ameaça. Os arranjos ideológicos e imagéticos dessa concepção são propalados cotidianamente de forma a constituir um imaginário que justifique um arremedo de legítima defesa que, sob o pretexto de afastar o mal, instaura políticas de mortes. Se o outro excluído coloca em questão a forma social excludente, apresenta-se, de acordo com a ideologia colonial, como ameaça à ordem da propriedade privada e à pilhagem estatal pelas classes dominantes.
A própria desordem social, causada por determinações sociais e econômicas, é manipulada para reforçar os efeitos da ordem colonial. Em vez de buscar compreender as razões das injustiças, todas as contradições são lançadas ao plano da patologia: o conflito é catalisado pela lógica ideológica, sendo apresentado como problema de índole moral-individual. A política criminal que ganha compleição estatal em alguns cantões da América Latina é orientada pela noção nefasta de traços antropológicos e, imbuída de acendrado racismo, instaura políticas de inimizades que redunda na produção sistemática da morte.
Na verdade, a velha cantilena liberal da liberdade negativa é decantada para fazer de uma questão econômica uma questão de ordem individual. Hegel ao colocar a questão econômica no sistema de ética, inverte a posição liberal e afirma que não há que falar em liberdade sem a concretização dos direitos materiais, dentre esses o direito de manter-se em vida, exigindo-se, portanto, profundas alterações de ordem econômico-social.
A tarefa latino-americana, na linha de Mariatégui, articula-se com a necessidade ver o enclave da raça, gênero e classe na lógica dialética sem qualquer dogmatismo e pensar estratégias de profundas transformações política e econômicas.
- É difícil traduzir a expressão ‘abigarrada’ de forma que é mais profícuo preservar a riqueza que tem no original.
- MARIATÉGUI, José Carlos. La tarea americana. Buenos Aires: Prometeu Livros, CLACSO, 2010.
- Há que fazer uma análise foucaultiana de obras que, a pretexto do desenvolvimento, são feitas em terras dos povos originários, expropriando-os dos seus territórios, cuja dimensão ultrapassa a relação de posse com a terra.
- Sobre a subsunção de formas arcaicas de produção pelo capital e sobre o giro descolonizador ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.
ALBERTO GUERREIRO RAMOS: A DESTINAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA MODERNIDADE PERIFÉRICA
A FIDEL CASTRO E A TRAN-DUC-THAO
“Os antagonismos essenciais da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na polaridade, estagnação e desenvolvimento, representados por classes sociais de interesses conflitantes, e ainda entre nação e antinação, isto é, um processo coletivo de personalização histórica contra um processo de alienação”
A redução fenomenológica encontra seu motivo na meditação do cogito. Descartes começa por colocar em questão todos os objetos que se apresentam aos sentidos e, para evitar uma regressão ao infinito, chega ao reconhecimento de que se pode duvidar de tudo, mas não de que se duvida. A dúvida metódica desemboca na afirmação de uma verdade inquestionável: o cogito enquanto substância que pensa. Pelo exercício da dúvida metódica, o cogito enquanto instância da certeza é fruto dessa suspensão da apreensão dos objetos exteriores.
Em Edmund Husserl, a redução, mesmo partindo do cogito, avança no sentido de compreender que o questionamento radical do mundo objetivo não significa a diluição da objetividade, mas a apreensão da correlação originária entre consciência e mundo. A atitude natural na medida em que se torna inquestionada e tornada hábito impede o descortinar da relação originária com o mundo. Por isso, a redução significa o questionamento constante da atitude natural na pretensão de buscar readquirir a situação originária da relação entre consciência e mundo. (1)
A própria atividade científica, ao esquecer que surge das demandas da vida operante, acaba por se alienar completamente. Não se trata apenas de que os princípios operatórios subjacentes à construção de um sistema não são conscientes ao próprio sistema, mas da relação da ciência e o mundo da vida. Em Husserl, o mundo da vida é limitado a uma esfera espiritual, esvaindo-se em materialidade. Já Alberto Guerreiro Ramos confere à redução fenomenológica um novo campo de imanência e o mundo da vida ganha materialidade. A redução sociológica consiste, pois, em depurar um objeto de estudo dos referenciais que o emolduram para permitir sua apreensão correta nas particularidades concretas.
No contexto marcado pela colonialidade do poder, o efeito de prestígio de imitar certos autores se torna maior do que a busca genuína da compreensão. A redução sociológica, ao se insurgir contra o mero decalque teórico acrítico, desoculta um objeto do sistema de referências produzido pelo contexto colonial, desembaraçando-o de todos os obstáculos epistemológicos, garantindo-se a percepção adequada dos fenômenos na inteireza de seu contexto.
Por isso, Guerreiro Ramos reivindicava a necessidade premente de se empreender um uso sociológico da sociologia, buscando superar a identificação simplista do trabalho teórico ao mero acúmulo de informação da literatura estrangeira em cuja literalidade estariam os dados concretos da realidade nacional. Os esquemas teóricos, hauridos na literalidade emergida de outros contextos, são impostos à realidade a ser observada, gerando efeitos deletérios na apreensão da realidade.
Alberto Guerreiro Ramos define a redução em três sentidos básicos: 1) a redução como método de assimilação crítica da sociologia estrangeira; 2) a redução como atitude parentética, isto é, como elevação à consciência dos fatores que determinam uma situação, permitindo uma intervenção consciente e producente a efeitos prefigurados racionalmente; 3) A redução como crítica do saber oficial vigente. (2)
Em síntese, a redução sociológica é uma atitude metodológica voltada ao desenvolvimento da capacidade de o sociológico de se desembaraçar dos pressupostos alienantes e desorientadores do colonialismo mental para poder estabelecer uma linha justa das questões centrais às formações sociais a que integra. Requer, sobretudo, uma compreensão da relação complexa entre a universalidade e a particularidade. Nem substancializar o universal de forma a negar a necessidade de apreensão da realidade em seus aspectos mais capilares. Nem hipostasiar o particular de forma a associá-lo à dispersão lógica do que é insuscetível de apreensão teórica. Trata-se de entender a universalidade concreta.
Louis Althusser já tinha assinalado que o fazer ciência já traz implícito um conjunto de princípios operatórios que, no mais das vezes, são inconscientes e que, por isso mesmo, determinam a percepção de um determinado fenômeno. Diante disso, afirma a necessidade de uma linha de demarcação que seja idônea a estabelecer a forma com que o saber científico seja funcional à formação social de que faz parte o sociólogo, permitindo uma autoconsciência social dos problemas para mais bem articular as soluções.
A redução sociológica, tendo em vista o contexto colonial, estabelece uma linha justa de demarcação, habilitando o sociológico, na medida em que for capaz de penetrar na dinâmica concreta das nações periféricas, a se tornar um momento de autoconsciência social e, pela elucidação que elabora junto às massas, um indutor do processo histórico de autodeterminação. O exercício da crítica do saber hegemônico revela-se essencial. A transplantação acrítica de teorias estrangeiras impede que as formações sociais periféricas entendam o seu próprio processo econômico-social. Vejamos um exemplo: Giovanni Arrighi, renomado economista, afirma em livro propalado: “A democracia parlamentar nunca se sentiu em casa na semiperiferia”.(3) Trata-se de enunciado ideológico que confunde causa e efeito, pois deixa de auscultar quais as razões pelas quais a democracia não se realiza nos países periféricos. Procurar as razões significaria deparar com o imperialismo e a necessidade de pensar a realidade. O enunciado seria correto se afirmasse que o centro capitalista sempre busca coarctar a emergência democrática nos países periféricos, por meio de golpes ou por meio de guerras híbridas.
A redução sociológica compreende que a batalha das ideias não é idealismo, mas está inserida na cruenta refrega política. Na modernidade periférica, as ideias tem pesada materialidade. Guerreiro Ramos o sabia e a redução sociológica foi um grito para que, na dispersão a que são forçadas as formas sociais periféricas, uma unidade pudesse ser produzida na força da ideia e da virtude sonhando que as massas emergissem em organizações de disciplina coletiva. A sociologia, nesse contexto, erige-se como instrumento de autodeterminação dos povos.
- O sentido da redução como resgate da vida prática não somente aproxima, mas leva muitas vezes ao marxismo. Trand-Duc-Thao, esse grande filósofo vietnamita, é exemplo dessa energia interna da fenomenologia a se encaminhar ao marxismo. Trata-se de um dos maiores filósofos da história cuja obra deve ser estudada e pensada.
- Obras do inesquecível mestre baiano: RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica. Rio de Janeiro: 1965; RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.
- ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petropólis, RJ: Vozes, 1997, p. 232. Na verdade, justamente quando as formações sociais que, na divisão internacional do trabalho são periféricas, se engajavam na luta por autodeterminação logrando desenvolvimento, surge a ideologia do não desenvolvimento. Um sociólogo até escreveu que se deve buscar alternativa ao desenvolvimento. Não há que tergiversar: as formações sociais devem, desde que numa integração do metabolismo ser humano e natureza, buscar o desenvolvimento econômico. Pretendo, em trabalhos futuros, demonstrar as repercussões da redução sociológica nos mais variados campos.
Por: Luís Eduardo Gomes Nascimento, advogado e professor da UNEB.
ELOGIO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO
A Frantz Fanon, Robert Nesta Marley e Mariele Franco (1)
Afirma-se que o século XX teve, no plano filosófico, uma destinação vinculada ao giro linguístico ou à virada ontológica. O giro linguístico se caracteriza pela ênfase na transcendência da linguagem que, entendida como medium, alberga as condições do entendimento mútuo aos quais pragmaticamente estão todos vinculados de tal forma que a corrosão dessas premissas só é possível com a destruição das próprias condições do diálogo. A linguagem figura não mais como representação do mundo, uma espécie de reflexo passivo, mas como estrutura simbólica do mundo. Essa tendência de encontrar na linguagem um terreno a salvo da colonização da razão instrumentalizada à lógica do capitalismo encontra na teoria da ação comunicativa de Habermas uma consumação plena.
A linguística moderna sempre se inseriu na relação complexa entre a semântica, entendida como teoria da referência extra-linguística, e a pragmática, que consolida a mirada nas situações concretas dos atos de fala de forma a vislumbrar um a priori compartilhado repassado por tradições culturais, decisões institucionais. Na pragmática, o mundo do inteligível é destranscendentalizado na medida em que as antecipações pragmáticas das situações de fala indica o mundo da vida como pano de fundo que condiciona a experiência social.
Haurindo em Husserl o conceito de mundo da vida, articula-o como pano de fundo das experiências sociais, como uma camada pré-temática de sentido que funciona na qualidade de posição prévia para a compreensão e para orientação social na medida em que traduz uma forma de vida redutora da contingência. Nesse sentido mais amplo, o mundo da vida serve para explicar a forma do laço social e erigir o agir comunicativo em que as interações intersubjetivas prefiguram o entendimento enquanto acordo comunitário. O agir comunicativo, ao implicar na superação do esquema sujeito-objeto, aposta no paradigma da intersubjetividade em que os sujeitos sociais, na medida em que vinculados à pretensão de verdade, podem, mediante o diálogo, chegar ao entendimento, isto é, ao acordo sobre uma coisa no mundo.
A entronização por Habermas da categoria de mundo da vida como pano de fundo para uma ação comunicativa voltada ao entendimento mútuo e à correspondente ideia de que, na fatualidade, existe a idealização virtual do consenso constitui uma forma de fuga diante da reificação do trabalho bem como da criação de uma zona espiritual cujo efeito persuasório diminui quanto mais se torna ilusória.
A ideia de que existem expectativas contrafácticas nas quais as condições do diálogo já estão presentes e que funcionam como pano de fundo ineliminável resta idealista. Ainda que Habermas reconheça formas violentas que corrompem o discurso, a identificação da linguagem como lugar da razão que universaliza o acordo na medida em que, na instauração do visar ao outro, subjaz as condições transcendentais do diálogo e do entendimento, não ignora as relação de poder instaurada de forma violenta? Contrafático é o que, mesmo não tendo efetividade, mesmo contrariando a dinâmica dos fatos, permanece ainda válido. Não é uma forma de idealizar uma comunidade para evitar o confronto com as formas fáticas de dominação? A idealização da linguagem como lugar do acordo não corre sempre o risco de santificar a dominação, fática, dos espoliadores? Não seria a ênfase no medium linguístico uma forma de reservar uma ilusória forma de comunidade para fugir da dor de milhões de pessoas no cotidiano, isto é, da ausência de comunidade ali onde a questão da reprodução da vida é central?
Ao substituir a categoria do modo de produção pelo mundo da vida, Habermas, esse grande filósofo, se afasta completamente do marxismo. O itinerário de Habermas da teoria crítica até à noção de uma democracia consensual na forma de autolegislação concretizável mediante procedimentos em que, pela co-originariedade da autonomia privada e da esfera pública, a formação da opinião e da vontade seja a mais abrangente de forma a levar a conclusão provável de que todos aquiescem com o conteúdo produzido, indica uma aproximação com o pensamento liberal. A legitimidade se confunde com a gênese democrática das leis. Não se vê, portanto, qualquer debate da economia e das contradições da sociedade. Na verdade, o próprio Habermas afirma que sua teoria se faz para evitar o risco do dissenso. Mas, conforme diz Rancière, as formações sociais não se resolvem numa conta perfeita e que a placidez das classes dominantes pode ser interrompida pela emergência dos não contados, emergindo as contradições. Enfim, se há política é porque o dissenso pode ganhar figura, questionando a ordem colonial.
Quanto ao destino ontológico, Heidegger inaugurou, colhendo as melhores intuições de Husserl, a compreensão do ser. A distinção entre o como apofântico enquanto terreno dos juízos lógicos estruturado na relação entre um sujeito e um predicado, o que na figuração simbólica se expressa “A é B”, e o como hermenêutico enquanto dimensão existencial que condiciona a enunciação, indica uma referibilidade à vida prática.
De fato, é um avanço reconhecer que um juízo tal como ‘o céu é azul’ não se consubstancia sem uma visão prévia, posição prévia do que seja céu e do que seja azul. Heiddeger, em diversas passagens, afirma que a vida prática, mesmo que não se expresse em enunciados, ainda sim é teórica.
Aqui, verifica-se que o como hermenêutico enquanto vida antepredicativa encerra sentidos prévios emergidos da experiência e não de celestiais conceitos, avançando para a retomada de aspectos que uma teoria do juízo é incapaz de responder. Não obstante, em Heidegger, o mergulho na vida prática sempre está associado ao prostrar-se decadente à lógica das coisas, e pela fuga diante dos afetos, como a angústia, que poderiam indicar uma abertura ao mundo e ao questionamento.
O tema do cotidiano revela-se meramente negativo na medida em que indica o mergulho no si impessoal e na fuga da questão metafísica sobre o sentido do ser. À inautenticidade de um mero viver à maneira de coisas, Heidegger opõe, ao menos em Ser e Tempo, a assunção do destino do ser humano à essência que lhe cabe: pensar o ser.
O evento, nessa senda, é apropriação do destino do ente cuja essência é pensar, não o seu sentido próprio, mas o sentido do ser. Por isso, Heidegger recusou a ideia de Sartre, presente na conferência O existencialismo é humanismo, de que o ser humano é o único ser cuja existência precede a essência, pois, primeiro existe, mas, dentro do horizonte do tempo, escolhe o que vai ser. O que Heidegger critica é o fato de Sartre reduzir a questão ontológica à questão antropológica. Portanto, a saída para vida inautêntica seria o evento de se apropriar do pensar cuja destinação é pensar o ser para além de qualquer ente ainda que somente pelo ente a questão do ser se torna visível.
Em Heiddeger, as análises do cotidiano, muitas vezes, se aproximam da análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Diante de um determinado objeto, Heidegger apreende elementos que estão articulados à experiência cotidiana numa visão mais abrangente, atingindo um sistema de referências que, apesar de não vinculados ao modo de produção, já apresenta dimensões da realidade que uma teoria do juízo não abarca.
A própria figuração do conhecimento como a relação entre um sujeito cognoscente, desprovido de historicidade, e de um objeto de estudo, destituído de movimento, é superado pelo reconhecimento da facticidade do ser-aí que, desde sempre, já está mergulhado numa visão prévia do mundo. Toda compreensão já está estruturada numa pré-compreensão. O círculo hermenêutico, diz Heidegger, não é um círculo vicioso. A questão, nesse contexto, não é negar o círculo, mas saber se inserir nele desde que as pré-compreensões sejam norteadas e voltadas à retomada das coisas mesmas. Mas em que consiste esse retornar às coisas mesmas?
A filosofia da libertação, na linhagem de Levinas e desenvolvida por Enrique Dussel, parte da ideia de que a ética é a filosofia primeira e não se concebe como construção de enunciados. Significa, sobretudo, uma atitude diante do desafio que o rosto do Outro, o Outro excluído, lança à filosofia que, rompendo a ontologia do neutro, assume a responsabilidade desinteressada diante de outrem. Se a rostidade em outros pensadores se apresenta como a figura do poder, na filosofia da libertação, ao partir desde a América Latina e das contradições lancinantes e pungentes das formações submetidas à espoliação colonial, o Rosto é sempre o rosto dos indígenas, dos negros, das mulheres, das crianças. A filosofia da libertação se engaja na totalidade aberta em que a questão da classe, gênero, raça e faixa etária demanda uma lógica analógico-dialética. É dos rostos, que colocam em questão, na premência de sua presença, desde um não-lugar, a injustiça intrínseca das formações sociais capitalistas, que a filosofia da libertação parte. (2)
Mas o responder à interpelação do Outro exige, operando-se a redução fenomenológica, chegar à vida operante, reconhecendo-se que nem todos integram a comunidade de comunicação, que a brutalidade do poder nas formações periféricas não instaura nenhuma comunidade já que prevalência do ego colonial rompe sistemática e diuturnamente as premissas básicas do discurso, dentre elas, o reconhecimento do outro como legítimo outro. A análise da limitação da comunidade da comunicação à branquidão exige um giro decolonial que, inevitavelmente, vai se ver a braços com a centralidade da discussão econômica.
Esse giro é de fundamental importância porque o que caracteriza a filosofia denominada pós-moderna é a neutralização da questão econômica e a decorrente resignação ou, pior, da capitulação ante o capitalismo. A demonstração da limitação da comunidade da linguagem, inclusive pelas análises dos confrontos históricos, faz que a filosofia da libertação tenha visto a necessidade de estabelecer a pragmática econômica antes da pragmática linguística.
Sendo o modo de produção capitalista marcado pela lei absoluta da produção de mais-valia, isto é, pela extração de mais-trabalho, e, tendo em vista a divisão internacional do trabalho na dinâmica mundial, verifica-se que, na América Latina, a irracionalidade do capitalismo se acentua em contradições expressas em formas de exploração ainda mais intensa do que as existentes no centro do sistema-mundo.
A totalidade do capitalismo é autorreferente e se enucleia na necessidade de reproduzir as condições para a produção de mais-valia nada tendo que ver com as necessidades reais dos seres humanos. Totalidade tão fechada que a vida humana nada mais é que um mero episódio na produção de mais-valia (3). Mas todo sistema autorreferente encontra aporias e contradições que abalam sua consistência superficial e ideológica.
Desde Hegel, a concentração de riquezas sempre esteve intrincada com a produção de desigualdades. O que abala a totalidade fechada do capital é a presença da exterioridade do Outro cuja apresentação é irrepresentável na juntura da laminação unívoca da ordem e, na medida em que se organiza e busca furar os espaços pétreos das hierarquias, evidencia as injustiças e anuncia a crítica e a práxis transformadora. Toda tarefa reativa da ordem é para fazer o Outro irrepresentável apenas representado na dinâmica interna colonial sob a perspectiva do inimigo. Imagens, representações e aparatos coercitivos são mobilizados para que a verdade traumática da injustiça intrínseca da totalidade autorreferente não se manifeste nas suas fragilidades, para que se coarcte, de todas as formas, a elucidação advindas das formas organizativas das classes dominadas e dos intelectuais orgânicos.
A filosofia da libertação, portanto, encontra-se no plano de imanência em que a premissa da ética do Outro exige a critica das formações econômicas na modernidade periférica: a injunção de ouvir as vozes históricas dos pobres engaja a necessidade de transformação da economia desde outras bases, desde a superação analética da lei absoluta da extração de mais-trabalho, que informa o capitalismo.
Podemos afirmar, com Aristóteles e com Hinkellamert, que, no capitalismo, a economia deixar de ser o lugar de reprodução da vida para se converter em crematística, isto é, o lugar de circulação do capital financeiro sem qualquer mediação produtiva. No estágio atual do capitalismo, a economia vira um espectro sem qualquer natureza produtiva (7).
Em Verdade e Método, Gadamer afirma que a filosofia se realiza na escuta do logos, para a filosofia da libertação, e a geração que o segue, a filosofia se realiza no cruzamento entre a ética e a política e a pragmática econômica, para, ouvindo as vozes dos povos desapropriados, possamos no apropriar coletivamente da vida em suas mais variadas dimensões. Devemos perguntar: que novos mundos podemos fazer coletivamente? (8)
- Poema que dediquei a quem viveu a ética da coragem:
Todo nome de Maria esplende em teu périplo
São mães Luandas, mãos de Dakar
Toda Maria colheu no vão dos negreiros navios
Teceu e urdiu teu estandarte para que pudesse cerzir
Em dor e festa a consagração de uma aurora inexorável
No abismo do tempo alteiam-se
A maré e a fibra das verdades gizadas pelo teu passo;
O peso do chumbo e a covardia dos salteadores
São inócuas para desbotar as amoras e as américas nascidas
Em tuas madeixas
Porque o que movem Marias se alinha aos equinócios dos povos,
Todas as constelações expandirão mais brilho até ofuscar as opressões
No instante mesmo em brotam mais Melodias
E a certeza de que a história irá parir mais de teus filhos
Todo nome de Maria, Marielle, esplenderá
- O desafio da linguística é resolver essa dualidade. Habermas, em outras obras, reinvindica o conceito de objetividade e de referência, incorporando aspectos da semântica.
- Penso que à ontologia de Heidegger é preciso opor a ontologia de Levinas e da Badiou.
- Em Teoria do Sujeito, livro fundamental e de atualidade gritante, Badiou usa o termo fora-do-lugar (horlieu) para fundar a lógica dialética. O que está inscrito sob a forma de opressão é o que, quando se organiza, questiona o Um enquanto organização dos lugares da dominação. A meu ver, Teoria do Sujeito é a obra mais importante de Badiou, cujo estilo difícil faz torcer a língua francesa para mais bem expressar na língua mesma a torção dialética. Obra fundamental para quem quer compreender a lógica dialética.
- No Livro Apel, Ricoeur, Rorty y la filosofia de la libertácion, Dussel apresenta o modo como Alvarado sobrecodifica o texto Bíblico sobre o texto do Popol-Vuh dos Mayas. A análise das sobrecodificações eurocêntricas são cruciais para a consolidação da hermenêutica decolonial.
- Penso que a crítica de Dussell é dirigida à noção de totalidade fechada e não à totalidade aberta, que caracteriza a verdadeira dialética. A remissão a Sartre confirma essa tese.
- O filme Cosmópolis, de David Cronenberg, demonstra a disseminação do capital que se desgarra de qualquer atividade produtiva para se tornar a circulação autorreferente de dinheiro: o capitalismo como espectro. O processo de desindustrialização da América Latina é uma prova dessa tese.
- O grande desafio teórico-prático é pensar as formas de organizações coletivas que tenham a capacidade de formar um bloco nacional-popular-revolucionário. Nesse sentido, Alberto Guerreiro Ramos, já nos de 1960, salientava que a teoria da organização é a chave-mestra para a disciplina coletiva das transformações. Nesse sentido, a forma-partido não está perempta, mas deve ser capaz de fazer o trânsito entre os movimentos de bases e a institucionalidade sem fetichizar-se e ter um programa capaz de aferir a totalidade. Também, o corte para definir a esquerda se torna mais simples: é de esquerda quem luta a favor de um novo modo de produção. O resto é pálida oposição consentida e bazófia. Ver: RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA DA OBRA DE ENRIQUE DUSSEL
- DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofía de la liberación: superación analéctica de la dialectica hegeliana: Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974. Obra fundamental para entender o método analético.
- DUSSEL, Enrique. 20 tesis de política. México: Centro de Cooperação Regional para la Educación de Adultos da América Latina y el Caribe, 2006.
- DUSSEL, Enrique. El último Marx y la liberación latino-americana: un comentario a la tercera y a la cuarta redacción de “El Capital’’. Obra fundamental para fundar a verdadeira ortodoxia marxista. Nela, os conceitos de trabalho vivo, subsunção e, especialmente, a distinção entre valor e fonte criadora de valor se apresentam no esclarecimento cabal de Marx. Seguindo a linha desse grande filósofo, desenvolvi esses conceitos marxianos. Ver: NASCIMENTO, Luís Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.