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O CONCEITO DE NATUREZA NO MARXISMO

Da mesma forma que se atribui ao idealismo alemão o erro de conceder à natureza um determinado lugar para logo sublimá-la, diz-se que Marx e Engels concederam à natureza um lugar abstrato. Ao analisar as bases do pensamento metafísico, Habermas assinala:

“O próprio Marx não reflete sobre o nexo entre a natureza em si, natureza para nós e sociedade. A dialética da natureza de Engels, a ampliação do materialismo histórico para o dialético, tornou evidente a recaída no pensamento pré-crítico.[1]

A assertiva não se sustenta. Para demonstrar o equívoco, resgatemos a categoria de negação que figura, ao mesmo tempo, no plano epistemológico e no plano ontológico. O método dialético confere um sentido novo à negação. Negar, em dialética, significa, na verdade, em determinar de forma que uma coisa, ao se inserir num sistema, somente se expressa de acordo com os imperativos internos desse sistema, excluindo-se outras determinações possíveis. Por isso, significa entender a realidade não como objetividade morta, mas cingida pelo caráter processual-dinâmico em que a negação da negação revela o movimento das coisas.[2]

Conforme afirma Engels:

“Negar, em dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Espinosa dizia: omnis determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo, uma negação. Além disso, o caráter da negação obedece, em primeiro, à natureza geral do processo, e, em segundo lugar, à sua natureza específica. Não se trata apenas de negar, mas de anular novamente a negação. Assim, a primeira negação será de tal natureza que permite que seja novamente possível a segunda negação. De que modo? Isso dependerá do caráter específico do caso concreto. Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o inseto, esta se executando, inegavelmente, o primeiro ato, mas torna-se impossível o segundo. Portanto, cada coisa tem um modo especial de ser negado, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento, acontecendo o mesmo com as ideias e os conceitos”[3]

Ao entender o sentido dialético da negação, é possível diferenciar o processo de trabalho do processo de valorização. Operando-se uma variação imaginativa em que se suprime mentalmente todas as formas de organização social, chega-se à essência do trabalho enquanto interferência teleológica na natureza para se obter os meios de existência. 

 O processo de trabalho consiste na eterna necessidade de mediação entre o ser humano e a natureza, independentemente da forma com que o trabalho é subsumido numa determinada formação social. Como Marx e Engels já tinham remarcado em A Ideologia Alemã:

“Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por qualquer outro critério. Mas os homens começam a se distinguir dos animais desde que quando começam a produzir seus meios de existência, passo este que é consequência mesma de sua organização corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua vida material.”[4]

Já o processo de valorização se expressa na forma com que cada formação social subsume o processo de trabalho[5]. Ou seja, na forma com que o trabalho é determinado em cada sociedade específica. No caso do capitalismo, o trabalho vivo é subsumido sob a forma de trabalho assalariado. Ao ocorrer apropriação dos meios de produção pelas classes dominantes, há uma ruptura entre o trabalhador e os meios de produção de forma que o trabalhador, privado que é dos meios de produção e da propriedade individual, é forçado a colocar a potência criadora de sua corporalidade viva como mercadoria. Por isso, há uma diferença muito grande entre a determinação do valor trabalho pelo salário e a determinação pelo trabalho vivo.

Uma intuição básica de Adam Smith é de que o elemento comum às mais variadas mercadorias é a quantidade de trabalho. O valor da mercadoria se coaduna com a quantidade de trabalho necessário para sua produção. Não obstante, não há coincidência analógica entre o valor do salário e a quantidade de trabalho expressa na mercadoria. A mais-valia, isto é, trabalho não pago, só se desvela quando, perscrutando a subsunção capitalista do trabalho, percebe-se a distinção entre a determinação do valor pelo salário e pela determinação pelo trabalho vivo. O processo de valorização do capital significa justamente a produção de mais-trabalho, de um excedente decorrente da exploração da força de trabalho. Nesse contexto, tanto o trabalho vivo quanto a natureza não são vista em si mesmas, mas como meios preordenados ao processo de autovalorização do capital, de produção de excedente.

O conceito de natureza em Marx, então, aparece quando da análise do processo de trabalho. Para Marx, a natureza é o corpo não orgânico do homem, meio natural que o condiciona e matéria com que, mudando as formas naturais, produz os meios de sua própria existência. Superando a dicotomia ocidental entre corpo e alma, alude às qualidades físicas e espirituais da corporalidade viva, podendo-se falar, também, nas qualidades físicas e espirituais da natureza. O cerne do pensamento ecológico de Marx é superar qualquer visão da natureza enquanto objeto, compreendendo-a na dinâmica da eterna necessidade de o homem se engajar no metabolismo da natureza para produzir seus meios de existência. Nas análises do marxismo, já se pressente todas as consequências da crise ecológica.  O que está em jogo, no momento de pandemia, é a ruptura no metabolismo ser humano e natureza, colocando-se em risco o futuro da humanidade. A tarefa, então, é criar um modo de produção que possa se apresentar como ecossistema salutar, permitindo o livre desenvolvimento de todos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.


[1] HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 49.

[2] O conceito de negação em Hegel é fundamental para superar a epistemologia positivista.

[3] ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 120-121. Foi com base na leitura do eterno mestre Enrique Dussel do conceito de negação que desenvolvemos a distinção entre valor e fonte criadora de valor. A meu ver, a melhor forma de homenagear um grande filósofo é fazer uso dos seus conceitos e leituras mais do que recitá-lo na literalidade. A natureza e o trabalho vivo são as fontes criadores de valor. No capitalismo opera-se sob a forma de propriedade privada (que não se confunde com a propriedade individual) e a mais-valia. Há que desenvolver a categoria de mais-valia fundiária, urbana e rural. Não é por acaso que o capitalismo só sobrevive à medida que socava as duas fontes criadoras de valor. Há que pensar novas formas de organização societária em que a relação entre trabalho e terra seja reinventada num sentido comunitário. A única questão filosófica importante é a reinvenção da vida.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 45.

[5] Sobre a categoria de subsunção, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

O SENTIDO ESTRATÉGICO DA CATEGORIA DE PROBLEMÁTICA EM ALTHUSSER

À Liga da Juventude Comunista

“Uma teoria é revolucionária precisamente na medida em que é elemento de separação e de distinção consciente em dois campos, na medida em que é um vértice inacessível ao campo adversário” Gramsci

“Política e tática são a vida mesma do partido” Mao Tsé-Tung.

Toda constituição de um campo de conhecimento obedece a um conjunto de pressupostos teóricos subjacentes que, muitas vezes, não é explicitado de forma que sua tematização remanesce obscurecida, seja por motivos teóricos, seja por motivos políticos. Para usar Heidegger, a todo pensamento corresponde um impensado que lhe é co-constitutivo e que se lhe antolha.

Se compreendermos por paradigma científico um conjunto de princípios teóricos compartilhados consensualmente pela comunidade científica a partir do qual se avalia a verdade ou não de um enunciado, podemos afirmar que uma ruptura epistemológica acontece quando há uma alteração nas premissas subjacentes que encartam e imantam esse mesmo conjunto e que, por sua vez, implode-o, gerando uma nova forma de conhecimento.

O trabalho da crítica, por sua vez, pode ser entendido como o processo de tematizar o que, num pensamento, permanece impensado, trazendo a lume as premissas subjacentes que lhe são inerentes ou desdobrando as premissas no sentido de lhe atribuir as consequências que se pretende evitar.

Michel Foucault, na magistral aula inaugural no Colégio de França, convertida no livro A ordem do discurso, mostra que um enunciado, ainda que verdadeiro, pode ser rejeitado pela forma com que se organiza um campo de conhecimento. Podemos acrescentar, tendo em vista as articulações entre a ciência e as formas de poder, que, por injunções políticas, um enunciado ou uma forma de saber pode ser objeto de campanhas terríveis e sutis de censura. O Capital de Marx, por exemplo, foi objeto de uma longa campanha de silêncio.[1]

Todo campo de conhecimento se baseia, pois, numa problemática. Conforme leciona Louis Althusser:

“A problemática de um pensamento não se limita ao domínio dos objetos tratados por um autor, isso porque ela não é uma abstração do pensamento como totalidade, mas a estrutura concreta e determinada de um pensamento, e de todos os pensamentos possíveis de um ato de pensamento”[2].

A problemática instaura um sistema de referências a partir do qual as questões e os problemas específicos de um campo de conhecimento são colocados. É um regime de visibilidade e uma tática discursiva. É um regime de visibilidade porque delimita o horizonte das perguntas e oculta o que, no calcanhar da problemática, insinua-se e que, se fosse reconhecido e teorizado, levaria a sua implosão teórica. É uma tática discursiva em cujos limites somente determinadas questões aparecem, interditando-se a emergência de problemas que não se enquadram nos limites de seu volume e espessura.

Não se trata apenas de forma de ocultação ideológica, mas da constituição de um campo de conhecimento estribado num consenso que instaura o segredo sobre determinadas questões. Tal consenso, ao obedecer a critérios não explicitados, indica uma posição frente ao mundo e aos problemas que se suscita.

Portanto, na problemática, somente determinadas questões aparecem, interditando-se outras. No caso da economia política burguesa, qual é o impensado que lhe é co-constitutivo?[3] Vejamos um enunciado de ninguém menos do que David Ricardo:

“Adam Smith, que definiu com tanta exatidão a fonte original do valor de troca, e que coerentemente teve que sustentar que todas as coisas se tornam mais ou menos valiosa na proporção do trabalho empregado para produzi-las, estabeleceu também uma outra medida-padrão de valor, e se refere a coisas que são mais ou menos valiosas segundo sejam trocadas por maior ou menor quantidade dessa medida-padrão. Como medida-padrão ele se refere algumas vezes ao trigo, outras vezes ao trabalho; não à quantidade de trabalho empregada na produção de cada objeto, mas à quantidade que este pode comprar no mercado, como se ambas fossem expressões equivalentes e como se, em virtude de se haver tornado duas vezes mais eficiente o trabalho de um homem, podendo este produzir, portanto, o dobro da quantidade de uma mercadoria, devesse esse homem receber, em troca, o dobro da quantidade que antes recebia.

Se isso fosse verdadeiro, se a remuneração do trabalhador fosse proporcional ao que ele produz, a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que esse mercadoria compraria seriam iguais, e qualquer delas poderia medir com precisão a variação das coisas.”[4].

Nas brilhantes análises de Marx vemos que, diante da heterogeneidade das mercadorias, o traço que lhe é comum é justamente a quantidade de trabalho; que o salário, no modo de produção capitalista, corresponde ao minimamente necessário à reprodução física do trabalhador[5]; que a mais-valia corresponde à parte de trabalho não pago. Pode-se verificar que todos esses corolários já estão presentes no enunciado citado.

Em O Capital, Marx, ao realizar uma leitura sintomal da economia burguesa[6], enuncia que os economistas burgueses viram algo que negaram porque seria implosivo para o próprio sistema de conhecimento que desenvolveram e, portanto, para a formação social que este conhecimento busca legitimar. É esse o papel da problemática: interditar um campo de conhecimento para interditar o questionamento da injustiça de uma determinada forma de organização societária. Não há campo de conhecimento que não esteja articulado com as graves questões políticas.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Numa carta a Engels, Marx tenta ele mesmo articular, sob um pseudônimo, a crítica do livro O Capital para suplantar o que chamou de ‘muro do silêncio’ em torno do livro. A peça teatral de Bertold Brecht “A vida de Galileu” busca demonstrar como um conjunto científico se defronta com as injunções do poder instituído, de como a verdade pode ser interditada por meio da perseguição dos cientistas.

[2] ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: La décoveurte, 2005, p. 65.

[3] Veja-se que um liberal de talento descomunal como Joseph Schumpeter afirma que as bases da economia são a terra e o trabalho. Se fizéssemos uso dessa arguta ideia, poderíamos fazer uma análise mais abrangente das crises econômicas. A inflação galopante nos EUA, por exemplo, está diretamente relacionada à grave crise energética por que passa o país.

[4] RICARDO, David. Princípios da economia política e tributação. São Paulo: Abril Cultura, 1982, 44-45.

[5] Uma das razões da ocupação estatal pela burguesia é ter o domínio da política sobre o salário mínimo. Uma política genuinamente de esquerda redunda em valorização do salário mínimo- que se deveria chamar salário básico.

[6] Sobre a leitura sintomal da economia burguesa clássica, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

A LUTA TEÓRICA CONTRA A ESPONTANEIDADE

“Eu vos dôo, proletários do planeta, cada folha até a última letra” A pleno pulmões, Maiakóvski

Lenin sempre ressaltava que o fato de um movimento político de contradição antagônica ascender ao poder não significava, por si só, a abolição das lutas de classes. Ao contrário, nesses momentos, mais do nunca é preciso articular a defesa ativa da disciplina coletiva diante da reatividade recrudescida das classes dominantes cuja articulação, não se deve esquecer, é sempre de natureza internacional.

Inicialmente, a ideologia entendida como um conjunto de representações acerca do social-histórico não tem uma natureza reativa, pois constitui o conjunto de articulações simbólicas a partir do qual o ser humano intelige e compreende as suas relações intersubjetivas. É mais o horizonte em que em estamos mergulhados do que algo sobre que meditamos.

Não há fato desprovido de pressuposições. Por estarmos sempre num contexto de articulação simbólica, não há experiência selvagem em que os sentidos se apresentam primários e fundantes. É esse o problema das ciências sociais. Na medida em que estudam um objeto já prenhe de sentido, enfrentam uma aporia inevitável: voltar-se ao estudo do significado já dado socialmente ou submeter a significação social ao modelos dos fenômenos físicos.[1]

Émile Durkheim, em livro clássico de metodologia social, coloca a questão no seu cerne:

“Os homens não esperam pelo advento das ciências sociais para conceber ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, e a própria sociedade, pois não podiam passar sem elas para viver. É, sobretudo, em sociologia que estas prenoções, para retomar a expressão de Bacon, são suscetíveis de dominar os espíritos e de substituir à realidade. Com efeito, os fatos sociais não se realizam senão através dos homens; são resultado da atividade humana. Parecem, portanto, não ser mais do que o pôr em prática as ideias, inatas ou não, que trazemos em nós, mais que sua aplicação às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si. A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade, aparecem assim como um simples desenvolvimento das ideias que temos sobre essa sociedade, o Estado, a justiça, etc. Por consequência, estes fatos e as suas análises parecem não ter realidade senão nas e pelas ideias que são os seus germes, e se tornam, desde logo, na matéria própria da sociologia.”[2]

Aqui tangencia a função duplamente hermenêutica das ciências sociais, mas se inclina por transplantar o modelo das ciências naturais às ciências sociais ao remarcar que se deve estudar os fatos sociais como coisas, na sanha positivista por uma noção de objetividade desprovida de movimento.

Guerreiro Ramos lutou contra esse corte positivista ao enfatizar que o pertencer à comunidade impede um sobrevoo absoluto sobre os dados sociais e que a sociologia da modernidade periférica envolve sempre o compromisso do sociólogo com a compreensão do real na dinâmica das contradições e que, por isso, só se desvela com o engajamento crítico. Mas essa é uma outra questão.

Se a ideologia tem um sentido orientador no mundo da vida, quando adquire um caráter opressivo? Quando as significações, imagens e representações camuflam, ainda que com dados tênues da realidade, as relações de poder; quando, por meio da construção de uma evidência familiar que forja um horizonte estreito de percepções, busca-se manipular os comportamentos para a manutenção ou retorno das relações de dominação. A ideologia figura, então, como uma filosofia espontânea na qual todos estamos submergidos.

Resulta fácil inferir que, em razão do domínio pelas classes dominantes dos mais variados agenciamentos coletivos de enunciação, para retomar um termo de Guattari, a ideologia das classes dominantes se torna dominante e passa a ter uma capilaridade nas mais variadas instituições, incluída a família, que não se deve nunca subestimar.[3]

A luta teórica, nessa encruzilhada, não é uma luta acadêmica: é uma luta sobre o sentido do social-histórico e sobre a orientação diante dos graves problemas políticos. A luta de Lenin contra a espontaneidade no movimento operário se insere nessa encruzilhada contra a primazia das representações burguesas, dialogando com a classe operária para articular o sentido do todo estruturado complexo para mais bem se orientar nas questões políticas e econômicas. Sem teoria adequada, a prática política torna-se cega e incapaz de produzir efeitos políticos adequados. Afirma Lenin:

“Por que- perguntará o leitor- o movimento espontâneo, o movimento pela linha de menor resistência, conduz precisamente à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a ideologia socialista, porque é mais completa a sua elaboração e porque possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos” [4]

É preciso acrescentar esse enunciado: a ideologia burguesa é mais antiga, possui meios de difusão muito mais numerosos e, hoje, possui muito mais capilaridade que na época de Marx[5]. O capital financeiro, ao monopolizar os agenciamentos coletivos de enunciação, tem mais condições de forjar a evidência familiar que interessa à manutenção das relações do domínio.

A assunção ao poder de um movimento de contradição antagônica que não significa a alteração dessa conjuntura da dinâmica da produção do real torna-o vulnerável à reatividade das classes dominantes que não pensam duas vezes em mobilizar todo o arsenal de meios de comunicação para engendrar o caos organizado para fins de desestabilização[6]. Cabe-nos o diuturno trabalho da crítica contra os sofismas, as frases e as palavras-de-ordens mais cotidianas e mais capilares.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB


[1] Em Teoria da Ação Comunicativa, Habermas, partindo dessa questão, afirma a natureza duplamente hermenêutica das ciências sociais, que são obrigadas a tematizar um dado que já tem uma significação social no mundo da vida.

[2] DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 44.

[3] Os meios de comunicação instantânea passam a ter um papel central nesse contexto.

[4] LENIN, Vladimir Ulianov. Que fazer: Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 92-3. Hoje, temos uma teoria crítica muito mais desenvolvida, mas que precisa de canais de popularização. Uma das primeiras medidas de Lenin foi a construção de um jornal de âmbito nacional para fazer frente à filosofia espontânea burguesa.

[5] O grande filósofo italiano Gianni Vattimo, ao enfatizar a força dos meios de comunicação na construção da realidade, costuma dizer que Marx, se vivo, seria muito mais pessimista diante de um projeto emancipador. É preciso entender o alerta no sentido de que não se pode acomodar e que o trabalho da crítica não terminou. Marx apenas preparou o terreno adequado para a nossa longa jornada, a longa marcha da emancipação.

[6] Slavoz Zizek afirma que, hoje, apenas a direita tem mobilizado a paixão política. Para um psicanalista, a afirmação é demasiado ingênua além de incorreta espacialmente.

BRASIL À DERIVA

Roger Batisde definia o Brasil como a terra dos contrastes. Esqueceu de completar que toda a história política do país pode ser resumida à tentativa, até então bem sucedida, de coarctar a emergência dos contrastes e evitar, por todos os meios, a irrupção da contradição antagônica. A independência de 1822 foi um acordo elitista do qual herdamos uma dívida externa sibilina; a República de 1889, conforme um cronista da época, ainda não veio; a mal chamada Revolução de 1930 foi um processo de modernização encabeçado por Getúlio Vargas com vista a subsumir os focos de tensão de forma a desarmar seu potencial crítico: como exemplo, reconheceu-se a liberdade de associação sindical, mas sob a batuta do Ministério do Trabalho, manietando-se o movimento sindical.

Na crise de 1964, a confluência de uma grande vitalidade intelectual e a presença de líderes populares capazes de aglutinar as forças do campo social foi castrada por um golpe empresarial-militar violento que privou o país de um pensamento orgânico cujos efeitos até hoje se fazem sentir [1]; A dita abertura política-que se convolou na constituição de 1988- não foi capaz de remover a colonialidade do poder que sempre secreta mecanismos de exclusão social, territorial e simbólica. Nesse contexto, os partidos são desprovidos de um pensamento da totalidade e são todos infiltrados pela burguesia. No Brasil, as cúpulas dos partidos de ‘esquerda’ são prepostos da burguesia. Parafraseando Mao Tsé-Tung, onde está a burguesia? A burguesia? A burguesia está no partido dos trabalhadores e nos partidos de ‘esquerda’.

O que marca a formação social brasileira é o fosso entre a mediação institucional, incluída a via partidária, e as classes sociais dominadas que, desprovidas de formas de organização capazes de formar um bloco de poder efetivo, mergulham numa verdadeira melancolia política e descrença, criando-se espaço para o falso messianismo das soluções simplistas, mas com força de catalisar parcela desses setores das classes dominadas. Por isso, as crises políticas brasileiras são, seguindo Guerreiro Ramos, sempre crises de orfandade política das classes dominantes decorrentes dos conflitos entre os interesses dessas mesmas classes dominantes.

Obedecendo ao materialismo histórico, verifica-se que o plano real indexou a economia nacional ao dólar, submetendo-a às flutuações e ao bruxulear da dinâmica internacional. Somado a isso, a entrega das riquezas nacionais e a onda privatizante dos setores cruciais criam as condições para crises econômicas cíclicas que, por sua vez, não são debeladas porque falta autonomia do campo político para empreender as reformas adequadas. Hoje, o conflito entre o capital financeiro e o capital industrial foi quase anulado de forma que as opções políticas majoritárias integram o campo do rentismo, mas, diante da indexação da economia, o setor do agronegócio sofre profundo abalo e a crise econômica tende a recrudescer, produzindo novas contradições no campo das classes dominantes. Para ler a dinâmica das lutas de classes, basta visualizar a política de juros do Banco Central e a brutal desindustrialização por que passou e por que passa o país. A religião se torna um fator político de alienação uma vez que alimenta a promessa de resolução mágica dos graves problemas econômicos e tende a se tornar, na dinâmica concreta, junto com a família, os fatores ideológicos mais sobressalentes.

O país encena a falsa solução dos problemas reais e sufoca a emergência democrática. Todos os instrumentos de canalização das lutas políticas são fetichizados, dos sindicatos aos partidos políticos, esvaziando-se as formas de organizações populares. O Brasil colonial vive de esvaziar os instrumentos políticos das classes subalternizadas.

A cena política, desde há muito, limita-se à proliferação de leis simbólicas que constituem a solução imaginária de problemas muito reais. A disseminação legislativa é o sintoma de uma formação social que, incapaz de mergulhar em seus problemas, finge resolvê-los mediante leis cuja eficácia depende de alterações drásticas da ordem econômico-social. O controle de constitucionalidade passa a ser um cenário de refrega política, inflacionando o Judiciário que, depositário das esperanças malogradas, passa a figurar como lugar de governo. O controle de constitucionalidade substitui a atividade de deliberação política coletiva. E não se faz política genuína por meio de controle de constitucionalidade.

 Não obstante, verifica-se uma grande emergência democrática que, mesmo em estado de crisálida, e, desde que encontre os instrumentos políticos adequados, pode significar a possibilidade de uma verdadeira emergência política transformadora. O Brasil é um país propenso à revolução, mas ainda não tem os instrumentos para erigir a força necessária à constituição de um bloco de poder popular, nacional e revolucionário.

A imprensa nacional, que funciona para a desorientação política, tem enfatizado a dualidade Bolsonaro e Lula.  É uma dualidade medíocre porque não expressa as pungentes contradições do país. Ambos representam o capital financeiro. São mitos de um país que perdeu a orientação política e se fantasia de democrático no ato mesmo de negar ao povo um horizonte político transformador. Nenhuma das opções, na medida em que não conseguem articular as soluções estruturais, não governam nem governarão para o povo de forma que, havendo organização, é possível, nos moldes da Revolução Sandinista, governar desde baixo, desde a emergência democrática.

Por isso, a primeira tarefa no Brasil é ampliar a democracia. Lenin, em Duas Táticas na Social-Democracia Na Revolução Democrática, livro que mudou a vida de Maiakóvski, relata:

“A própria situação da burguesia como classe, na sociedade capitalista, engendra inevitavelmente a sua inconsequência na revolução democrática. A própria  situação do proletário como classe o obriga a ser democrata consequente. A burguesia, temendo o progresso democrático que traz a ameaça do fortalecimento do proletariado, volta suas vistas para trás. O proletariado nada tem a perder exceto suas cadeias, e ganha com a democracia todo um mundo. Por isto, quanto mais consequente for a revolução burguesia nas suas transformações democráticas, menos permanecerá estreitamente encerrada dentro dos limites que beneficiam exclusivamente a burguesia, e mais garantias trará mais vantagens do proletariado e dos camponeses na revolução democrática.” [2]

Ampliemos a democracia. Criemos mecanismo de verificação da formação do poder. Libertemos a classe operária dos prepostos da burguesia. Superemos a melancolia política pela coragem do desespero, fórmula de Marx, que Agamben recentemente ressuscitou.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] O Golpe empresarial-militar de 1964 privou o país da melhor geração de intelectuais ( Ruy Mauro Marini, Nelson Werneck Sodré, Alberto Guerreiro Ramos etc) e a melhor geração de políticos da história (Jango e Leonel Brizola).

[2] LENIN, Vladimir Ulianov. Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática.São Paulo: Editora e Livraria Livramento, 1975, p. 38.


ANÁLISE CRÍTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO

“Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles opinamos ou se os iluminamos de algum modo- se fazemos com que se ampliem em nós-, operamos sobre um patrimônio comum.”  Osman Lins

A teoria estruturante do direito, fundada por Friedrich Müller, oferece aportes metodológicos indeclináveis para toda teoria preocupada com a questão da interpretação/aplicação do direito. Pretende-se fazer aqui um breve estudo sobre as contribuições da teoria estruturante para a epistemologia jurídica e para a hermenêutica, reconhecendo os avanços e conquistas inegáveis e, ao mesmo tempo, fazendo as críticas necessárias para a evolução do saber. Nesse caso, as críticas são suscitadas pelo próprio caráter estimulante da teoria, buscando catalisar a energia interna que lhe é própria. Portanto, as críticas eventuais são, por si só, um elogio da teoria.

A base epistemológica axial da teoria estruturante é a necessidade de superação do dualismo metodológico entre dever ser e ser, norma e realidade, que está na base tanto do positivismo jurídico quanto do antipositivismo jurídico. Para demonstrar o quanto esse dualismo trespassa o debate jusfilosófico e o condiciona, gerando epistemologias e teorias interpretativas reducionistas, ora centradas numa validade abstrata, ora vinculadas à eficácia factual, irei tratar do modo como Kelsen e Hart desenvolvem o critério de identificação do direito a partir da questão-guia: como identificar uma norma jurídica válida?

Para Kelsen, em sendo o direito uma estrutura escalonada fundada no binômio fundamentação/derivação, a validade é a existência específica de uma norma. A norma, uma vez que foi produzida de acordo com o procedimento previsto para sua própria elaboração, passa a existir. A validade é, pois, a relação de pertinência abstrata ao ordenamento, independentemente do fato de a norma ser obedecida ou não. Nesse sentido, a validade é reduzida a um puro dever ser, neutro axiologicamente.

Já Hart parte da ideia de que um ordenamento, na medida em que fosse dotado apenas de normas primárias (que estatuem obrigações) padeceria de três defeitos: seria incerto, porque não teria uma norma de identificação da validade das normas; seria ineficaz, porque, na falta de definição dos órgãos que iriam averiguar o descumprimento de uma norma primária, a pressão social teria um caráter difuso e não institucionalmente organizada; seria estático, porque faltariam normas voltadas a expungir as normas obsoletas e a gerar novas normas acerca das novas situações emergentes da vida social-histórica. Para debelar esses defeitos, Hart prevê a existência de normas secundárias, respectivamente, de reconhecimento, de adjudicação e de modificação.

Verifica-se que, no âmbito das normas secundárias, a mais importante é a norma de reconhecimento, pois é a que permite a identificação do direito válido. Criticando a solução kelseniana da norma hipotética fundamental, Hart afirma que a validade do direito não pode ser uma questão de dever ser, mas uma questão de ser, isto é, de prática social. Por isso, para Hart, a norma de reconhecimento é uma prática social. Afirma:

“Porque enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido existir, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como um prática complexa, mas normalmente concordante dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato” [1]

É nos meandros da dicotomia epistemológica dever ser e ser que a teoria estruturante se insere. O direito, para não perder a base material, não pode ser reduzido à mera vigência entendida como pertinência abstrata à ordem jurídica, do mesmo modo, para não perder a normatividade, não pode ser reduzido a meros fatos, a uma suposta força normativa dos fatos.[2]

Entendendo que a normatividade, ao agasalhar a facticidade, tem referência à realidade da qual a metodologia não pode se esquivar sob pena de converter o direito em mera preexistência reificada, a teoria estruturante distingue programa da norma e âmbito ou domínio da norma. O programa da norma consiste no teor literal dos textos e o âmbito da norma na realidade materialmente determinante e determinada.

No que atine ao programa da norma, distingue entre texto e norma. O texto é a fórmula linguística que serve de baliza à interpretação, já a norma é o sentido que, diante do caso concreto, atribui-se ao texto. O processo normativo, nesse sentido, constitui a atividade complexa de converter textos em normas. A norma não é algo preexistente, algo subsistente em si, mas é fruto da interação entre a virtualidade do texto e o caso que lhe é constitutivo. Afirma Friedrich Müller: “Com efeito, a norma jurídica não existe, mas é criada pelo jurista decidente. Ele a cria não com base no virtual, mas, isso sim, partindo do virtual e com sua ajuda.”[3]

O texto é uma virtualidade porque necessita da mediação da leitura. Mas, no que concerne à noção de texto e a relação com o caso, Müller apresenta duas assertivas suscetíveis de crítica, quais sejam: 1) não é o texto que é vinculante, mas a norma produzida, 2) os fatos nunca obedecem a uma ordem linguística. Apesar da compreensão correta de que a norma não existe antes do processo de concretização, falta à teoria estruturante analisar a relação de continuidade entre o texto enquanto campo de ações linguísticas possíveis e o sentido adjudicado ao texto – que configura a norma.

Na medida em que a interpretação/aplicação necessita reformular o texto legislativo com outros signos mais desenvolvidos, mais amplos e mais claros, verifica-se uma continuidade expressa no que chamamos equivalência analógica[4]. O texto, portanto, ao instaurar um campo analógico, estrutura a sua própria leitura de forma que o intérprete está vinculado ao campo associativo e ao eixo temático analógico inerente ao texto[5]. O texto, portanto, vincula.

Outrossim, o texto não se encerra na mera textualidade, pois, já carrega em si toda uma facticidade própria; o texto, como salientava Heidegger, é um vir-a-ser-mundo, projetando uma facticidade que serve de modelo comparativo para o caso constitutivo. O texto, ao instaurar tipos, vem imbuído de predicados da realidade que servirão de paradigma para coleta dos dados empíricos que interessam ao campo jurídico. O caso concreto é interpretado com base nas similitudes com o vir-a-ser-mundo do texto.  

O texto tipológico instaura uma série factual que serve de paradigma para aferição, pela via da similitude, da série de casos submetida à analise judicial. Consoante assevera Jan Schapp:

“De importância, neste contexto, manifestamente o fato de o legislador, via de regra, somente decidir com certeza poucas séries de casos expressivos, deixando de resto ao juiz a tarefa de, partindo destas decisões certas, incluir na regulação da lei mais séries de casos não tão claramente decididas”[6]

A teoria da norma como juízo lógico (Kelsen) ou juízo disjuntivo (Cossio) ignora justamente a realidade material que embebe a norma e que é, concomitantemente, determinante e determinada. Aqui, já se tangencia na questão do âmbito ou domínio da norma que é sempre uma parcela da realidade sujeita ao recorte do esquema normativo. Leciona Friedrich Müller:

“O domínio da norma é um fator coconstitutivo da normatividade. Ela não é uma soma de fatos, mas um nexo formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que são destacados da realidade social na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma e estão, em regra, conformados aos menos parcialmente jurídico”[7]

Supera-se, então, o dualismo metodológico que não só produz uma epistemologia desconectada dos problemas reais, mas uma metodologia incapaz de entender a interpretação/aplicação do direito na intersecção da lógica jurídica e da experiência social e histórica. O ordenamento jurídico não é uma coisa em si, fechada, preexistente, e unívoca, mas um campo de ações interpretativas possíveis em que a luta pelos sentidos se produz. O que denominamos Arquitetônica Jurídica Analógica é uma empreitada voltada a unir lógica e experiência, criando categorias voltadas à formalização equânime do ordenamento para, vincando o campo comunitário das ações linguísticas possíveis, evitar a suspensão colonial do direito tão ao sabor da colonialidade do poder e salvaguardar a esfera pública das intromissões dos interesses privados[8].

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Ver: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 121. Não cabe aqui discutir as aporias da norma de reconhecimento em Hart, mas apenas realçar que é uma questão em aberto, Para Hart, a norma de reconhecimento é como a regra de pontuação de um jogo que, mesmo orientando os jogadores, raramente é formulada de maneira clara. Dessa forma, a norma de reconhecimento serve de condição de sentido para a identificação das normas válidas e, ao mesmo tempo, é uma questão de fato.

[2] Um golpe nada mais é do uma facticidade que usurpa a normatividade e a axiologia ínsita à normatividade. A ressurgência da democracia na Bolívia, fruto das lutas populares, foi motivada, dentre outros elementos, pela atribuição ao governo oriundo do golpe do rótulo adequado de governo de fato, revelando-se, para todos, a carência de legitimidade normativo-constitucional. Remarque-se que uma das motivações do golpe era desacreditar o sistema eleitoral-analógico da Bolívia com vista a implantar sistemas autorreferentes de dominação. A luta política é, também, combate pelas palavras e pelos fatos. Sobre a relação necessariamente dialética entre fato e norma no plano constitucional, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Pensar desde a América Latina: a emergência de novas heteroutopias. Paulo Afonso, Oxente, 2021, capítulo 1.2, A constituição é o nome de quê?.

[3] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.

[4] Sobre a relação de equivalência analógica entre o texto de chegada e o texto de partida, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. Na América Latina, o pensamento analógico já vinha sendo desenvolvido brilhantemente pelos filósofos Enrique Dussel e Mauricio Beuchot. Não haveria Hermenêutica Jurídica Analógica sem a base conceitual desenvolvida por esses dois grandes mestres. Talvez por não conhecer o pensamento analógico latino-americano, Müller, apesar dos avanços, tenha se enredado em muitas aporias.

 

4 SCHAP, Jan. Problemas fundamentais da metodologia jurídica. Porte Alegre, SAFE, 1985, p. 19. A Arquitetônica Jurídica Analógica permite uma refundação da teoria do precedente e a compreensão pouco divulgada de que os fatos também são interpretáveis embora um fato não se identifique imediatamente, como quis Nietzsche, com a sua interpretação.

[7] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.

[8] A suspensão colonial do direito se dá quando, pela corrosão do devido processo legal, se persegue injustamente o povo ou intelectuais e líderes populares e, também, quando se protege os apaniguados da colonialidade que, incorrendo em crimes, permanecem, sob a complacência das instituições, impunes. A Hermenêutica Jurídica Analógica também combate leis com rarefação discursiva que, ensejando a apropriação privada da linguagem, permitem a injusta persecução penal de pessoas eleitas como inimigas. Na verdade, trata-se de não leis. O ato patriótico norte-americano é exemplo gritante de não lei.

SOBRE A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ANALÓGICA ESTRUTURAL

“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.”

Gregório de Matos

Lourival Vilanova alertava que, ao usar a palavra direito, era necessário distinguir o direito como atividade de cognição sistemática das normas do direito enquanto ordem coativa: distinguir a linguagem científica, que descreve as normas, da linguagem prescritiva das normas jurídicas mesmas. Noutras palavras: diferenciar as proposições científico-descritivas das proposições deôntico-normativas.

A questão se torna mais complexa quando se trata de conferir unidade ao sistema jurídico. Diante da pluralidade inevitável das normas, como dar consistência axiomática ao sistema, remontando-se toda a pletora de normas a uma única e mesma fonte erigida em chave-mestra- que sela a unidade do sistema? A teoria pura do direito de Kelsen intenta resolver a questão mediante a hipótese da norma hipotética fundamental.

Para Kelsen, o direito tem elementos e estrutura. Os elementos são identificados nas normas jurídicas e a estrutura decorre da natureza das relações entre os elementos. Vê-se que os elementos não se confundem com a estrutura, mas a maneira com que os elementos se relacionam forma a dinâmica intrínseca da estrutura. Que tipo de relação as normas entretecem entre si? Na visão da teoria pura, as normas se relacionam por uma relação de fundamentação-derivação: uma norma encontra seu fundamento de validade em outra, isto é, foi gestada conforme a forma procedimental definida por normas de escalão superior.

O sistema, portanto, tem uma estrutura escalonada de forma que uma norma encontra seu fundamento de validade em outra norma. Aqui, depara-se com o grave problema lógico da regressão ao infinito. No ato de remontar uma norma inferior a uma norma superior, ao chegar-se, mediante a regressão, à primeira constituição, abica-se nos confins do ordenamento, emergindo a questão central: em que norma se baseia a constituição?

Kelsen responde à aporia, admitindo a hipótese de uma norma hipotética fundamental, norma que não é posta, mas pressuposta logicamente, figurando como condição gnoseológica de toda ordem jurídica. Se o direito é uma ordem coativa, fundada em normas, como pode ter por fundamento uma norma hipotética não positivada? Não incorre numa contradição insolúvel?

Os juristas influenciados pelo positivismo lógico engendraram uma interpretação engenhosa da norma hipotética fundamental. Para fugir a crítica da contradição performática da hipótese de uma norma hipotética fundamental, fazem a distinção entre condições de sentidos– do plano da metalinguagem- e as enunciações significativas– do plano da linguagem-objeto. As proposições que funcionam como condições de sentido pertencem a nível diverso das enunciações significativas.

A norma hipotética, ao estar no plano da metalinguagem, cria as condições de sentido para existência específica das normas, não figurando no plano das normas mesmas de forma que o argumentado da contradição é superado. Para o positivismo lógico, só há contradição entre proposições do mesmo nível.[1] Os enunciados de níveis diferentes são autorreferentes, aplicando-se apenas no âmbito do próprio plano, e, por isso, não geram contradição.

Podemos recortar desse instigante debate a seguinte premissa: a ciência jurídica cumpre papel decisivo na formalização sistêmica dos dados normativos. O sistema jurídico, nesse sentido, seria uma função da cognição científica e não uma situação empiricamente já dada.

Dentro dessa lógica, sem negar a dialética entre o modelo teórico e os dados empíricos, toda interpretação jurídica envolve sempre uma atividade de formalização lógica da estrutura jurídica. Se adotarmos o modelo teórico da linguística, podemos definir a estrutura como sistema diferencial, isto é, como um jogo de oposições e de relações internas de dependência[2].  Ao gizar a interpretação estrutural, deve o intérprete inserir, conforme declinei no livro As Antinomias do direito na modernidade periférica, o texto na rede intertextual a que pertence, a qual tem que ver com o horizonte do eixo temático para remarcar as similitudes e diferenças entre os elementos.

Deve-se, portanto, agrupar os temas de acordo com o eixo temático. Enquanto na interpretação textual, o critério que sobressai é o da equivalência analógico- linguística entre o texto de chegada e o texto de partida, na interpretação estrutural, o critério remonta à teoria interpretativa de Santo Agostinho, para quem uma interpretação correta de um texto sempre se confirma em outras partes do texto.

Na interpretação estrutural, as relações de dependência são exaltadas para evitar a alteração do sistema, preservando-se a coerência interna. Aqui, a articulação do eixo temático é crucial para manutenção da intangibilidade do ordenamento. Isso porque, havendo a mudança de uma parte, muda-se todo o ordenamento.

Exemplo dessa deturpação da estrutura sob o pretexto de defendê-la se deu no julgamento do Habeas Corpus de numero 126.292-SP, no Supremo Tribunal Federal, quando, criando-se a oposição inexistente entre a regra da presunção de inocência e a efetividade processual, simplesmente, em nome de uma suposta efetividade, anulou-se o texto normativo que consagra a presunção de inocência. Por meio de falsa interpretação estrutural, revogou-se uma norma do sistema normativo, alterando-se, por meio de interpretação, todo sistema jurídico. Outro exemplo se deu no julgamento da Medida Cautelar na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5889- DF em que se declinou a oposição do voto impresso com o sigilo do voto, suspendendo-se a norma que consignava o voto impresso.  Fazendo-se a inserção da regra da presunção e do voto impresso no eixo temático próprio, verifica-se que o sistema confirmaria a higidez das normas. O sentido estrutural serve, em regra, para confirmar o sentido textual. A importância da metodologia é notória e evidente, pois, mediante critérios rigorosos, permite distinguir uma falsa antinomia de uma verdadeira e, sobremodo, uma formalização adequada e correta do ordenamento jurídico.

Portanto, a formalização empreendida deve ser feita de maneira a conferir maior coerência interna ao sistema e não lhe derruir a consistência mediante a criação falaciosa de oposições e de falsas antinomias para, mediante o cotejo entre normas que estariam no mesmo eixo temático, dar maior peso a uma em detrimento da outra. No Brasil, infelizmente, quando se quer negar aplicabilidade a uma norma vigente coerente com a axiologia do sistema jurídica, cria-se, artificiosamente, uma oposição com outra norma, para, diante de uma falaciosa concordância prática, dar primazia a norma que faz o intento prévio do intérprete, arruinando-se, por meio de errônea interpretação estrutural, o sentido literal do texto normativo que se quer negar aplicação. Uma forma sutil de revogar, pela interpretação, normas vigentes.[3]

 Aristóteles, ao analisar o sentido literal, declina:

“Há três modos ligado à homonímia (equivocação) e à ambiguidade: 1) quando a expressão ou nome indica propriamente mais de uma coisa, como aetos e cuon; 2) quando habitualmente empregamos uma palavra em mais de um sentido; 3) quando uma palavra apresenta mais de um significado, em combinação com uma outra palavra, ainda que isoladamente apresente um só significado’’[4]

Da mesma que uma palavra que ostenta sentido definido isoladamente, ao ser oposta a outra, mergulha na equivocidade, corroendo-se seu sentido analógico, ao criar falsas oposições entre as normas, produz-se uma equivocidade artificial, sendo que, por uma ponderação ad hoc, revoga-se uma norma que, uma vez lida de forma correta, permaneceria íntegra no ordenamento. Ocorre, portanto, no plano estrutural, uma apropriação privada da linguagem, usurpando-se os sentidos estabelecidos pela comunidade política no exercício do poder constituinte. A apropriação privada da linguagem, no plano da interpretação da constituição, é uma forma usurpar o poder constituinte de titularidade exclusiva do poder popular.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Sobre esta inquietante questão ver: WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, especialmente o capítulo II. No debate que tivemos, demonstrei minha discordância da solução apresentada porque, mesmo afirmando que a norma hipotética fundamental é pressuposta, Kelsen, ao afirmar que ela se enfeixa na proposição ‘’deve obedecer tudo o que prescreve a Constituição’’, conferia-lhe natureza deôntica: situava-a, então, na ambiguidade entre cognição e deontologia. Concordando com Alf Ross, já afirmava que a teoria pura do direito era uma espécie de jusnaturalismo conceitual, tese que ele dizia professar também. 

[2] Sobre a aplicação do método ao estudo dos mitos, ver a Antropologia Estrutural de Claude Lévi-Strauss.

[3] Mais uma vez, revela-se fecunda a teoria do cálculo dos predicados não só para a delimitação da moldura analógica, mas das possibilidades estruturais do ordenamento pelo balizamento adequado das antinomias reais, desmascarando-se, outrossim, as falsas ponderações que se lhe esgarçam a coerência interna. O papel da Arquitetônica Jurídica Analógica, cuja ossatura já desenvolvi no livro As Antinomias do direito na modernidade periférica, é a formalização escorreita do ordenamento, garantindo-se uma aplicação, objetiva e correta, do direito.

[4] ARISTÓTELES. Órganon. São Paulo: Edipro, 2005, p. 550. Destaques nossos. O pensamento holográfico, desde que subtraído à mesmidade e desde que engajado na analogia, pode ser fecundo na análise da intersecção dos três níveis básico de toda interpretação: textual, estrutural e histórico. Observe-se que a apropriação privada acontece em todos os níveis, mas de forma específica a cada nível. Vejamos um exemplo de apropriação privada no nível histórico. Cajetan, intérprete de Tomás Aquino, mesmo desenvolvendo a analogia no plano ôntico, trouxe colaborações que, aplicadas ao campo jurídico, contribuem para a construção de uma hermenêutica jurídica consistente. Cajetan vislumbra vários tipos de analogia. Mesmo a mais tênue, a analogia por desigualdade, confere critérios seguros para a interpretação jurídica. Saudável se predica de vários corpos, mas alguns são mais saudáveis do que outros, afirma Cajetan. Nesse sentido, o predicado saudável tem matizes diversas a depender do sujeito. Em várias decisões jurídicas, surge a discussão se aeronaves e embarcações se subsumem ao conceito de veículo automotor. Aplicando a analogia por desigualdade, verifica-se que, não obstante as diferenças entre um avião e um carro, ambos se enquadram no âmbito da analogia por desigualdade, isto é, pertencem ao mesmo gênero de forma que decisões que artificiosamente colimam extrair uma espécie do gênero a que pertence constituem forma de apropriação privada da linguagem. Cabe remarcar que a não aplicação rigorosa da mais tênue das analogias- a analogia por desigualdade- gera inúmeros prejuízos ao interesse geral. No Recurso Extraordinário 379572, no Supremo Tribunal Federal, a invocação da interpretação histórica foi equivocada porque o que a caracteriza, em regra, é o caráter diacrônico- o desvelamento de novas possibilidades sígnicas sem corroer o sistema, realçando-se o sentido textual e intertextual- e não o sincrônico. Aqui o sentido histórico diacrônico permite uma interpretação mais adequada do que é veículo automotor, conferindo ao texto sentido adequado. Um nível reforça o outro. No caso da apropriação privada da linguagem, sempre um nível interfere erroneamente no outro. Nem precisaríamos de reforma tributária, bastaria aplicar com o rigor o método hermenêutico.

Ode a Lima Barreto

Agora te compreendo, irmão,

sob teu rosto de brasileiro atormentado

rangem as formas vulcânicas e lâminas que

abrirão o porvir;

Agora te compreendo, irmão,

e sei que tua deliberada simplicidade e teu punho destro

lançaram contra ti os escravos escravos e os patrícios;

Agora te compreendo, irmão,

que o teu francês não era empolação

era a necessária assertiva da igualdade das inteligências;

Agora te compreendo, irmão, embora te quisesse mais firme e mais forte, arrostando os vórtices e, empertigado, segurando ainda mais o facho da liberdade;

Agora te compreendo, irmão, embora te quisesse mais feliz, mas sei que um país medíocre aprecia matar a viva invenção e, por isso, hei de te compreender mais e desenterrar tuas cartucheiras, projéteis e irisadas-iradas canções de diamantes e éter.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

SOBRE O MÉTODO DE PAULO FREIRE

“A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”

Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel.

Para Paulo Freire, não há como apartar o processo de aprendizagem e de alfabetização da crítica. A apreensão das palavras não se dá no vácuo, fora da necessária contextualização. O ato ler, quando adstrito à neutralidade axiológica, é alienante.  Já a leitura, feita no entrecruzar da palavra e do mundo, envolve a apreensão crítica da realidade.

Se Husserl propunha uma variação imaginativa entendida como a imaginação de um determinado objeto de estudo em todos os contextos possíveis para apreensão de sua essência, Paulo Freire, por um processo metonímico, buscava por inserir a palavra na contiguidade político-social, articulando o processo de alfabetização no contexto prático do aprendiz, alargando o horizonte até a percepção das coordenadas político-sociais que caracterizam uma formação social.

Entendendo a relação dialética entre palavra e mundo, buscava superar a forma alienante de alfabetização em que as palavras são emanadas de contextos abstratos, desconectados da realidade em que o aprendiz está inserido, esvaziando-se o ato de ler da potência política criadora que lhe é constitutiva.

Desde Jakobson, a linguagem tem dois eixos: 1) o metafórico -da similitude- e o metonímico- da contiguidade.[1] É próprio da análise crítica enfatizar não o processo metafórico, mas o metonímico, ou seja, as relações topológicas de vizinhança, realizando-se um processo contrário à fetichização, desvelando-se, no cotidiano, os elementos críticos da realidade. Ao alfabetizar um pedreiro, escolhendo-se a palavra ‘tijolo’, todos os elementos da produção do objeto até as relações de produção são compreendidas a partir da palavra. Aí já se desvela que alfabetizar é sim um ato político. Toda a experiência do aprendiz é convocada, pronunciada de forma a expressar-se numa forma de conhecimento, numa apreensão pela palavra do que em vivência está em outro nível de aprendizado. Um saber, para usar o termo de Sartre, oriundo do cogito pré-reflexivo. No ato de ler, dentro da perspectiva crítica, as pré-estruturas de apreensão pré-temática do mundo são trazidas à tona e mobilizadas para a crítica.

Karl Marx, quando analisa o fetiche da mercadoria, quer mostrar que um objeto, ao ser apreendido fora das coordenadas que lhe deram ensejo, produz efeitos alienantes e manifestos numa verdadeira fantasmagoria objetiva de forma que as relações de produção são visualizadas como relação entre duas coisas inanimadas e a própria relação social é fantasiada objetivamente como relação entre coisas. A alienação, por mais que distancie os seres sociais de sua realidade, integra a própria realidade, constituindo uma objetividade fantasmagórica. Por isso, a importância do trabalho crítico para, desfazendo a fantasia ideológica, revele o real.

A crítica, em Kant, envolve a análise das condições de possibilidade do conhecimento. Em Marx, significa, inicialmente, remontar todo o processo social às condições sócio-históricas que lhe engendraram. Nesse sentido, o livro “A Miséria da Filosofia” é exemplar, pois, critica o procedimento de Proudhon de reduzir um modo de produção e sua forma complexa a dois sujeitos abstratos, a saber: o produtor e o consumidor. Proudhon analisa a produção, olvidando as condições históricas que a engendraram. Esquece, pois, a produção histórica do modo de produção.

A ideologia significa justamente essa ilusão objetivamente explicável. Mesmo sendo ilusão, contém elementos da realidade a que alude e, nesse aludir, traz os rastros das condições de sua própria explicação. Nisso, a análise crítica, ao fazer o mergulho nas condições do entorno da ilusão ideológica, revela a estrutura mesma do mundo. Nesse contexto, o método de Paulo Freire é de natureza eminentemente crítica. No superar a visão mágica da palavra, revelando-se as relações de contiguidade social no ato de alfabetizar, acolhe a pronúncia do aprendiz, revelando-lhe o saber que já detinha em outro nível. O aprendiz, já sabendo, ao entrar no universo da palavra, politiza-se, descobre as relações de poder que engendra sua condição, articula o mundo de forma a superar o fatalismo que quer fazer da vida um lugar de resignação.

A premissa básica de Paulo Freire, na linha de Gramsci, é que todo cidadão é filósofo, seja porque, ao viver em sociedade, incorpora um conjunto de representações, seja pelo aprendizado da linguagem, a qual adensa sempre uma visão de mundo: a linguagem é um sistema modelizante. Partindo dessa premissa, rompe com a visão aristocrática para o qual o conhecimento é uma relação hierárquica em que o aluno de forma passiva recebe as luzes do sábio entronizado. Parte, pois, da igualdade das inteligências e da necessidade de romper as distâncias entre o intelectual e o povo.

O ódio a Paulo Freire se deve à premissa teórica que, partindo da relação dialógico-crítica, agasalha uma viva paixão pela igualdade. No ato performático de apostar na igualdade das inteligências se produz efeitos democratizantes, desvelando-se que o ato de comunicação, uma vez imbuído de dialogicidade, acolhe o outro excluído como legítimo produtor do próprio conhecimento e construtor da própria emancipação. Isso também tem claros efeitos políticos. Na modernidade periférica, a colonialidade de poder, por meio dos aparelhos ideológicos do Estado colonizado e colonizador, embebe as formas sociais de visões hierarquizadas para produzir o efeito ideológico de naturalização do patriarcalismo, do racismo e das injustiças econômicas. Não se produz tantas desigualdades e tantas contradições sem a indução de imagens hierarquizantes das relações sociais produzindo efeitos de naturalização da distribuição colonial injusta dos lugares e dos bens.   No ato de ler e de alfabetizar, Paulo Freire descobre os caminhos pelos quais se podem encontrar possibilidades de emancipação e do desnudar de como as hierarquias produzidas são frutos das instâncias de deliberação e resultado interacional da dinâmica sócio-econômica.

Conforme Afirma Althusser:                                                                             

“Na história da cultura humana, nossa época ficará marcada pela prova mais dramática e mais laboriosa de todas, a descoberta e a aprendizagem do sentido dos gestos mais simples: ver, escutar, falar e ler – esses gestos que põem os homens em relação com suas obras e essas obras atravessadas na garganta que são ‘ausências de obras’ ‘’[2]

O que Paulo Freire articula, de forma inusitada, é a possibilidade daqueles cujas gargantas tinham como única permissão emitir gritos guturais ascender, desde sua própria experiência com o mundo, à leitura do mundo numa obra crítico-libertária. Aqueles, cujas expressões das injustiças sociais moravam sempre numa interjeição pungente e muda, desabrocham na plenitude da palavra.

Juntamente com Althusser, Paulo Freire foi um dos que mais contribuíram para a compreensão do ato ler que, deixando de ser uma mera execução formal de signos, passa a ser um ato político de compreensão do modo como uma formação social funciona, desnudando-se seus mecanismos de exploração ideológica, política e econômica.

Se o vir à palavra que, segundo os gregos, conforma o homem se opõe à linguagem gutural pelo qual aos rostos sofridos expõem ao ser os estertores das formações sociais excludentes, uma vez vencido no oprimido o opressor que pode hospedar, o vir à palavra vem entremeado da crítica, da emancipação que consiste em dizer a palavra no engajamento da compreensão crítica da realidade. Se à ordem injusta interessa reduzir os protestos do povo à interjeição muda, Paulo Freire, apostando na igualdade, faz da alfabetização um ato de partilha crítica em que os oprimidos se descobrem portadores da chave da própria emancipação na partilha comum de um possível mundo justo já partilhado nas armas da crítica.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Há que fazer estudos sobre a primazia das metonímias no discurso crítico. No escritor crítico-realista Graciliano Ramos, por exemplo, a presença das metonímias é abundante. Realce-se que tanto a metáfora quanto à metonímia são analógicas. Sobre o sentido analógico do signo, ver o capítulo 2, 3 e 4 da obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.

[2] ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne; ESTABLET, Roger; MACHEREY, Pierre; RANCIÈRE, Jacques. Lire Le Capital. Paris: La Découverte, 2008, p. 6.

A fabulação do sangue

O verde sonhou-se

E as águas provaram do sabor de iniciar

Quando da criança a régia vivificação

Encetou corolas, vinis, canções cheirando a erva

Fabula-se a vida na palavra e no vinho

No sangue a rutilar o precioso húmus das origens

Porque de constelações famintas ressuscitamos o mel

Na seiva que fustiga o fogo

Elabora-se o trigo, a mesa, a partilha

As mãos amanham-se, fecundam a própria idéia de fecundação

A beleza em saber-se grão pequeno : manancial de surpresas;

As pupilas afagam abluções

Reescrevendo a árvore

suscitando o arco onde remansa o engenho

Indígena vida: o açafrão convola-se com o lume do cacau

O fruto doura o sol e rebrilha-se incendiando os pés que o afagam

De: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e Professor da UNEB.

IMPERIALISMO, DEPENDÊNCIA POLÍTICA E ECONÔMICA E AS LUTAS DOS POVOS PELOS BENS COMUNS

“Se eu sou, tu és”( São Paulo)

Karl Marx, quando analisa as formações sociais capitalistas, mesmo partindo da análise da mercadoria enquanto aparência da riqueza, já registra a tendência do dinheiro em se distanciar do processo de produção de mercadoria e em assumir uma autonomia excessiva. Em O Capital afirma:

“O dinheiro afasta as mercadorias constantemente da esfera da circulação, ao colocar-se continuamente em seus lugares na circulação e, com isso, distanciando-se de seu próprio ponto de partida’’ [1]

O capitalismo, no estágio atual, se caracteriza pela autonomização completa da forma-dinheiro de tal forma que os bancos, abandonando a condição de meros intermediários nos pagamentos, passam ao monopólio de praticamente todo o capital-dinheiro. Consoante afirma Lenin:

“À medida que os bancos se desenvolvem e se concentram num número reduzido de estabelecimentos, eles convertem-se de modestos intermediários que eram, em monopolistas onipotentes que dispõem de quase todo o capital-dinheiro do conjunto dos capitalistas e de pequeno patrões, bem como da maior parte de meios de produção e das fontes de matérias-primas de um ou muitos de países” [2]

A primazia da forma-dinheiro -enquanto circulação autorreferente sem mediação produtiva- derruba inúmeros mitos liberais como a livre concorrência e a austeridade fiscal. Com a concentração de capital-dinheiro, a tendência é as grandes empresas,

com apoio dos bancos e dos governos liberais, absorverem as pequenas, criando-se monopólios em áreas centrais da economia, encarecendo os preços, determinando-se quem terá acesso a certos bens e serviços. A exportação de capitais para os países de modernidade periférica converte a dívida pública em garantia dos credores internacionais e nacionais, transformando-se os Estados, submetidos à subjugação colonial, não em garantes universais dos direitos, mas em fundos de reserva do capital financeiro internacional e nacional.

Já a propalada austeridade serve, também, apenas para produzir reservas e recursos para garantir o pagamento de dívida pública inauditada pela compressão dos orçamentos públicos mediante a redução drástica dos gastos necessários à efetivação dos direitos econômicos e sociais.  Na verdade, o discurso de austeridade revela-se falacioso, pois, mediante corte nos setores essenciais como educação, saúde, seguridade social etc, fomenta-se, ao mesmo tempo, a dívida externa inauditada e a dependência econômica[3]. Enfim, a ‘austeridade’, nesse caso, serve para a perpetuação do endividamento dos Estados.

Não há que cair na mistificação dos aparelhos ideológicos das classes dominantes: estamos em plena vigência de agressivo e encarniçado imperialismo, o qual, conforme lição imperecível de Lenin, se caracteriza não pelo primado do capital-industrial, ligado à produção de mercadorias, mas do capital financeiro.

Então, verifica-se, especialmente pela reificação da política, convertida em mediação básica das condições de perpetuação do domínio do capital financeiro, uma partilha territorial do mundo, consistente na usurpação das riquezas minerais, fontes de água, terras agricultáveis, fontes de energia e etc, presentes em territórios de nações periféricas, suprimindo os povos das condições básicas de vida.[4] É o direito à vida dos povos que está ameaçado. Mas, como as questões centrais das formações sociais são submetidas à deliberação coletiva, a luta política, por isso, coloca-se como central. Não é por acaso que o capital-financeiro busca de todas as formas reificar a política, seja mediante o silenciamento dos intelectuais e líderes populares orgânicos, seja mediante o financiamento a partidos, inclusive os de ‘esquerda’, retirando, para citar Mao Tsé-Tung, o caráter antagônico da contradição política, permitindo o surgimento apenas de ‘políticos’ comprometidos com a reprodução dos meios e condições necessárias à perpetuação da lógica rentista. O capital financeiro, por intermédio da

reificação política, tem suprimido a autodeterminação de inúmeros Estados na modernidade periférica para levar a cabo a empresa nefanda de pilhagem de riquezas naturais. Nessa conjuntura, a América Latina cumpre um papel geopolítico inestimável e a luta por autodeterminação, por isso mesmo, se confunde com a luta pelo direito à vida.

Se o capital financeiro busca reificar a política, cabe aos povos radicalizar as lutas políticas e assumir a vanguarda da luta pelos bens comuns, salvaguardando o futuro da humanidade. Já Hegel, ao defender um direito natural dialético, afirmava que os bens comuns como a água, ar e etc não podem ser submetidos à irracionalidade do domínio privado, mas à racionalidade publico-comunitária.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Vol 1. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 100. A fórmula do capital não é mais M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), mas D-D (dinheiro-dinheiro). A leitura dos 5 volumes dessa obra-prima do pensamento humano é crucial para entender todos os artifícios do capital. Marx já previra a conversão dos Estados em fundo de reserva de capital mediante a confusão entre dívida pública e bolsa de valores.

[2] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 55.

[3] No caso do Brasil, tivemos partidos pretensamente de esquerdas, consolidando, mediante financiamento de bancos públicos, monopólios no setor de alimentação. O cinismo chega ao ponto máximo de se proclamarem, mediante discurso piedoso típico dos hipócritas, pioneiros da luta pela segurança alimentar. Resta salientar a importância da obra de Josué de Castro, intelectual perseguido pela ditadura explícita (1964-1985), que lutou, de forma pioneira, pela ideia de segurança alimentar.

[4] Sobre a centralidade político-econômica da noção de território, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.