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MAOÍSMO, HEGEMONIA E EMANCIPAÇÃO SOCIAL

A Bartolomé de Las Casas

Mao Tsé-Tung foi pensador genial em cujo pensamento a noção de estratégia é inerente aos próprios conceitos. Oferecia pensamentos argutos e diretivas políticas adensadas em fórmulas geniais. Um mestre insubstituível da cartografia política. ”Resolver as contradições no bojo do povo e resolver a contradições no bojo do partido” é uma diretiva que oferece uma cartografia conceitual para nos libertar da desorientação política e apresenta o mapa necessário de toda construção transformadora. No âmbito do povo, resolver as contradições significa unificar as classes dominadas na produção de uma efervescência democrática capaz de frear intentos despóticos e num bloco de poder coeso, capaz de autocrítica enquanto mediação mobilizadora e, no âmbito do partido, evitar a danosa infiltragem e a cooptação para o imperialismo, evitando-se o fetichismo político de forma que o partido se torna o instrumento de mediação do interesse geral do povo. Um povo unido constrói partidos capazes de traduzir em termos de decisões político-econômicas seus interesses universais.

A diretiva genial, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci.

Um dos problemas da luta social é a distorção dos conceitos e a incompreensão da forma com que se realiza a luta de classe. Na América Latina, a conjuntura é sempre mais complexa do que na Europa. Os governos de oposição consentida já tem o apoio secular da aristocracia financeira, dos grandes proprietários de terra e da pequena burguesia, especialmente a acadêmica que, sob o verniz de progressismo, é extremamente conservadora porque não abdica de seus privilégios obtidos pela lógica do prestígio e, muitas vezes, pela aparência progressista, se infiltram nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais para conter sua força expansiva. Nada mais reacionário do que o progressismo da pequena burguesia falante em suas ‘rebeldias’ performáticas vazias. Essas três classes tem aliança perpétua. Se, porventura, o país tem partidos de contradição antagônica e movimentos sociais coesos, os governos de oposição consentida, além da infiltração, buscam cooptá-los mediante benesses administrativas e privilégios camuflados, corrupção, ou, se não conseguir isso, mediante a estigmatização e a persecução penal da superpopulação relativa.

Um dos sintomas mais claro de que um governo não é de esquerda se dá quando sobrecodifica a questão econômico-social pela persecução penal dos pobres. E, nesse caso, rótulos só servem para escamotear uma estrutura profunda de repressão fascista.

O primeiro sinal do fascismo é a militarização das escolas e do cotidiano. Cria-se, sob o discurso da ordem, um panóptico sutil sobre os talentos. Nenhum fascismo se faz sem o jogo e o jugo do olhar censor sobre os talentos. Observa-se que os grandes escritores do nosso continente perceberam o panóptico colonial. Em vários contos de Córtazar se vê a forma sutil com que o fascismo, desde forma esmaecida, mas concreta, ganha figura, e, avultando-se tenebroso, desaba sobre os países. Estamos num período em que o fascismo se torna rizomático e, não dizendo seu nome, ancora-se mais sutilmente nas escolas e nas ruas, nas sondagens, na chantagem publicitária e na repressão absoluta da morte. O fascismo é o mecanismo político pelo qual se interdita o questionamento político das formações num processo contínuo e crescente de despolitização que, indo às últimas consequências, não tergiversa em instaurar a repressão pela morte. Pela sondagem militar e ilegal das pessoas, busca-se interditar àqueles que possam questionar a interdição; não sendo possível o silenciamento, instaura-se a morte enquanto mensagem cotidiana de poder obsceno: corpos empilhados nas ruas enquanto signo da ameaça.

Não obstante, seguindo Nietzsche, o fascismo nunca é ativo, mas é sempre reativo às insurgências democrático-comunitárias. Se há fascismo, é porque alguma comunidade pode se estabelecer.[1]

Em Ler em Louis Althusser, escrevo:

“A questão ‘’o que é se orientar na política?’’ emerge crucial e, ao entender que existe uma linha de demarcação justa, uma linha justa de definição, podemos evitar o diversionismo tão ao sabor do capital financeiro e devolver às formações sociais a orientação pela qual os problemas que lhe são congênitos sejam abordados e, por corolário, enfrentados corretamente.”[2]

Devolver às formações sociais a orientação pela qual possam enfrentar os problemas centrais é superar o progressismo. Os governos progressistas, sem exceção, giraram em torno de temas subalternos objetivando preservar a dependência econômica e, por mais paradoxal que seja, o desenvolvimento do subdesenvolvimento. É mais fácil iludir com bônus e bolsas famílias do que reprimir com canhões. Acontece que, quando o capital entra numa de suas crises cíclicas, aposta mais na repressão do que nas ilusões das demandas no sentido de Laclau. Ao mesmo tempo, quando começa um caldeamento teórico-prática de base popular em formações sociais de política fetichizada, a aposta é na oposição consentida. A jogada do império é criar uma espécie de duplo vínculo patológico que torna as formações sociais neuróticas no sentido da psicanálise, isto é, perdidas nas falsas antinomias de superfícies que, mantendo a aparência democrática, deixa intocáveis as bases econômicas da dependência, e mantém o jogo político como monopólio das classes dominantes. Entre os corifeus da repressão ostensiva e os fanfarrões dos bônus familiares, há uma grande cumplicidade, um solo comum: a aceitação acrítica da dependência econômica. Os progressistas integram, sem exceção, as classes dominantes. E todos sabem quem são os progressistas.          

A vitória da esquerda, portanto, depende da construção do que Gramsci chama Hegemonia, a qual deve ser capaz de escapar, numa linha de fuga para citar Deleuze, do duplo vínculo patológico. Umas das razões da melancolia política na Europa e em certos países da América Latina é a incapacidade da oposição consentida em mobilizar os setores populares que, por serem dotados de percepção arguta dos problemas concretos, não se sentem mais mobilizados para a seara política. Há uma melancolia política ancorada num extremo realismo político. Por isso, apenas partidos de contradição antagônica tem a capacidade de fazer os setores populares sentirem entusiasmo pela política novamente.

 Hegemonia, pois, consiste na capacidade de uma classe lograr apoio crescente das classes que estão na mesma situação de classe para produzir a mesma posição de classe, formando um bloco de poder que, pela força que ostenta, impede que qualquer representação se autonomize do projeto popular que a sustenta. Noutras palavras, a hegemonia é a força social que não se aliena mediante a representação de tal sorte que a representação não consegue se apartar da principiologia social que lhe deu origem. Conforme diz Marx:

“A emancipação humana não é realizada senão quando o ser humano reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais e não separe dele essa força social sob a forma de força política”[3]

Um partido é hegemônico quando a sua força política não reúne condições de se isolar e se autonomizar, de forma autorreferente, da força social que lhe deu substância. Se lograr a força social, pela intersecção da classe obreira, intelectuais orgânicos, movimento indígena, movimento campesino, movimento feminista anti-imperialista, o partido torna-se hegemônico, e a vitória é a inquebrantável. Não há como a esfera política se alienar da força social sem que sucumba nas suas pretensões ilegítimas. Nem o partido se insula na pobre autorreferência de interesses privados.

Portanto, a construção de um bloco de poder coeso e unido depende da resolução das contradições no âmbito do povo e das contradições no âmbito do partido.

A diretiva genial de Mao Tsé-Tung, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci e permite resgatar a viva paixão pela igualdade e pela política.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Para a Sigmund Freud, a neurose se caracteriza pela incapacidade de aprender. O duplo vínculo patológico fecha o horizonte de emancipação de maneira que as formações sociais ficam perdidas em círculos viciosos políticos em que há o simulacro de alternância no poder sendo que o processo político continua monopólio das classes dominantes. Neutraliza-se o antagonismo irreconciliável pelo jogo das meras diferenças. Nesse aspecto, a recepção decolonial da psicanálise é fundamental para compreensão da colonialidade do poder e das manifestações do fascismo. Da mesma forma que o superego cria estruturas reativas, não há colonialidade do poder sem a perpetuação de formas reativas de ser-em-grupo, instaurando diagramas de repressão e de vigilância. O livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, serve de preâmbulo para essas novas escavações teóricas. Pode colaborar, também, para o desvelamento das situações em que o oprimido hospeda o opressor. Fanon usa a noção de mais-valia psíquica ao ir no rastro desse grave problema para os movimentos sociais. Enfim, é possível uma reinvenção decolonial da psicanálise.

[2] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Pensar desde as margens da modernidade: a emergência de novas heterotopias. Ebook. 2ª Ed. Juazeiro: Oxente, 2022, p. 14.

[3] MARX, Karl. Ouvres Philosophiques, Tomo V, Paris: Alfred Costes, 1948, p.202.

POR QUE MARX INVENTOU O SINTOMA?

Marx afirma que, quando foi redator na gazeta renana, foi constrangido a tratar de problemas materiais. A que problemas materiais se referia? Nesse momento de inquietude filosófica, a filosofia é interpelada a discutir as questões de terra e a condições sociais dos camponeses. É um instante decisivo em que Marx trava uma verdadeira batalha semiológica. Analisa os textos legais, lê, apressurado, os artigos da imprensa e, no rastro da linguagem, identifica, pela primeira vez, que a sociedade não é um todo orgânico, mas marcada por contradições que são ocultadas pela inversão ideológica dos problemas. É no analisar a forma com que, na Inglaterra, se colocou a questão da miséria que Marx enxerga o sintoma. É no terçar das armas das críticas que Marx inventa o sintoma.

Para Lacan, Marx inventou o sintoma não no sentido de uma criação arbitrária, mas por ter, pela primeira vez, visto e enunciado um problema que estava no real sem ter sido elevado ao plano da linguagem. Inventar o sintoma é entender a racionalidade da contradição, isto é, que uma contradição indica um conflito incontornável e que a maneira com que se tenta esconjura-lo já desnuda o próprio conflito. Inventar o sintoma, pois, é elevar à presença da linguagem uma questão ainda não formulada, mas em estado de latência na prática social.

Marx só identifica o sintoma quando, pela análise do discurso, por uma semiologia social rigorosa, visualiza com clarividência as racionalizações que desorientam as questões, lançando-as para o plano em que não podem ser resolvidas a não ser imaginariamente ou reprimidas de forma cruenta pela violência.  Marx entende logo a inversão ideológica quando a questão da pobreza é colocada sob a perspectiva da culpabilidade do próprio cidadão excluído e pele sobrecodificação da questão social pela questão criminal. Em Glosas Crítica assertoa:

O Parlamento inglês combinou essa teoria de caráter humanitário com o parecer de que o pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo trabalhador, não devendo, em consequência, ser prevenido como infortúnio, mas reprimido e punido como crime.

Marx, como semiólogo, nota as racionalizações e chega à borda da grande contradição: a produção de riqueza está atrelada à produção de miséria e, a partir dessa simetria inevitável nos marcos do regime de propriedade capitalista, desenvolveu o modelo teórico das lutas de classes (no plural analógico). As lutas de classes significam a impossibilidade de a sociedade capitalística se representar de forma não antagônica.

Os aparelhos ideológicos são mobilizados como racionalizações com vistas a obscurecer as lutas de classes, a torná-las meras diferenças, esvaindo-se seu caráter agônico – no sentido grego do termo. Laclau insere o populismo na lógica das demandas, mas, por diluir a categorias das lutas de classes, não consegue estabelecer uma linha de demarcação para orientação crucial das refregas políticas. As lutas de classes são obscurecidas pelas demandas que impedem a sociedade de saber buscar a própria emancipação econômica.

O progressismo vazio se enreda na difusão das demandas e não toca questão central: a discussão do modo de produção. Bolsa família, bônus e rendas básicas são fantasmagorias de quem não quer enfrentar a questão decisiva.  Enquanto a demanda indica o aprisionamento na circularidade vazia, a crítica marxista indica para a questão central pela qual se retoma o fio da meada: a batalha pelos modelos econômicos que, na América Latina, só poder ser empreendida pela unidade política da intersecção da classe operária e camponesa e os movimentos anticoloniais e anti-imperialistas.

Para Laclau, no plano político, deve imperar a razão populista, e, no plano econômico, a questão das classes econômicas. Ainda que seja engenhosa, e com largos conhecimentos linguísticos, faltou à teoria de Laclau a visão da totalidade e, onde vê determinações fixas, há a dinâmica inextrincável entre economia e política. Mais uma vez, o pensamento de Mao Tsé-Tung permanece vigente e vívido, sabendo articular de forma coerente a questão popular e questão de classe. Segundo o mestre, no contexto da guerra contra o Japão, povo era a união da classe operária e dos nacionalistas burgueses. Vencida a guerra, povo era a união entre a classe operária e os camponeses. Os termos são moventes analogicamente.

Só há política porque a contradição exige toda uma maquinaria deliberativa preordenada, em tese, à resolução dos problemas coletivos e que, ainda que se reifique, precisa mobilizar-se sob as várias formas reais ou imaginárias para impedir o deparar com as contradições. No capitalismo, a legislação torna-se simbólica numa simulação imaginária dos problemas pela proliferação de leis repletas de uma linguagem piedosa, mas carente de efetividade porque faltam as condições concretas para sua realização. A disseminação de leis é uma forma de a sociedade simular a solução de problemas que ela que não quer encarar. Em Constituição de Atenas, Aristóteles afirma que a constituição só se realiza se for superado o abismo entre ricos e pobres.

As lutas de classes, nesse sentido, constitui a condição de possibilidade da política. Só há política porque, no cerne do modo como se produz, cria-se uma superpopulação relativa, a qual, pela própria presença, ainda que não articulada sob a forma de organização política, ameaça a ordenação hierárquica da sociedade burguesa. Não é regressar à determinação unívoca, mas entender que só há política porque há um fosso entre ricos e pobres e que surge a necessidade de se criar instâncias de mediação institucional que, por mais neutras que se declarem, surgem mesmo dessa contradição ínsita à sociedade. O estado colonial, na sua gênese, não é o que reúne, mas o que surge para que evitar a dissolução ou o deparar com o caos básico da economia burguesa. Mas nada impede uma reorientação comunitária do Estado num sentido de construir, desde as bases populares, a reapropriação dos bens comuns.

Sartre diz, em Crítica da Razão Dialética, que foi a presença massiva da classe operária que fez o existencialismo entrar num ponto de bifurcação e aderir ao marxismo. A intuição é correta. Mas penso que, desde a América Latina, a questão é  a percepção da superpopulação relativa. O que caracteriza o modo de produção capitalista é a multiplicação dos proletários- diz Marx. E disse mais: o apanágio do sistema capitalista é a produção da superpopulação relativa. A superpopulação relativa existe em três formas: a) a líquida ou fluente; b) a latente; c) estagnada; o que significa dizer que, no plano do capitalismo, o pleno emprego é uma ilusão muitas vez azeitada por pesquisas sem base empírica e reformas superficiais que servem para camuflar a questão central.

Rosa Luxemburgo colocou a questão corretamente: não há que negar o valor em si das reformas; toda reforma que, ao mudar gradativamente a realidade social e econômica, aumenta a consciência para si do proletário e instila um anseio pela ampliação da democracia, constituindo passo essencial na transformação cabal das formações sociais, é viável. Admoestáveis são as reformas rasteiras- estilo bolsa família ou bónus familiares – que escravizam e são engendradas numa lógica neocolonial e coronelista.

É preciso reafirmar a centralidade da questão econômica e enunciar que o devir humano envolve a necessidade de um modo de produção comunitário em que o direito à vida, o direito à saúde e o direito ao trabalho sejam direitos universais e não submetidos à decisão de oligarquias reacionárias. E, para isso, retomar o conceito de que a economia é o campo de reprodução da vida e, não a circulação autorreferente de dinheiro sem lastro material, é o ponto de partida incontornável de toda pretensão política genuinamente de esquerda. O trabalho vivo e a natureza são as verdadeiras fontes criadores de valor[1].

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1]  “A relação em espiral entre economia e política constitui o ponto de partida ineliminável. O projeto neoliberal, para os países periféricos, se funda naquilo que Gunder Frank chamou de desenvolvimento do subdesenvolvimento. No atual cenário, o Estado deve se limitar a lastrear o pagamento da dívida pública. O suposto elogio do mercado capaz de, por suas leis, realizar o ótimo social é um desvio ideológico para subordinar o Estado ao papel subalterno de mero fundo de capital. Isso mesmo: o Estado só para os donos dos negócios. Digamos diretamente: não há burguesia que não seja estatal. Não é mera coincidência que a constituição de 88 com vinculação orçamentária e direitos sociais tenha sido objeto de crítica há muito; a ênfase na austeridade fiscal representa justamente essa subordinação ao capital financeiro pelo mecanismo da dívida pública: privatização, destruição dos serviços públicos para criar campo vasto ao setor privado como educação e previdência,  fim de investimentos sociais, acumulação de capital nas mãos de poucos, sendo os pequenos empresários sorvidos nesse processo (até onde vai a autofagia?); tudo isso, como disse Keynes refutando Hayek, gera o péssimo social cujo controle é entregue à política de Malthus e à máquina policialesca”.

DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ANALÓGICA SOBRE O MARCO TEMPORAL

“A linguagem é o dom mais perigoso dado ao ser humano para que ele herde aquilo que ele é”
Holderlin

  1. À GUISA DE INTRODUÇÃO

Um sistema se compõe de elementos e da relação entre esses elementos. A relação entretecida entre os elementos compõe a estrutura. As leis de composição, não se confundindo com elementos tomados isoladamente, moldam e plasmam a estrutura. Ainda que nenhum elemento tenha existência fora da relação, é possível, mediante a variação imaginativa, destacar de uma estrutura os elementos que a compõe para, após, remarcar melhor as relações na totalidade. Todo método engaja sempre análise e síntese[1].

O ordenamento jurídico, como sistema aberto, não é uma realidade pré-existente, completa e já dada em suas configurações de sentido. O ordenamento é um campo de possibilidades interpretativas que demanda a leitura para sua consumação e, para isso, conforme ensina Lourival Vilanova, a necessária formalização lógica diante da realidade sempre inusitada em aspectos ainda não formalizáveis.[2]

A formalização, no caso jurídico, depende da maneira com que o texto é relacionado com à estrutura a que pertence e dos signos históricos que o sistema pode internalizar sem desfigurar a sua compleição interna.  As configurações e as desfigurações da interpretação se inserem, ainda que não haja consciência, pelo modo com que se formalizam os dados da experiência jurídica.

Em outro lugar, salientamos que as ciências sociais, na medida em que estudam um objeto já prenhe de sentido, enfrentam uma aporia inevitável decorrente da dupla função hermenêutica que se lhe subjaz: voltar-se ao estudo do significado já dado socialmente ou submeter a significação social ao modelo dos fenômenos físicos.

No caso da ciência jurídica, é fundamental compreender que, ao interpretar a lei, emite-se, concomitantemente, um juízo sobre a lei. Ou seja, a maneira com que se forma uma tradição jurídica centrada num conjunto de hábitos e formas de ser e de pensar condiciona a intelecção e a formalização dos dados empíricos do sistema jurídico.

O ordenamento jurídico, mais do que uma ordem dada, é uma tarefa delicada de produção de sentidos que exige um esforço hermenêutico significativo que, à míngua de método, pode levar à corrosão dos sentidos estabelecidos coletivamente e o esgarçamento da tipicidade pela qual o direito realiza[3][4]. A dispersão da linguagem, no plano jurídico-político, gera golpes de estados, opressões internas e externas, perseguições racistas e sexistas. Conforme salientava Octavio Paz, na América Latina, lutar pelo sentido comunitário das palavras é o princípio de grandes transformações.

 A construção de métodos jurídicos sólidos é a condição axial da realização escorreita e objetiva da ordem jurídica. O saber crítico cumpre função central para evitar que a prática jurídica se converta no que Sartre, ao analisar a lógica dos grupos, denominava prático-inerte, isto é, uma prática serializada na repetição e cujos princípios, não sendo elevados à consciência, dominam os agentes que se tornam reprodutores dos ‘valores’ prevalecentes de forma acrítica. 

Nesse sentido, as discussões sobre a dicotomia entre teoria da argumentação, centrada na estrutura lógica dos raciocínios, e a teoria hermenêutica, ligada ao  horizonte prévio e compartilhado de pré-juízos, tornam-se ociosas. Enunciar que a prática jurídica acontece no horizonte argumentativo, isto é, de proposições com pretensão de legitimidade não quer dizer a negação de que existe um fundo compartido de expectativas, valores e ações constitutivas no plano da prática social que figura como pano de fundo para a argumentação. A questão é analisar como se dá o trânsito do saber já vivido na práxis e de como a formalização obedece aos critérios científicos. Por isso, é preciso pensar a hermenêutica mais em termos de obstáculos hermenêuticos do que em termos de pré-juízos. O epistemológico Gaston Bachelard enfatizou que o papel da ciência é a representação geométrica e objetiva da experiência.   

  • Nível Textual

Se entendermos que a inteligibilidade de qualquer sistema não é limitada ao aspecto interno, mas depende das conexões com a totalidade aberta, o sentido literal só se desvela quando articulado à estrutura na qual se move e na qual encontra ancoragem e horizonte de significação e às influências históricas que sofre. Mas a análise é importante para a representação científica desde que, após sua manifestação, empreenda-se a articulação sintética do todo estruturante complexo. [5]

Todo signo, conforme alertava Saussure, na medida em que se define pelas relações de vizinhanças com os outros signos, ostenta um campo associativo que funciona como uma moldura analógica formada por termos estreitamente ligados, impedindo uma deriva aleatória dos significados. Afirma Saussure: “uma palavra pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de uma maneira ou de uma outra” [6]

O campo associativo é um campo analógico no qual sentidos aproximados se relacionam sem implicar em corrosão do significado. Mesmo o sentido metafórico não se contrapõe ao sentido literal. Ao contrário, serve para realçá-lo e flagrar a relação analógica entre os termos. 

Conforme registra, de forma fecunda, Gadamer:

“(…) se alguém realiza a transposição de uma expressão de algo a outra coisa, está considerando, sem dúvida, algo comum, mas isso não necessita ser, em nenhum caso, uma generalidade da espécie. Pelo contrário, em tal caso nos guiamos pela sua experiência em expansão, que leva a perceber semelhanças tanto na manifestação das coisas como no significado que elas possam ter nós. Nisso consiste precisamente a genialidade da consciência linguística, em poder dar expressão a essas semelhanças. Nós chamamos a isso seu metaforismo fundamental, e importa reconhecer que não é senão preconceito uma teoria lógica alheia à linguagem o que nos induziu a considerar o uso transpositivo ou figurado como um uso inautêntico”[7]

Por exemplo, a palavra mãe sugere a ideia de origem, causa, ascendência. A moldura analógica, portanto, se limita com o campo associativo que cada palavra deflagra.  Toda linguagem é feita e repassada de metáforas fossilizadas, já dizia Jorge Luis Borges. A metáfora é a substância mesma da linguagem.[8]

Feitas essas consideração introdutórias, vejamos os textos – constitucionais e infralegais- que versam sobre o direito dos povos originários.

Reza a Constituição:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

No nível estrutural, vamos empreender a análise da relação entre propriedade e posse, mas, no que concerne ao nível textual, concentrando-se no verbo enquanto núcleo, a constituição estabelece um campo analógico entre o verbo  habitar ao qual, analogicamente, se vincula o adjetivo ocupadas e habitadas bem como o advérbio tradicionalmente. [9] Dos dispositivos se infere o analogado principal: terras já ocupadas tradicionalmente[10]. Nesse sentido, a ideia de que o direito à posse permanente se vincula à data da promulgação da constituição ou outra marco vinculado à promulgação não tem correlação com o analogado principal, extrapolando a moldura analógica. [11]Trata-se de um caso gritante de apropriação privada da linguagem.

A lei de nº 6001/73 – Estatuto do Índio- também, no art. 22, consigna a expressão posse permanente das terras que habitam e não estabelece nenhuma condição temporal.

Dessa forma, a tese do marco temporal agrava o sentido literal, transbordando da moldura analógica, estabelecendo uma condição ad hoc para um direito que, de acordo com a constituição e a legislação infraconstitucional, não tem condição temporal para seu reconhecimento.

  • Nível Estrutural

No nível estrutural, deve-se identificar o eixo temático a que está adstrita a questão. No caso sob exame, envolve a análise da conexão dos direitos reais de propriedade, posse e usufruto.

São internas ao direito de propriedade as seguintes faculdades: a) de usar, consistente na possibilidade de servir-se da coisa b) a de gozar, consiste na percepção dos frutos e produtos da coisa, e c) a de dispor, consistente na possibilidade alienar- transferir para outrem- a coisa e d) a de reivindicar, consiste na possibilidade de reaver a coisa de quem quer que seja.

Os direitos reais, na perspectiva burguesa, são analisados sempre de maneira recortada e estanque, especialmente a relação entre os institutos centrais da propriedade e da posse. Marx e Engels perceberam o mecanismo subterrâneo que orienta a visão hegemônica da propriedade e da subalternização da posse:

“Essa ilusão jurídica, que reduz o direito a uma vontade única, conduz fatalmente, no contexto do desenvolvimento das relações de propriedade, ao fato de que se pode ter um título jurídico de uma coisa sem ter qualquer relação real com ela” [12]

É possível, portanto, ter uma propriedade, mediante um título, sem qualquer relação real com a coisa. As mais variadas versões da categoria jurídica de direito subjetivo pressupõe essa abstração. Leon Duguit, ao defender uma concepção de direito fundada na solidariedade, criticava a noção burguesa- individualista de direito subjetivo, afirmando que o fato de se atribuir a alguém um direito já é uma decorrência do social. Todo direito é social.  Afirma:

“O homem natural, isolado, que nasce livre e independente dos outros homens, e com direitos constituídos por essa mesma liberdade e essa mesma independência, é uma abstração alheia à realidade.”[13]

A teoria do abuso do direito – que proíbe o uso egoísta de um direito- e a ressignificação da propriedade como função social já antecipavam este amanhecer. Assevera Leon Duguitt:

“Estas leis mostram que a partir do momento em que o proprietário terreno deixar de preencher sua função social, a coletividade é convocada naturalmente a intervir para assegurar uma exploração indispensável à vida social[14] (apud Gaston Morin, Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1945, p. 93/94, tradução livre).

A constitucionalização contemporânea do direito civil implica o transmontar dos limites do individualismo liberal, tornando-o [o direito civil] poroso a outros valores, sobretudo o da solidariedade. Tal tendência alcança o instituto da propriedade que passa por uma transformação paradigmática que cabe ao jurista captar.

Ao assinalar a função social da propriedade, a constituição de 1988 inaugura um novo ciclo reconhecendo a função social da propriedade no rol dos direitos fundamentais (art. 5, inc. XXIII) e como princípio da ordem econômica (art. 170, inc. III).

Como assertoa Washington de Barros Monteiro:

 “Uma nova conceituação [da propriedade] conferiu-lhe os atributo da função social. A propriedade de hoje– a serviço dessa função- tem de ser geradora de novas riquezas, de mais trabalho e emprego, tornando-se apta a concorrer para o bem geral do povo.” (In Curso de direito civil, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 5).

No suplantar a perspectiva atomista em que o indivíduo é uma mônada isolada da comunidade, a relação entre propriedade e posse se torna mais estreita e mais complementar. Na medida em que a posse significa relação direta com a terra, a posse-trabalho emerge como nova perspectiva que, uma vez encartada dos atributos da boa-fé, consubstancia o direito de propriedade como direito que deve ser, pelos imperativos axiológicos da constituição, um direito de caráter coletivo. A posse-trabalho é a fonte de legitimação do direito de propriedade. Mesmo quando exercido de forma individual tem que se harmonizar com os ditames da axiologia comunitária.[15]

A posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, além de consoar com esse novo horizonte jurídico de cunho coletivo talhado de forma objetiva na Constituição de 1988, projeta uma perspectiva comunitária em que a relação com a terra é condição de manutenção da vida existencial e cultural dos povos originários, configurando uma manifestação do direito à vida já que a sobrevivência, não só biológica, mas também cultural está atrelada à posse-comunidade da terra. Por isso, tal direito de posse se distancia da visão atomística forjada pela visão burguesa e ostenta um sentido comunal, imantado de um sentido ético e ecológico ao densificar a tutela do direito à vida e também ao meio ambiente sustentável.

Ao regrar a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, a constituição ressalta justamente o caráter comunitário, desvelando uma nova nuance de posse que só é compreendida se suplantada a visão atomística liberal e que a doutrina civilista precisa desvelar de forma a evitar ruídos sobre tão lancinante questão. À luz da fase estruturante do método jurídico-analógico, a visão adequada da questão das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários só se apresenta se houver o realce da posse-trabalho ou a posse-comunitária como fundamento do direito de propriedade e não a propriedade abstrata preordenada à especulação e à mais-valia fundiária, urbana e rural.[16]

O Estatuto do Índio estabelece no seu art. 18:

“Art. 18. As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.”

A posse-comunidade se manifesta juridicamente sob a forma de usufruto. Entende-se por usufruto o direito real de fruir das utilidades e frutos de uma coisa sem poder afetar-lhe a substância.  Quanto ao tema, estabelece o Estatuto do Índio:

“Art. 24. O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.”

Analisando a questão tendo em vista a estrutura, não há qualquer antinomia entre os institutos, havendo harmonia nos nexos de sentido, afastando-se qualquer possibilidade de se criar contradições artificiosas para provocar, falaciosamente, a necessidade de uma ponderação entre regras em conflitos, privilegiando aquela que o intérprete quer impor.

Consoante afirmamos alhures, ao se criar falsas oposições entre as normas, produz-se uma equivocidade artificial de maneira que, por uma ponderação ad hoc, revoga-se uma norma que, uma vez lida de forma correta, permaneceria íntegra no ordenamento.

Ao contrário do que se afirma, a posse permanente das terras ocupadas pelos povos originários se afina com a axiologia do ordenamento autóctone e qualquer criação de antinomias revela-se como mecanismo de apropriação privada da linguagem.

O que a tese do marco temporal busca é criar títulos jurídicos abstratos para suprimir a posse direta – que já é exercida tradicionalmente pelos povos originários. Se a questão é visualizada da perspectiva da posse-comunidade, não há razão alguma para condicionar o direito dos povos originários a terras tradicionalmente ocupadas ao marco da data da promulgação da constituição ou qualquer outra data ligada à promulgação.

  • Nível Histórico

É possível recortar quatro sentidos para o nível histórico da interpretação: a) busca do sentido tendo por base os registros dos debates que precederam à constituição da lei; b) a atualização axiológica do sentido da lei; c) o sentido embutido no momento em que a lei foi forjada e d) o sentido dialético entre o aspecto sincrônico e diacrônico.

Tradicionalmente, a interpretação histórica está centrada na análise das discussões parlamentares nos momentos de discussão e votação dos projetos de leis. Figura-se a ideia de que a lei promana do legislador erigido como significante-mestre do qual as leis promanam. A doutrina jurídica fala em interpretação subjetiva no sentido de que se procura encontrar a ideia que inspirou o autor.

Na verdade, o legislador nunca é um bloco monolítico e unívoco como se pudesse identificar com uma figura existente. É mais um processo complexo que envolve a representação das mais variadas classes sociais de forma que enfeixa-lo numa figura unitária é uma abstração incompatível com a realidade. Por isso mesmo, vontade do legislador e sentido subjetivo são expressões que simplificam o processo complexo de produção de leis. São metáforas de má qualidade científica.[17]

Também a interpretação histórica é vista como a atualização axiológica dos sentidos da lei. Conforme a linguística ressalta, os signos são mutáveis na medida em que um significante- o mesmo som- pode adquirir novos significados e, portanto, novos valores. Em sendo as leis escritas de acordo com a linguagem natural, não estão alheias ao influxo do tempo de maneira que é inevitável a possibilidade de as palavras assumirem novos significados. Mas, no caso do direito, para preservar a intangibilidade do ordenamento, os novos sentidos só agasalhados quando consoantes com os sentidos pretéritos e conformados com a estrutura jurídica.

Savigny, por sua vez, quando talha um método de intepretação, visualiza, dentre outros, o elemento histórico entendido como estado de direito existente sobre a matéria na época em que a lei foi emitida. Aqui o método histórico se relaciona com o contexto do qual a norma emergira.

Os dados que interessam a um determinado campo situam-se a partir de dois eixos. O sincrônico em que a se enfatiza a simultaneidade de acontecimentos em um mesmo tempo. O diacrônico em que se mira a sucessão de acontecimentos em tempos distintos. Ao se limitar ao estudo sincrônico de um fenômeno, corre-se o risco de destemporalizá-lo, convertendo-a numa imagem idealista sem materialidade. Não se nega que é fundamental estudar a estrutura de um fenômeno dotado de autonomia relativa, marcado por dependências internas. Não obstante, estudar a estrutura sem articulá-la à gênese histórica provoca a sua hispostasia em um ente subsistente em si mesmo e desenraizado da práxis que lhe deu ensejo. O que caracteriza, portanto, à luz da hermenêutica jurídica analógica, o método histórico é a relação dialética entre o caráter diacrônico e o sincrônico de forma

que o desvelamento de novas possibilidades de significados deve estar alinhado aos aspectos atuais e pretéritos – sincrônicos. Deve-se enfatizar que o desvelamento de novas possibilidades sígnicas só é admissível quando não corroer o sistema, realçando-se o sentido textual e intertextual.

Na questão examinada, em toda a experiência constitucional brasileira, consagrou-se o direito dos povos tradicionais à posse permanentes das terras tradicionalmente habitadas. Por exemplo, a Constituição de 1967, estabelece:

Art 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

Portanto, em toda a história constitucional projetou-se um conceito de nação amplo, capaz de superar a colonialidade do poder. No cerne da questão do marco temporal, também se insere a grave questão de que conceito de nação irá prevalecer.

Os conceitos políticos não surgem historicamente do nada nem flutuam no ar como se fossem criações cerebrinas de um pensador solitário. Se aparecem na história, é porque cumprem um papel na dinâmica política. E, como a história não passa de geopolítica, os conceitos políticos são formas emergentes das refregas geopolíticas.

O que se espera é que o conceito amplo de nação tal como consagrado no projeto constitucional de 1988 seja corroborado. Não há passado nem devir no Brasil sem os povos originários.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Na tradição dialética, a distinção entre o entendimento e a razão é similar à distinção entre análise e síntese, mas tem uma maior riqueza científica.

[2] Nesse sentido, tem razão Lacan quando diz que o real é o impasse da formalização. Podemos acrescentar que o avanço da ciência significa sempre a formalização de novos aspectos não subsumíveis. O valor da prática científica é justamente traz novos aspectos que motivam a ciência a avançar.

[3] O pensamento jurídico opera por tipos. Em todas as configurações do direito, a noção de tipo se manifesta.

 

[5] Aqui avulta de importância o tema da cadeia de custódia enquanto elemento central para representação objetiva e idônea de um fato e da forma democrática de um sistema lógico.

[6]SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2010, p. 146.

[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica. Petrópolis: 1999, p. 623-624.

[8] O que chamamos sentido literal nada mais é que uma metáfora que perdeu a evidência.

[9] A sintaxe no sentido gramatical é de importância quando vinculada à semântica. Outrora, os livros de gramática estavam imbuídos de uma subjacente lógica: os estados, as qualidades e ações relacionadas com os substantivos, adjetivos e verbos; as preposições e as conjunções expressando as mais variadas relações lógicas entre as frases e orações; os pronomes e os artigos as determinações ou indeterminações determinadas dos substantivos, o que permitia uma compreensão do funcionamento estrutural e lógico do idioma.

[10] O conceito de analogado principal foi resgatado pelo filósofo Maurice Beuchot.

[11] Os limites e as possibilidades da moldura são definidos pelo analogado principal. Por exemplo, no verso de Castro Alves “O incêndio — leão ruivo, ensanguentado”, o analogado principal é ideia de fúria, a qual as sinestesias e sugestões do poema estão vinculadas.

[12] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 170.

[13] DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. LZN editora, 2003, p.10.

[14] No original: “ Ces lois montrent que du moment où le propriétaire terrien cesse de remplir sa  fonction sociale, la collectivité est naturellment amenée à intervir pour assurer une exploitation idispensable à la vie sociale”

[15] Para evitar a propagação de falácias por pseudomarxistas medíocres e venais, urge sempre invocar o texto de Marx e de Engels. No Manifesto escrevem: “O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa” Mais adiante, salientam: “O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte do produto social; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação”. O marxismo consequente se opõe ao modo irracional da apropriação burguesa; por isso, não nega a propriedade individual, apenas se lhe retira do contexto burguês de apropriação. O marxismo buscar conferir um sentido comunitário à propriedade para evitar a exploração que a dominação burguesa da propriedade permite. O marxismo, conforme disse Althusser, está por criar. Criemo-lo.

[16] A Constituição Boliviana de 2009, que inaugura a segunda fase do constitucionalismo transmoderno, dentre tantas novidades, no capítulo sobre Terra e Território (art. 393 ao art.403), concebe a versão mais avançada do direito de propriedade comunal enquanto fundado na posse-trabalho, com a previsão de amplos mecanismos de combate à retenção especulativa da terra e de combate à mais-valia fundiária. Uma constituição, para citar Derrida, por vir  na medida em que trouxe à luz novas possibilidades, inscrevendo-se definitivamente na memória dos povos e projetando aquilo que em comum pode ser produzido. Kant dizia que um ato é revolucionário quando indica ao ser humano aquilo de que é possível em termos de ampliação da liberdade. A constituição Boliviana, então, é revolucionária.

[17] Não se pode negar o valor das metáforas para o conhecimento científico. Por exemplo, a dialética de Mao Tsé-Tung sempre lançou mão da metáfora da espiral para indicar o caráter infinito do conhecimento.

LIBERDADE, IGUALDADE, PROPRIEDADE E BENTHAM

A visão ‘teleológica’ da história da modernidade como evolução e das técnicas como avanços que trarão, por si só, benefícios comunitários são equívocos históricos. A narrativa de um progresso exponencial e a crença infundada de que as técnicas são neutras e, por sua natureza intrínseca, teriam um uso universal serviram para camuflar o fato, mesmo óbvio, mas entrevisto apenas por alguns filósofos, de que não há como apartar a história da técnica da história da economia e da história da política.

Marx, em Ideologia Alemã, faz uma associação entre o sistema ideológico e o mecanismo da câmara escura. Afirma:

“São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, mais os homens reais, produtores, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado das forças produtivas e das relações que lhes correspondem e compreendendo as formas mais largas que podem tomar. A consciência não pode ser outra coisa que o ser consciente e o ser do homem é o seu processo de vida real. E, se, em toda ideologia, os homens e suas relações se apresentam de cabeça para baixo como numa câmara escura, esse fenômeno decorre do processo da vida histórica, absolutamente como a reversão dos objetos sobre a retina decorre do processo de vida diretamente físico.” [1]

 Para além da ideia fecunda de que a ideologia, mesmo sendo uma fantasmagoria, não significa uma mera ilusão, pois, é uma fantasmagoria fruto das relações sociais, ancorada nas relações materiais, a relação entre o processo ideológico e o mecanismo da câmara escura não transborda do teor metafórico e permite vislumbrar a correlação intrínseca entre tecnologia e formas de dominação?

No cerne de O Capital, Marx coloca a fórmula central dessa modernidade capitalista: “Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”. Na medida em que os primeiros termos existem apenas na retórica, são anulados constantemente por estruturas de dominação total: a retórica da liberdade e da igualdade serve para camuflar as estruturas subjacentes de poder que buscam submeter as formações às injunções do poder econômico.

Não se pode esquecer a questão central de que um determinado modo de produção precisar se reproduzir a si mesmo. Numa carta a Kugelmann, em que faz observações fabulosas sobre a ciência econômica burguesa e sobre a teoria do valor, Marx deixa claro que uma formação social que não reproduz as condições da reprodução ao mesmo tempo em que produz pode perecer.[2]

Urge perguntar se a reprodução envolve o uso das tecnologias para fins de controle social? Uma formação social, tisnada de contradições, fadada a não enfrentar os conflitos que lhe são constitutivos, só se reproduz se constringir os espaços de liberdade. Ocorre que a repressão ostensiva se deslegitima facilmente. Dessa forma, as técnicas modernas, na medida em que proporcionam formas sutis de vigilância e controle social, ensejam formas de coerção que se tornam cada vez mais discretas e mais eficientes nos seus intentos.

Se Marx já antecipava que a lógica espacial e da vigilância do sistema fabril produzia a anexação da vida à operação do detalhe, mostrando que a divisão do trabalho, ao invés de gerar solidariedade como pensava Duhkheim, significava a vinculação do trabalho a uma operação parcial, retirando do trabalho caráter de arte, tornando o processo de trabalho apêndice do processo de valorização de capital, Foucault, nas sendas de Marx, identificou as formações disciplinares. O sistema fabril se esparge como paradigma por todo o corpo social através de instituições de produção da dócil-utilidade.

Em Vigiar e Punir, livro cujas tensões internas precisam ser lidas corretamente, Foucault vislumbra, no século XVII e XVIII, o surgimento de instituições que, por meio da distribuição espacial, enquadravam os corpos numa disciplina que funcionava como operador econômico, voltado a esquadrinhar os indivíduos, dobrando-os às injunções de produzir mais economicamente, diminuindo, concomitantemente, as forças políticas que pudesse desatar.  

A disciplina funciona como criadora de positividades, seja na forma de poder, seja na forma de saber: o indivíduo enquanto mônada produtiva surge das configurações dos dispositivos disciplinares. Mas existe um elemento presente no livro que até então passou desapercebido. Nos interstícios dessa obra de lucidez metálica, não se analisa apenas a disciplina-bloco que opera pelo confinamento, mas, sobretudo, a disciplina-mecanismo que engendra dispositivos funcionais que, pelo jogo do olhar, tornam o poder mais sutil, mais leve e mais eficaz. A análise do panóptico de Bentham mostra justamente as tensões da transição ou da convivência mútua entre a disciplina-bloco e a disciplina-mecanismo.

Na disciplina-mecanismo, pelo jogo do olhar e, acrescente-se, da escuta, produz-se uma forma de vigilância mais discreta, mais capilar e mais sutil, cuja materialidade se torna vaporosa em termos de origens e mais eficaz em termos de efeitos. Uma forma de poder que se materializa em seus efeitos, mas que dissipa os rastros que pudessem identificar a sua própria origem. Poder total dos efeitos, irresponsabilidade total da ação do poder. 

Foucault, numa clara remissão a Marx, registra que ‘’a máquina de ver é uma  câmara escura em que se espionam os indivíduos”[3]. Ótica e escuta total, destinadas a converter cada indivíduo, identificado como óbice aos projetos nefastos de dominação total, à margem de qualquer legalidade, um caso a ser observado, vigiado, submetido à logica do espectro total e até destruído fisicamente.

No centro da disciplina-mecanismo, a figura central é o exame enquanto mecanismo binocular de vigilância ininterrupta. O exame estabelece, segundo Foucault, uma economia da visibilidade no exercício do poder, faz da individualidade objeto do documentário da vigilância, cerca o indivíduo, de forma rarefeita e muita concreta, fazendo dele um caso de inspeção minuciosa e sem trégua das formas contemporâneas do panóptico.[4] É uma forma de poder que, atuando de forma invisível, constrange os indivíduos a uma visibilidade obrigatória para torna nula sua potência política ou de pensamento. Atualizando a fórmula de Marx: Liberdade, Igualdade, Capital Financeiro e Tecnologias subsumidas a intento de poder total é a insígnia de uma época de controle total.

Agambem, em várias passagens, afirma que, quando emergirem as singularidades que escapam à laminação do poder, virão os tanques de ferro. Já não se precisa de tanques de ferro, as novas técnicas de olhar e de escutar já chegam antes que as singularidades apareçam no horizonte político[5]. A palavra liberdade, mesmo massacrada, nunca teve uma atualidade tão gritante.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 50-51.

[2] MARX, Karl. Lettres à Kugelmann. Paris: Editions Sociales, 1930, p.  99-100, carta de julho de 1868. No texto Ideologia e Aparelhos Ideológicos, Althusser faz um uso conceitual das ideias contidas nessa carta e mostra que todo poder fusiona consenso ideológico e coerção. Podemos acrescentar que, na temática da reprodução, é preciso inserir o uso das técnicas que figuram como mecanismos de coerção mais sutis e mais eficientes que a repressão física visível.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis: Editora Vozes, 2009, p. 196.

[4]  FOUCAULT, Michel. Ob. Cit. Capítulo sobre o exame. Na obra Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020, fizemos uma análise de como o exame, agindo à margem da legalidade, chega às singularidades de forma capilar. Um poder tão sutil que opera à margem da lei. Heidegger afirma que a Terra é o aberto do qual não se pode afastar porque nele estamos imersos. Diante das técnicas modernas, a própria Terra se torna objeto do panóptico. Quem sabe estamos presenciando a necessidade de um direito do espaço cósmico e interplanetário? Nesse contexto, como saliento na obra citada, a tese do espaço jurídico vazio deve ceder às injunções da comunidade humana universal.

[5] Toda técnica é desdobramento de um sentido.

KANT E AS ANALOGIAS DAS EXPERIÊNCIAS

A Alain Badiou

“Nenhum mundo é tal que sua potencia transcendental pode desrealizar por completo a ontologia do múltiplo”

 Alain Badiou, Lógicas de los mundo

O que é permite a experiência? O que é a experiência? Na filosofia alemã moderna, o conceito de experiência, de Hegel a Adorno, tem uma preeminência que precisa ser cuidadosamente desvelada. O conceito ganha vigência e assoma como essencial na Crítica da Razão Pura de Kant. Mais do que um livro sobre os limites, as condições e as possibilidades do conhecimento, podemos afirmar que é um livro sobre quais são as condições da experiência. A busca sobre as condições do conhecimento é uma função da necessidade de compreender o sentido da experiência.  

Kant confessa que foi Hume que lhe tirou do sono dogmático[1]. Qual o sentido da afirmação? É preciso remontar à questão que Hume planteia e verificar a forma com que Kant responde à questão. Hume questiona o princípio da causalidade pelo qual um fato A está, necessária e universalmente, atrelado ao fato B. Para Hume, não há nada que, do ponto de vista da lógica, aponte para verificação lógica de que dois eventos estejam vinculados do ponto de vista da necessidade. É cediço que, na filosofia, há necessidade quando um fato é sempre da mesma forma, mantendo-se constante e uniforme: a necessidade trata das coisas que sempre são como são.  No evolver da filosofia, necessário significa aquilo que obedece às leis naturais.

Hume rechaça a possibilidade de os conhecimentos encontrarem uma justificação na percepção sensível de tal forma que o liame entre os fenômenos é mais fruto do hábito do que da lógica: uma necessidade subjetiva fundada no hábito aparenta emanar de uma necessidade objetiva arrimada no conhecimento. Afirma:

“Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta em direção da outra, mesmo que se suponho que o movimento na segunda me veja acidentalmente sugerido como resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar dessa causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível com o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.” [2]

Seguindo Quentin Meillassoux[3], podemos afirmar que Hume não inquire porque as leis são necessárias, mas de onde vem a crença na necessidade das leis. A causalidade não seria um princípio ínsito à natureza, mas uma crença fundada no hábito: nossas inferências sobre a experiência decorrem mais do costume do que do raciocínio. Trata-se de um costume articulado na repetição da temporalidade. Afirma Hume: “Todas nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado”

Aqui, vamos arriscar a hipótese de que a solução do grave problema de Hume passa pela compreensão da filosofia transcendental de Kant[4] e o papel das analogias da experiência. É preciso remarcar que transcendental não se confunde com transcendente. O conhecimento é transcendental quando versa não sobre os objetos, mas sobre o modo de conhecê-los. Em sendo a matéria do conhecimento heteróclita e heterogênea, apenas a cognição, através dos conceitos e das categorias, permite conferir uma forma à rapsódia de sensações, isto é, um lugar de ligação como totalidade. A forma, então, é a condição sob a qual um objeto pode ser representado conceitualmente.

É nesse contexto que é preciso insertar a problemática das analogias das experiências. Nos textos denominados pré-críticos, cuja importância deve ser exalçada, Kant define a experiência como uma forma de conhecimento que exige o entendimento. Já se entrevê não uma dicotomia, mas uma conjunção entre o sensível e o inteligível.  Não há experiência que não esteja emoldura por categorias de conhecimento.

Quando da dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento, Kant vinca a ideia central do esquematismo, que confere a possibilidade da experiência e que doa realidade objetiva à nossa cognição. Entende-se por subsunção a colocação de um objeto sob um conceito, devendo haver uma homogeneidade – símiles correspondentes- entre o conceito e o objeto.

O esquema, então, apresenta-se como a condição formal da sensibilidade, a condição pela qual um objeto pode ser representado e apresentado. No dizer de Kant: “O esquema não é, pois, propriamente senão o fenômeno ou o conceito sensível enquanto concorda com a categoria”[5]

Os esquemas analógicos tem um uso regulador na medida em que a realidade pode apresentar novos aspectos não subsumíveis e que exigem uma retificação do conhecimento. A analogia, dentro dessa lógica, tem uma importância crucial que passou desapercebida. Se Kant responde ao dilema de Hume salvaguardando um espaço de pensamento transcendental que, por ser apriorístico, é capaz de resistir ao ceticismo conforme o qual a experiência é flutuante e heteróclita e, portanto, insuscetível de teorização e conforme o qual a própria causalidade é uma crença fundada no hábito e não na lógica, ao articular a analogia e experiência, por isso mesmo, projeta a possibilidade de a ciência se enriquecer com a experiência, assimilando novos aspectos da realidade, num processo infinito do conhecimento, não estaria assim escapando da imagem tradicional de que é um pensador que emperra na indecidibilidade entre o inteligível e o sensível?

Ao tratar da síntese, busca demonstrar que a ligação da diversidade dos elementos dos fenômenos não pode emanar dos sentidos e, pois, da intuição sensível, mas somente dos conceitos e das categorias a priori: as categorias se apresentam como conceitos que prescrevem a priori as leis dos fenômenos. Já as analogias, mesmo não tendo um sentido apriorístico, inserem-se no passe entre a categoria e a experiência. Se sobrelevarmos o papel da analogia e mesmo das categorias, Kant não é mais o filósofo do abismo entre o conhecimento categorial e a realidade sensível como sói divulgar-se, mas o que, de forma inaugural, pensou o passe entre o sensível e o inteligível.

Nesse ponto, tanto Hegel quanto Marx, ao conferirem mais movimento às premissas do pensamento kantiano, são herdeiros diretos de Kant[6]. Em Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, Hegel assinala: “Em qualquer proposição de conteúdo inteiramente sensível, como ‘essa folha é verde’, já estão inseridas categorias: ser, singularidade’’[7].

É no centro vivo da analogia que Kant resolve as contradições entre o inteligível e o sensível, entre o transcendental e o empírico e aqui se encontra a gênese moderna do pensamento dialético. Kant diferencia o sentido matemático e o sentido filosófico da analogia:

“Em filosofia, as analogias significam algo diferente do que elas representam em matemática. Na matemática, são fórmulas que exprimem a igualdade de duas relações de grandeza, e elas são sempre constitutivas de forma que, quando três membros da proporção são sempre constitutivos, o quarto é também dado por ele mesmo, isto é, pode ser construído. Na filosofia, ao contrário, a analogia é a igualdade de duas relações, não de quantidade, mas de qualidade: três membros sendo dados, eu não posso conhecer e dar a priori senão a relação com um quarto termo, mas não o quarto termo ele mesmo; eu tenho somente uma regra para procurar na experiência e um signo para lhe descobrir. Uma analogia da experiência não é senão uma regra segundo a qual a unidade da experiência (não a percepção ela mesma, como intuição empírica em geral), deve resultar das percepções, e ela se aplica aos objetos (aos fenômenos), não como princípio constitutivo, mais simplesmente como princípio regulador”[8]

A analogia da experiência é uma regra segundo a qual a unidade aberta da experiência deve resultar da unidade sintética das percepções e, ao se aplicar aos objetos não como princípio constitutivo, mas como princípio regulador, converte o conhecimento num processo aberto às novidades e ao cotejo fático numa alteridade provida de motivação comunitária sem se ensimesmar num sistema fechado e refratário ao uso público da razão.

Partindo da premissa de que os modos do tempo são a permanência, a sucessão e a simultaneidade -cuja fonte é indisfarçavelmente a física de Newton e guardam relação com a noção de temporalidade e de espacialidade que lhe é subjacente- Kant assinala três analogias da experiência, a saber: a) a substância persiste no meio das mudanças dos fenômenos (permanência); b) todas as mudanças sucedem conforme a lei da ligação dos efeitos e das causas (sucessão); c) todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas como simultâneas no espaço, estão numa ação recíproca (ação recíproca ou comunidade).[9]

Percebe-se que a analogia da causalidade permite superar o dilema de Hume, revelando-se que a experiência não é aleatória, alheia e estranha à teorização[10]. Se Kant reconhece nos conceitos as condições a priori da possibilidade da experiência, nas analogias da experiência –especialmente a da causalidade- verifica-se a conjunção entre o transcendental e o empírico numa relação criativa em que, ao mesmo tempo, temos o rigor de uma regra bem aplicada e a possibilidade de, diante de novas circunstâncias, fazer o conhecimento avançar.

Os sistemas teóricos analógicos, então, são motivados e, por isso mesmo, o itinerário percorrido não altera o ponto de partida; ao contrário, realiza-o de forma cabal de modo que, a cada circunstância nova e desconhecida, os esquemas conceituais se enriquecem com as particularidades com que depara. O modo com que os esquemas teóricos indexicam o real é analógico. Por meio da analogia, para usar a terminologia de Badiou, podemos nos acercar do vínculo entre o ser-múltiplo e os esquemas transcendentais de sua aparição.[11] Sendo a experiência uma síntese das percepções, um aspecto da realidade só pode ser identificado enquanto se relacionar com um símile- que o marca- no indexador transcendental: a realidade é a forma com que a estruturamos por meios dos esquemas transcendentais.  

As analogias da experiência, como tratam da relação da busca de um não dado a partir de um dado, apresentam um uso regulador, permitem ao conhecimento avançar de forma a abarcar aspectos novos: unifica, de forma frutuosa, rigor e invenção. A variação das imagens dá ensejo à identificação das continuidades e das descontinuidades entre os fenômenos, articulando-se os nexos causais entre os fatos.

O não conhecimento de aspectos ocultos do real não é prova do malogro da ciência, mas afirmação de sua imperatividade. À ciência cabe mesmo investigar o que está oculto. Diante disso, é possível reconfigurar, à luz da dialética, a ideia de necessidade e de contingência. Necessário é o que podemos relacionar às leis gerais; contingente o que, não podendo ainda ser remontado às leis, permanece oculto e desconhecido. O que chamamos contingência é apenas o que remanesce incompreendido em suas causas. A causalidade analógica, no contexto, cumpre papel decisivo porque enseja não só o cálculo de um quarto termo desconhecido, mas a descoberta de uma relação existente num nível profundo entre os vários termos, mas ainda oculta. É, à luz da indexicação transcendental, que a relação entre os termos é, pela primeira vez, apresentada em seus nexos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] KANT, Emmanuel. Prolégomênes a toute métapsysique future qui pourra se présenter comme science. Paris: Vrin, 1941, p.13.

[2] HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Editora Nova Cultura, p. 51.

[3] MEILLASSOUX, Quentin. Después de la Finitud: Ensayos sobre la necesidad de la contingência. Buenos Aires: Caja Negra, 2015. A ontologia da finitude redunda numa filosofia do malogro e da resignação. Merece contemplação a obra de Sartre por ter sido a única que, adstrita às contradições da finitude, tenha dela extraído consequências libertadoras. Lendo a obra retroativamente, a palavra final não está na melancólica conclusão de O Ser e O Nada em que o ser humano, mergulhado na contradição de ser para si inconcluso e buscar realizar-se enquanto ser em si completo, não passa de uma paixão inútil; mas no final do livro A Náusea em que chega à conclusão de que a arte sobrevive ao artista na eternidade e na duração. Dentre outras inestimáveis contribuições do livro ‘’O Ser e O Evento’’, de Alain  Badiou, está a de ter desarticulado a ontologia da sanha da finitude, devolvendo, com todas as consequências decorrentes, ao infinito a posição central na filosofia e, também, na ciência. A ciência, com seus functores, eixos e coordenadas, tem dificuldade de lidar com o infinito. É no Oriente, especialmente na China, onde a relação entre ciência e infinito tem as concreções mais fecundas, desde que subsumidas para o comum. O trem chinês e os computadores quânticos são a prova viva dessa relação.

[4] Existem três imagens do pensamento: o empirismo, o transcendentalismo e o especulativo. Em Hegel, a tendência especulativa consegue reunir de forma inovadora o empirismo e o transcendentalismo. sobre o especulativo  em Hegel ver o genial livro El Porvenir de Hegel, da filósofa Catherine Malabou.

[5] KANT, Emmanuel. Prolégomênes a toute métapsysique future qui pourra se présenter comme science. Paris: Vrin, 1941, p.13.

[6]Não se compreende a afirmação de Marx de que o concreto é a síntese de múltiplas determinações sem ter lido, linha a linha, a Crítica da Razão Pura.

[7] HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). São Paulo: Loyola, 1995, p.42.

[8] KANT, Emmanuel. Critique de raison pure. Paris: Flammarion, 1976, p.218.

[9] Diante das novas descobertas da física quântica, podemos arriscar a hipótese de que as analogias da experiência em Kant podem ser renovadas sem perder a dimensão rica que ora ostentam nos seus escritos.

[10] Sobre a relação entre as crises de paradigmas científicos e as crises do modo de produção capitalista bem como a necessidade de rechaçar o caráter aleatório dos fenômenos para reafirmar a necessidade de compreendê-los cientificamente, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020. Pelas injunções do modo de produção capitalista, muitos fenômenos são lançados na irracionalidade para que não sejam enfrentados. Existe um obscurantismo científico inerente ao capitalismo que precisa ser revelado e criticado.

[11] BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: El ser y acontecimento, 2. Obra-prima do pensamento, de rigor lógico robusto. Sobre a questão levantada aqui, ver o Livro III, Grand Lógica, 2, El objeto.

O PESO DO SÉCULO

A ZHOU ENLAI

Diáfana presença no ar de chumbo

Mais sutil do que vento

Hidráulico, sabe a tempestade

Sabe dos campos minados onde se emaranham passado e porvir

Das longas marchas onde o possível e o fel se intricam

Pudera eu ver-te, camarada

Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;

Nos teus ombros de leveza

Pesa a dor do século  

aprendi que, no mais emaranhado dos cafarnauns, tua presença diáfana trouxe

a cã calma, a tez da aurora, o júbilo dos povos,

Pudera eu ver-te, camarada

Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

A ANALOGIA CONTRA O FANTASMA DO INDECIDÍVEL

Quando, no ápice da Guerra Fria, um diplomata norte-americano afirmou que era preciso pensar uma estratégia para os tempos de paz, na verdade, estava deixando claro que a distinção entre paz e guerra se desvanecia. Nesse momento, estabeleceu-se a lógica da guerra indireta voltada à desestabilização das democracias nos países estrategicamente relevantes por meio do estímulo a divisões internas, inviabilizando a construção de um projeto unitário, desativando-se o processo político, entregue a políticos capazes de reativar a colonialidade do poder e subordinar os interesses nacionais às injunções do imperialismo. Dentro dessa lógica, a colonização do sentido comum do direito cumpriu um papel decisivo, tendo por mecanismo central a apropriação privada da linguagem e a normatização apócrifa dos fatos que esgarçam a legalidade e a tipicidade jurídica, dando azo a perseguições dos que forem eleitos como inimigos.

Instauram-se políticas de inimizades, direcionadas a líderes populares e anti-imperialistas, operando-se a suspensão colonial do direito. Por meio da apropriação privada da linguagem fomenta-se o fantasma do indecidível, mergulhando a cidadania na mais obscura incerteza, preordenando-se as estruturas de poder para interesses terríficos de dominação. A indefinição do código lícito-ilícito permite lançar formações sociais numa lógica do espectro que serve para suprimir a potência política pelo medo e, o mais grave, por meio de uma aparência de legitimidade jurídica perseguir aqueles identificados como capazes de abalar os interesses do imperialismo. Ou seja, qualquer pessoa pode perder, por meio de mecanismos sutis de apropriação privada dos sentidos, o estatuto de cidadão, tornando-se, para usar Agambem, vidas expostas a toda sorte de violação estatal.

Existe uma concepção eurocêntrica para a qual o direito é apenas um instrumento de opressão classista e que nada mais é que a vontade do mais forte. Tais teorias ignoram completamente a história, especialmente dos países periféricos, pois não haveria apropriação colonial dos territórios e das riquezas desses países sem a teoria do espaço jurídico vazio. Portanto, defender que o direito é sempre opressão significa legitimar as formas de saques imperialistas mesmo que sob a aparência de criticidade.

Na Europa, em que o sistema jurídico funciona como limitação do exercício do poder até se pode dar o luxo de criticar a igualdade formal, mas, na modernidade periférica, em que sempre imperou formas de poder abusivas e violentas, defender a legalidade é tarefa importante, mas não a única nem a decisiva. Na verdade, uma perspectiva genuinamente dialética, não descola o aspecto formal da legalidade do aspecto substancial. Uma coisa é criticar os limites da legalidade formal, outra coisa é defender sua suspensão, desprotegendo-se, sobretudo, os pobres – os que são parte de parte alguma, na linguagem de Rancière- e os politicamente insubmissos.

 Em Hegel, a dialética formal/substancial sempre esteve mais desenvolvida do que nas ambiguidades do marxismo vulgar em relação à legalidade. Lenin, em reiteradas passagens, estabeleceu que umas tarefas do proletariado é consumar, no sentido de levar a plenitude, todas as tendências positivas da democracia burguesa. Defender a legalidade sem qualquer laivo de ingenuidade é tarefa política fundamental.

As amargas experiências, na história recente da América Latina, demonstram que a suspensão colonial do direito é mobilizada para perseguir líderes políticos populares e intelectuais orgânicos capazes de adensar, à maneira de significantes mestres para usar Lacan, as aspirações mais genuínas de um povo num projeto político soberano e independente, voltado a resolver as contradições lancinantes das formações sociais periféricas.

O mecanismo sutil da corrosão da legalidade é a apropriação privada da linguagem que permite o esgarçamento do binômio lícito-ilícito, inserindo condutas atípicas e legais sob a égide da ilegalidade mediante a normatização apócrifa dos fatos. A hermenêutica jurídica analógica, por meio de um largo suporte semiológico, permitiu identificar o fenômeno e estabelecer, por meio da compreensão dos três níveis de interpretação (textual, intertextual e histórico), critérios de decidibilidade racionais que permitem, mediante o uso público da razão, compreender quando a interpretação se insere na moldura analógica e quando dela se desgarra de forma que o intérprete alheia-se da comunidade linguística, manipulando a produção dos signos para alterar, quase de forma imperceptível e com aparência retórica de legitimidade, o âmbito de validade das normas, alcançando situações que, se obedecido rigorosamente o método, estariam forma do espectro normativo.

A hermenêutica jurídica analógica não nega o caráter criativo que emoldura todo ato interpretativo, mas, partindo da ideia consolidada de que o texto é um campo limitado de ações possíveis, permite vislumbrar a continuidade entre texto e interpretação numa espiral criativa em que o sentido comunitário da linguagem e da comunidade política é preservado e controlado pelo uso público da razão.

 Todo intérprete que se alheia da comunidade linguística também, de forma imediata, se afasta da comunidade política sob a pretensão de que pode, por sua vontade irracional, instaurar o direito da forma que lhe convém. Por isso, se pode dizer que nunca houve solipsismo. Se o intérprete acha que detém de forma imediata, sem qualquer trabalho teórico-interpretativo, a verdade de um texto é sinal de que a comunidade política se alienou ao permitir uma produção de sentido alienada da comunidade de comunicação. Por isso, o que se chama solipsismo já é um fenômeno coletivo. Na verdade, a ênfase no termo, além de desconsiderar toda uma tradição filosófica para a qual solipsismo é sinônimo de intersubjetividade, de Wittengeinst a Merleau-Ponty, serve para ocultar o fato de que a normalização do arbítrio interpretativo é um fenômeno político cujas raízes devem ser procuradas na dinâmica da geopolítica.

A dominação imperial de espectro total só funciona se se lançar as formações sociais na assombração do indecídível. Emmanuel Levinas fala do desastre, remontando à raiz etimológica do termo: a ausência de um astro que oriente. A vida fica presa a um tempo sem tempo: o tempo infernal em que tudo perdura nos mesmos impasses e nas mesmas impossibilidades. O tempo como impossibilidade, a vida como possibilidade da impossibilidade, perdida num tempo eternamente suspenso da indefinição. Nesse sentido, os livros de Kafka continuam de atualidade gritante ao demonstrar como funciona a lógica do espectro do indecidível: as vidas dos personagens de Kafka se encontram num tempo suspenso no indecidível.

Uma formação social, quando mergulha no indecidível, perde os eixos da ação política e social, é dominada pela lógica do espectro em que os cidadãos são convertidos em potenciais vidas nuas, isto é, podem ser colhidos arbitrariamente nas malhas de um sistema jurídico que já não funciona conforme o binômio lícito-ilícito. A assombração do indecidível alimenta o medo, coarcta a possibilidade genuína da emergência democrática, cria o ensejo de perseguir qualquer pessoa sob a aparência de legitimidade jurídica, produz a sombra de que, a qualquer tempo, qualquer um pode ser privado da cidadania e das condições básicas da vida cotidiana.

Defender a moldura analógica é tarefa primeva para restabelecer a produção objetiva dos sentidos, garantindo-se a base de direitos humanos necessária para que a refrega política aconteça sem descambar para a malsinada lógica do amigo-inimigo. Na analogia, pode-se palmilhar um caminho em que a produção dos sentidos é compartilhada pela comunidade dos intérpretes e suscetível de verificação comunitária. Enfim, a comunidade se reapropria das condições coletivas de produção de sentido e afugenta a alienação linguística que permite o indecidível.[1]

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Sobre todas essas questões ver: As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.

Tua Vigência

Vulneram-me os teus cabelos alongando-se arbóreos

Mulher vinda das seivas estelares,

retraças a felicidade do universo

Quero as ervas que instilam teu corpo

O que no campo abraça as invenções de um tempo urdido na candura

Na viagem, o orvalho inicia a corola:

O milagre em suas sementes de luz acolhe as sereias do teu olhar

Vindima e vime ramificam a tua existência

Finas malhas, folhas virentes como vozes

Candeias e candelabros vivendo destino amável

no largo em que cresce teu nome

Seria o próprio périplo beirando o verdor?

A preparação da chuva de novos seres?

Meu rebento abisma-se em tua nascente

Quando os sinos estrugem a música dos vitrais

A claridade que me cria e nutre vem de ti

De tuas florestas erguidas em pleno mel

Como um lugar terno cheio de virações e sépalas

Intuo e abeiro o mês invadido pelos matizes do Ipê

Eu te encontro na cidade possuída pelas árvores

E sei das águas a espelhar mitologias felizes

Posso contar-te dos milagres em que me refaço

Da manhã, da criança, das orquídeas e rizomas

Levanto-me: sou o canto que a terra sonha

Vislumbro a amazônia, a festa de rios que a tua vigência proclama

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento

ZIZEK E A MELANCOLIA EUROCÊNTRICA

“Quem está enredado em particularidades só vê particularidades”(Hegel).

Em artigo recente, publicado no Le Monde, Slavoz Zizek volta a defender o legado ocidental da Europa afirmando que os pontos altos dos iluministas continuam centrais para o mundo. Apesar de não dizer o que entende pelo signo Europa, é importante destacar que o texto não coloca a questão no ponto em que pode se apresentar adequada e justa. E, adequada e justa, vai no sentido que Lenin estabelecia: de demarcar um problema onde ele pode ser corretamente abordado.

Não há problema algum em reconhecer o legado filosófico da Europa, cuja negação seria de um obscurantismo absurdo, mas é necessário entender que a universalidade postulada pela Europa sempre se cingiu, nas práticas correntes, às investidas imperialistas e que, sob a veste de um humanismo excludente, desencadeou políticas de inimizades, espoliando povos inteiros de seus territórios e de sua autodeterminação.

Lembro Foucault – que soube exercitar o difícil exercício da tradução e da alteridade radical engajando-se em lutas anticoloniais como na defesa da Revolução Iraniana- quando dizia que as Luzes do Iluminismo também criaram as prisões e as instituições de sequestros, as quais tiveram como laboratórios os países submetidos, com muita violência, à apropriação colonial.

Se colocarmos a questão na lógica do sistema-mundo, o conjunto de valores europeu resulta frágil e antinômico porque, como salientava Sartre, num prefácio à obra Os Condenados da Terra de Franz Fanon, tece loas abstratas à universalidade, mas trata os outros povos como particularidades a serem exploradas. Esta patente contradição, essa chaga aberta, é diariamente vista e não dá para destacar o legado da prática que desencadeia.

O caso de Hegel é interessante e é fecundo para desobstruir a questão da unilateralidade eurocêntrica. Se, em algumas passagens, Hegel afirma uma espécie de teleologia em que o espírito desde os povos antigos culmina na Europa, no cerne vivo da fenomenologia do espírito, ao analisar a dialética do senhor e do escravo, Hegel afirma categoricamente que o senhor, por estar preso às particularidades, crispado na defesa renhida de seus próprios interesses, é incapaz de adotar uma postura mais abrangente, e que o escravo,  na medida em que está despojado dos atributos da humanidade, constitui a verdadeira consciência essencial e o único a poder consagrar, desde a ética da coragem, uma perspectiva verdadeiramente universal. Eis uma verdade que lança Hegel para além do eurocentrismo e que pode ser imediatamente reinvindicada pelos povos insurgentes contra o colonialismo. Seguindo essa lógica, Marx e Engels, em A Sagrada Família, afirmam que o proletário se perde na alienação, mas, ao mesmo tempo, adquire a consciência teórica dessa perda e, que, por estar privado da humanidade, o proletário é a classe capaz de adotar o ponto de vista universal concreto e verdadeiramente humanista.

Tem razão Enrique Dussel quando afirma que estamos numa época em que floresce uma filosofia mundial da qual o protecionismo teórico do Zizek, para usar Jacques Lacan, é o sintoma mais claro, filosofia cujas novas tarefas não apartam as teorias de seus efeitos políticos: a emergência de um novo movimento anticolonial é a prova mais concreta disso.

Permitam-me uma história: certa vez, numa palestra em que criticávamos a transplantação acrítica de teorias, um participante deu a entender que nós não podíamos criticar Dworkin. Entendemos perfeitamente e respondemos: se a razão é universal, ela passa por nós, então, desde que no rigor lógico, podemos ser um momento fecundo da razão: reiteramos nossas críticas a Dworkin.

Filósofos da América Latina, da Ásia e da África, uni-vos com os seus povos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

POR UMA RENOVAÇÃO MARXISTA DA TEORIA DA DEPENDÊNCIA

A Simon Bolívar

 “A posteridade de Marx ainda está muito longe de haver-se esgotado; é possível que na América Latina esteja apenas começando”

Enrique Dussel

“Escrevo para o povo ainda que ele não possa

ler a minha poesia com seus olhos rurais.

Virá o instante em que uma linha, a aragem

que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,

então o labrego levantará os olhos,

o mineiro sorrirá quebrando pedras,

o caldeireiro limpará a fronte,

o pescador verá melhor o brilho

dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,

o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio

do aroma do sabão, olhará meus poemas,

e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.

Neruda, Canto Geral

Podemos começar com uma afirmação peremptória: a teoria da dependência foi frutífera em analisar os efeitos da inserção da América Latina na economia mundial, e nisso continua atual e premente, mas, por não ter articulado a lógica dialética, faltou analisar as causas mais profunda que explicariam a situação de atraso econômico-social em que as formações periféricas, por injunções externas e internas, estão submersas.

André Gunder Frank, ao enfeixar os fatos centrais da dependência, leciona que: 1) a conquista coloca toda América Latina em situação de dependência econômica; 2) essa situação determina a posição, sempre subserviente, das classes dominantes, as quais ocupam o Estado e os demais instrumentos políticos para reproduzir essa dependência; 3) da estrutura de colônia e de classe resulta uma economia de exportação baseada na super-exploração; 4) a estrutura agrária e o modo de produção agrícola se transformam de acordo com as novas oportunidades e sempre submetidos às flutuações da demanda exterior.[1]

Já Ruy Mauro Marini, em Dialética da Dependência[2], mostra que a inserção da América Latina no comércio mundial se deve à injunção de figurar como fornecedor de produtos agrícolas, que são cruciais para o desenvolvimento das atividades industriais nos países do centro capitalista. Então, o que se chama de modo de produção agrícola é uma necessidade da economia mundial e não mera contingência. Não é novidade que a América Latina constitui o continente que mais fornece alimentos no mundo.

Marx, em O Capital, demonstra a correlação intrínseca entre produção industrial e a produção agrícola na dimensão espacial do sistema-mundo:

“A constante ‘transformação em excedentes’ dos trabalhadores dos países da grande indústria promove artificialmente rápida a emigração e a colonização de países estrangeiros, que se transformam em áreas de plantações das matérias-primas do país de origem, como, por exemplo, a Austrália tornou-se um local de produção de lã. Cria-se nova divisão internacional do trabalho, adequada às principais sedes da indústria mecanizada, que transformam parte do globo terrestre em campo de produção preferencialmente agrícola para outro campo preferencialmente industrial.”[3]

A inserção dependente na economia mundial, ao estar arrimada em trocas desiguais, portanto, constrange os países periféricos a explorar ainda mais o trabalhador como forma de compensar as perdas no plano internacional, constituindo uma estrutura de super-exploração. Urge compreender esse mecanismo a partir do conceito de mais-valia.

A compreensão, límpida, transparente e clara, do que é a mais-valia ocorre quando da distinção entre trabalho necessário e trabalho excedente. Desde Adam Smith até David Ricardo, o trabalho necessário é aquele que proporciona ao operário a contrapartida para manutenção de sua reprodução física. Não obstante, o trabalho coagulado na mercadoria sempre ultrapassa o necessário à manutenção do trabalhador. Leciona Marx:

‘’O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. A essa parte da jornada de trabalho chamo de tempo de trabalho excedente, e o trabalho despendido nela: mais-valia (surplus labour). Assim como, para a noção do valor em geral, é essencial concebê-lo como mero coágulo de tempo, como simples trabalho objetivado, é igualmente essencial para a noção de mais-valia concebê-la como mero coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho objetivado. Apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extorquido do produtor direto, do trabalhador, diferencia as formações sócio-econômicas, por exemplo a sociedade da escravidão da do trabalho necessário’’[4] (MARX, Karl. O Capital: vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-9).

A mais-valia se divide em: 1) mais-valia absoluta, vinculada à jornada de trabalho e 2) mais-valia relativa, adstrita às questões técnicas da produção. Portanto, é possível a obtenção de mais-trabalho pela ampliação da jornada de trabalho ou pelo desenvolvimento de técnicas que permitam produzir mais em menor tempo.  Em razão do baixo desenvolvimento científico das formações sociais periféricas (mais-valia relativa), a única forma com que a super-exploração pode se manifestar é no plano da mais-valia absoluta, isto é, na ampliação da jornada de trabalho, que se dá das mais variadas formas[5].

A tese, ainda que adstrita ao plano dos efeitos, é correta e se faz evidente quando, em momentos de crise econômica, verifica-se a pressão de organismos internacionais para os países periféricos empreenderem mudanças legislativas no campo do direito do trabalho e da previdência social, corroendo-se os direitos de natureza sócio-econômicos para extração de mais-valia.

A necessidade de, no plano interno, extrair mais-trabalho, ligado à jornada de trabalho, também se deve à pressão externa para que não haja desenvolvimento científico nos países periféricos. Por isso, os teóricos da teoria da dependência ora a vinculam à questão da super-exploração- mais valia absoluta- ora a correlacionam à questão do desenvolvimento científico- mais-valia relativa.

Devemos acrescentar que a sobre-exploração envolve, sobretudo, a subsunção de formas arcaicas de produção, como no caso do trabalho escravo e até a prática da servidão[6].

Seguindo a linha desenvolvida por Enrique Dussel, podemos retomar a assertiva de que a teoria da dependência precisa ser retomada a partir da leitura global de Marx, o que consiste em identificar as categorias centrais do pensamento marxiano e aplicá-las rigorosamente aos contextos das formas sociais do capital-periférico subdesenvolvido. E aqui devemos reconhecer o grande mérito de Kant ao afirmar que as categorias são concebidas para serem aplicadas à experiência. Conforme Hegel salientava, o único erro de Kant é que a dedução das categorias é sempre abstrata e desarticulada da experiência. Em Marx, temos uma grande novidade epistemológica: a relação em espiral entre a lógica e a experiência história. As categorias são hauridas da experiência histórica, alçadas ao plano teórico e, uma vez aplicadas à realidade, servem para esclarecê-la desde que sejam rigorosas e voltadas à descrição crítica. O diagnóstico da teoria da dependência, no que concerne aos efeitos, é irreprochável. Mas cabe auscultar as causas mais profundas na perspectiva das categorias desenvolvidas por Marx. Ou para usar Mao Tsé-Tung: é preciso compreender o fenômeno a partir da contradição principal e não apenas da contradição secundária.

É preciso distinguir o dinheiro como dinheiro e o dinheiro como capital. Para Marx, a fórmula geral do capital é: dinheiro-mercadoria-dinheiro. O capital não se identifica inicialmente com dinheiro. O capital é o circuito que se inicia com o dinheiro, passa pela mediação do intercâmbio de mercadorias, para se consumar como dinheiro novamente. Capital, portanto, é o dinheiro que gera, produz dinheiro. Por isso, não é ociosa a discussão de Marx sobre os fatores da mercadoria, a saber: o valor de uso e o valor de troca.

O valor de uso consiste na utilidade que a mercadoria proporciona e não se confunde com o valor de troca. A distinção entre valor de uso e valor de troca se revela fecunda para demonstrar a diferença de perspectiva em relação aos valores da mercadoria decorrente da diferença no polo da relação de troca comercial.

A mercadoria interessa ao capitalista não pela utilidade que pode proporcionar (valor de uso), mas pelo valor de troca que ostenta. Inclusive, a distinção é crucial para compreender que o lucro, ou melhor, a mais-valia vem da exploração do trabalhador e não do intercâmbio comercial. A extração de mais-valia se dá na exploração do trabalho vivo.

Como parte do trabalho objetivado na mercadoria não é pago, o processo de circulação, na forma originária do capitalismo, no qual a mercadoria interessa apenas como valor de troca, é de fundamental importância para a formação de capital porque permite consumar a exploração do trabalho não pago ínsito à mercadoria.

A grande mutação, já entrevista por Lenin, é que a produção de excedente, decorrente do processo de circulação do capital, enseja uma grande concentração de capital excedente que se autonomiza e cria as condições para a produção autorreferente de dinheiro e sua exportação dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos.  Leciona Lenin:

“O que caracteriza o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo atual, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital”[7]

Marx já pressentira essa autonomização quando afirma que a fórmula do capital a juros é dinheiro-dinheiro sem a necessidade da mediação do processo de circulação de mercadorias. O cerne do capitalismo atual, na dinâmica do sistema-mundo, portanto, não é mais a exportação de mercadorias, mas a exportação de capitais.

O fetichismo do dinheiro autorreferente tem efeitos epistemológicos, circundando de mistério fenômenos como a inflação que, desde as categorias marxistas, são explicáveis. A inflação nada mais é do que uma crise na produção e intercâmbio de mercadorias que é apresentada como crise monetária[8]. Aqui se vislumbra o fetichismo do dinheiro autorreferente produzindo um ruído para evitar a compreensão cabal de um fenômeno. O domínio de setores estratégicos permite, por exemplo, a produção artificial de inflação, produzindo abalos nas economias dependentes, atingindo-se, especialmente, os setores populares[9].

Nos países desenvolvidos, produziu-se um grande excedente de capital que, sob a palavra ‘terna’ investimento[10], é aplicado nos países periféricos, servindo de dínamo para opressão de povos inteiros por meio do apossamento dos seus territórios e de suas riquezas.

Nos estudos da acumulação de capital, Rosa Luxemburgo, apesar de incorrer numa certa teleologia histórica, entrevê o modo como os empréstimos dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos são instrumentos do imperialismo:

“As contradições da fase imperialista se manifestam mais claramente nas contradições do sistema de empréstimos internacionais. Esses empréstimos são indispensáveis à emancipação dos jovens Estados capitalistas ascendentes e, ao mesmo tempo, constituem o meio mais seguro para os velhos países capitalistas colocarem os novos sob sua tutela, de controlar suas finanças e de exercer sobre eles uma pressão em sua política externa, aduaneira e comercial.”[11]

A própria assertiva se debate numa contradição e precisa ser mais compreendida. Não há como compatibilizar os termos da questão. Ou o capital estrangeiro constitui um meio necessário de desenvolvimento para os países subdesenvolvidos ou, ao contrário, constitui a engrenagem sutil da dominação imperial.

A economia burguesa dominante criou o mito de que o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos depende de capital estrangeiro, quando, na verdade, acontece o contrário. O que impede o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos é propriamente a dominação pelo capital estrangeiro cuja manutenção depende da reprodução da dependência, entrando-se num círculo vicioso. O capital estrangeiro promove a dependência e só se mantém pela reprodução da dependência.

Por isso, a busca, constante e permanente, pela dominação do campo político que, ao ser desprovido de autonomia, cria as condições para a reprodução da dependência. Para dizer da forma simples com que se expressam certos próceres do imperialismo: um país é dominado pela quantidade de capital estrangeiro que é investido nele.

Nos termos da teoria da dependência, o desenvolvimento do subdesenvolvimento, para retomar o termo de André Gunder Frank, envolve sempre a necessidade, dentre tantos efeitos, de os países desenvolvidos controlarem o processo político nos países periféricos para, especialmente, manietar o desenvolvimento científico, preservar o analfabetismo para produzir uma superpopulação relativa mais suscetível de formas de explorações mais intensas [12], fetichizar todas as formas de organizações que podem colaborar com a produção de uma esfera pública crítica, subsumir formas arcaicas de produção, como o trabalho escravo e servidão.

Ruy Mauro Marini, no texto citado, postula que a dependência está intrincada com a impossibilidade de os países periféricos desenvolverem o próprio processo de circulação. A saída da dependência seria, pois, criar as condições para a produção de um processo autônomo de circulação. A tese, mais uma vez, é correta apenas no nível do aspecto da aparência, mas, no que concerne à essência do fenômeno da dependência, não é satisfatória.

Leon Trotsky afirmava que a função histórica do capitalismo é o desenvolvimento das forças produtivas. Se analisarmos a asserção dentro do sistema-mundo em que a questão espacial centro- periferia emerge, veremos que a asserção é válida apenas para os países desenvolvidos. Uma das condições para a reprodução da dependência é evitar, de todas as formas possíveis, que os países periféricos desenvolvam suas forças produtivas, o que permitiria a produção de excedente, ensejando o equacionamento e a superação da dívida pública e até uma alteração substancial na divisão internacional do trabalho e do capital[13]. A desindustrialização nos países periféricos é um projeto deliberado da dominação imperial. A inexistência de um processo próprio de circulação é, pois, efeito da dominação.

A questão da dependência, portanto, está vinculada à questão da conversão dos orçamentos dos Estados periféricos em garantia do capital financeiro nacional e internacional[14]. Sejamos claro: nas formações sociais periféricas em que toda a história do poder colonial está orientada à dispersão das massas e das classes sociais subalternizadas, a única forma possível de transformação social se dá pela organização política para a conquista do poder do Estado[15]. O mecanismo da dívida torna os Estados periféricos estruturas incapazes de empreender as políticas públicas necessárias para debelar a dependência. Nesse contexto, o mecanismo da dívida pública externa ou interna cumpre o papel decisivo na submissão de um país ao capital financeiro nacional e internacional, retirando qualquer autonomia política voltada ao questionamento da dívida pública interna e externa e dos seus efeitos, impedindo a superação da dependência. A manutenção da dívida pública representa o mecanismo central da reprodução da estrutura colonial da dependência econômica.

Se aplicarmos a ideia dialética da influência recíproca entre causa e efeito, podemos afirmar que, no plano internacional, a própria eminência adquirida- que permite aos países desenvolvidos exportar capital- é decorrência do mecanismo da dívida pública. Alçados pelo mecanismo da dívida pública à condição de países desenvolvidos, só permanecem na condição de eminência se mantiverem inquestionável o mecanismo da dívida pública e dos efeitos decorrentes desta, especialmente na questão orçamentária[16].

Hinkellamert, ao criticar a teoria do imperialismo que coloca o cerne da dominação na exportação de capitais, tangencia a questão da dívida pública externa sob o argumento de que nunca houve exportação de excedentes por parte dos países desenvolvidos:

 “A própria teoria do imperialismo, desde Hobson, Bucarin e Lenin, caiu na cilada de crer que os países do centro transferem excedentes para os países da colónia, que hoje chamamos de Terceiro Mundo. Jamais o fizeram e jamais farão. No período de maior dinâmica do investimento estrangeiro direto nestas regiões, entre 1870 e 1928, a Inglaterra teve um saldo negativo ininterrupto em sua balança comercial, o que significa que importou excedentes e financiou seus investimentos estrangeiros diretos gigantescos através da movimentação de poupanças internas dos países nos quais investiu.[17]

O que lhe faltou foi justamente perceber o modo como se dá confusão entre dívida pública- externa ou interna- e o capital financeiro. Afora isso, toda a análise desse mestre continua vigente e atual. Em O Capital, Marx compreendeu o fenômeno claramente, afirmando:

“A dívida pública converte-se numa das mais poderosas alavancas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de uma capacidade criadora, o transformando em capital sem ser necessário que seu dono se exponha aos riscos e aborrecimentos que são inseparáveis do investimento industrial e mesmo de atuar como usurário. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois os títulos da dívida pública continuam a funcionar em suas mãos como se fosse dinheiro. A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu os agentes financeiros que funcionam como intermediários entre o governo e a nação. As parcelas de sua emissão que são adquiridas pelos arrematantes de impostos, negociantes e fabricantes privados lhes proporcionam o serviço de um capital caído do céu. A dívida pública faz prosperar sociedades anônimas, isto é, o jogo da bolsa de valores e nossa moderna bancocracia”[18].

É interessante notar que Marx insere o tema da dívida pública no terreno da acumulação primitiva do capital, deixando clara a relação entre o domínio imperial, capital financeiro e o mecanismo da dívida pública. A acumulação primitiva do capitalismo consiste num fenômeno heteróclito que envolve a supressão da base fundiária dos camponeses e dos povos originários, legislações draconianas, pilhagem dos bens dos Estados etc. David Harvey, apesar de ter trazido contribuições inestimáveis no esclarecimento e no desdobramento do conceito, não inseriu a questão da dívida pública- externa e interna- como elemento central da acumulação primitiva.

A exportação de capital não tem fins filantrópicos, mas objetiva ao incremento da acumulação de capital, isto é, a autovalorização do capital pela produção de mais mais-valia. Poderíamos até designar esse fenômeno como mais-valia internacional porque se sustenta na exploração de países inteiros.

No direito civil, nos direitos das obrigações, existe um instituto denominado confusão em que as figuras do credor e devedor se enfeixam na mesma pessoa, constituindo uma forma de extinção da obrigação. O mecanismo da dívida pública produz essa confusão. Dessa forma, os Estados periféricos se convertem em garantes do capital financeiro nacional (dívida interna) e internacional (dívida externa)[19], suprimindo-se qualquer possibilidade real de desenvolvimento econômico, lançando na opressão da fome e do desemprego povos inteiros que, se adquirissem autonomia política, poderiam desenvolver suas forças produtivas, estimulando formas sustentáveis de desenvolvimento que, respeitando o metabolismo ser humano e natureza, engendrariam novas de ser, novos modos de produção.

Já Kant, no texto Pela Paz Perpétua, afirmava que a inexistência de qualquer mecanismo de dívida na resolução de querelas entre Estados, ainda que oriunda de guerra, e o respeito incondicional à autodeterminação dos povos são condições básicas para a paz entre os povos. É de uma atualidade gritante.

Em Princípios de Filosofia do Direito, Hegel afirma que um povo entra para história universal quando engendra novas formas de ser que se imprimem de forma duradoura no tempo-espaço. Se os povos da América Latina e o Caribe derem uma solução racional à espinhosa questão da dívida pública- interna e externa- podem se inserir na história universal, alterando a divisão internacional do trabalho em prol do desenvolvimento econômico capaz de proporcionar bem-estar universal, conferindo materialidade à ideia de Kant de hospitalidade incondicional, deixando o imperialismo apenas como uma chaga vergonhosa da história do sistema-mundo.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.


[1] FRANK, André Gunder. Lumpen-bourgeoisie et lumpen-développement. Paris: François Maspero, 1971, p.20.

[2]Texto inserto em “América Latina, dependencia y globalización. Fundamentos conceptuales Ruy Mauro Marini. Antología y presentación Carlos Eduardo Martins. Bogotá: Siglo del Hombre – CLACSO, 2008”

[3] MARX, Karl. O Capital. Vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 62. A estrutura permanece a mesma e provoca a luta por terras agricultáveis.

[4] MARX, Karl. O Capital: vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-9.

[5] Na reforma trabalhista brasileira, a supressão das horas in itinere, a redução do intervalo intrajornada e o trabalho intermitente constituíram formas de extração de mais-trabalho. Além disso, decisões negando o acúmulo do adicional de periculosidade e de insalubridade contrariando as normas da OIT constituem, também, forma de extração de mais-valia.

[6] Caio Prado Junior, em Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, fala de várias formas arcaicas de produção como a meação. Conforme salientava Louis Althusser, no mesmo país podem conviver, ao mesmo tempo, vários modos de produção. É preciso estudar como o capitalismo, mesmo tendo por característica o trabalho assalariado, subsume modos de produção arcaicos.

[7] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p.

[8] Fica evidente que são múltiplas as causas que podem gerar uma inflação como crise energética, indexação da economia, ou qualquer outro fator que afete a produção e o intercâmbio de mercadorias.

[9] Quando do golpe no Chile em 1973, Henry Kissinger dizia que era preciso fazer a economia gritar de dor.

[10] Investimento é capital, capital é dinheiro produzindo dinheiro, e dinheiro nada mais é que trabalho objetivado.

[11] LUXEMBURG, Rosa. L’accumulation du capital II. Paris: François Maspero, 1969, p. 89.

[12] Faltou à teoria da dependência, ao falar em super-exploração, relacioná-la à questão do trabalho qualificado como Marx já anunciava.

[13] Veja-se, por exemplo, o caso dos países do Leste Europeu que, sob o regime comunista, tornaram-se potências econômicas em apenas três décadas, mas que, no período de Guerra Fria, sofreram brutal desindustrialização.

[14] A ‘solução’ que determinados governos encontram para essa questão é a compressão orçamentária nos setores sociais e econômicos e no aumento da carga tributária que sufoca o setor produtivo. Evidente que são falsas soluções para o grave problema da dívida pública interna e externa. 

[15] O revolucionarismo abstrato, tão ao gosto da pequena-burguesia, costuma dirigir seus torpedos ao Estado, incorrendo no mais débil historicismo. O que caracteriza o pensamento dialético, dentre outras coisas, é o imperativo de historicizar o discurso. Historicizemos: quando Marx criticava o Estado criticava algo concreto: o brutal e repressivo Estado Prussiano. E tinha razão em fazê-lo. Havemos de concordar com David Harvey: a única estrutura de poder capaz de impor freios ao capital é o Estado. A repressão de todo movimento político de contradição antagônica na modernidade periférica tem a ver com a necessidade para o império de ter o monopólio do Estado com a finalidade de reproduzir a dependência.

[16] Isso fica claro quando se analisa o caso da Independência do Brasil 1882 em que se herdou uma dívida externa.

[17] HINKELAMMERT, Franz J. A dívida externa da América Latina: o automatismo da dívida. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.

[18] MARX, Karl. O Capital: vol. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 278. Destaques nossos.

[19] É preciso lembrar Mao Tsé-Tung quando fala da posição de classe. Qual a posição de classe dos economistas oficiais? Declino isso porque há muito tem surgido uma retórica de que a dívida externa, em alguns países, se converteu em dívida interna, o que, por si só, já é discutível e, mais ainda, não resolve nada porque o problema permanece o mesmo, mudando-se apenas os personagens. Na economia burguesa atual, impera a ideologia da não ideologia. Negar que um discurso é ideológico é uma ideologia. Se houvesse neutralidade axiológica porque o mesmo fenômeno em determinados lugares é inflação e, em outros, crise de abastecimento?