Arquivos da Seção: Da Ciência Jurídica à Jurisprudência

LIBERDADE, IGUALDADE, PROPRIEDADE E BENTHAM

A visão ‘teleológica’ da história da modernidade como evolução e das técnicas como avanços que trarão, por si só, benefícios comunitários são equívocos históricos. A narrativa de um progresso exponencial e a crença infundada de que as técnicas são neutras e, por sua natureza intrínseca, teriam um uso universal serviram para camuflar o fato, mesmo óbvio, mas entrevisto apenas por alguns filósofos, de que não há como apartar a história da técnica da história da economia e da história da política.

Marx, em Ideologia Alemã, faz uma associação entre o sistema ideológico e o mecanismo da câmara escura. Afirma:

“São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, mais os homens reais, produtores, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado das forças produtivas e das relações que lhes correspondem e compreendendo as formas mais largas que podem tomar. A consciência não pode ser outra coisa que o ser consciente e o ser do homem é o seu processo de vida real. E, se, em toda ideologia, os homens e suas relações se apresentam de cabeça para baixo como numa câmara escura, esse fenômeno decorre do processo da vida histórica, absolutamente como a reversão dos objetos sobre a retina decorre do processo de vida diretamente físico.” [1]

 Para além da ideia fecunda de que a ideologia, mesmo sendo uma fantasmagoria, não significa uma mera ilusão, pois, é uma fantasmagoria fruto das relações sociais, ancorada nas relações materiais, a relação entre o processo ideológico e o mecanismo da câmara escura não transborda do teor metafórico e permite vislumbrar a correlação intrínseca entre tecnologia e formas de dominação?

No cerne de O Capital, Marx coloca a fórmula central dessa modernidade capitalista: “Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”. Na medida em que os primeiros termos existem apenas na retórica, são anulados constantemente por estruturas de dominação total: a retórica da liberdade e da igualdade serve para camuflar as estruturas subjacentes de poder que buscam submeter as formações às injunções do poder econômico.

Não se pode esquecer a questão central de que um determinado modo de produção precisar se reproduzir a si mesmo. Numa carta a Kugelmann, em que faz observações fabulosas sobre a ciência econômica burguesa e sobre a teoria do valor, Marx deixa claro que uma formação social que não reproduz as condições da reprodução ao mesmo tempo em que produz pode perecer.[2]

Urge perguntar se a reprodução envolve o uso das tecnologias para fins de controle social? Uma formação social, tisnada de contradições, fadada a não enfrentar os conflitos que lhe são constitutivos, só se reproduz se constringir os espaços de liberdade. Ocorre que a repressão ostensiva se deslegitima facilmente. Dessa forma, as técnicas modernas, na medida em que proporcionam formas sutis de vigilância e controle social, ensejam formas de coerção que se tornam cada vez mais discretas e mais eficientes nos seus intentos.

Se Marx já antecipava que a lógica espacial e da vigilância do sistema fabril produzia a anexação da vida à operação do detalhe, mostrando que a divisão do trabalho, ao invés de gerar solidariedade como pensava Duhkheim, significava a vinculação do trabalho a uma operação parcial, retirando do trabalho caráter de arte, tornando o processo de trabalho apêndice do processo de valorização de capital, Foucault, nas sendas de Marx, identificou as formações disciplinares. O sistema fabril se esparge como paradigma por todo o corpo social através de instituições de produção da dócil-utilidade.

Em Vigiar e Punir, livro cujas tensões internas precisam ser lidas corretamente, Foucault vislumbra, no século XVII e XVIII, o surgimento de instituições que, por meio da distribuição espacial, enquadravam os corpos numa disciplina que funcionava como operador econômico, voltado a esquadrinhar os indivíduos, dobrando-os às injunções de produzir mais economicamente, diminuindo, concomitantemente, as forças políticas que pudesse desatar.  

A disciplina funciona como criadora de positividades, seja na forma de poder, seja na forma de saber: o indivíduo enquanto mônada produtiva surge das configurações dos dispositivos disciplinares. Mas existe um elemento presente no livro que até então passou desapercebido. Nos interstícios dessa obra de lucidez metálica, não se analisa apenas a disciplina-bloco que opera pelo confinamento, mas, sobretudo, a disciplina-mecanismo que engendra dispositivos funcionais que, pelo jogo do olhar, tornam o poder mais sutil, mais leve e mais eficaz. A análise do panóptico de Bentham mostra justamente as tensões da transição ou da convivência mútua entre a disciplina-bloco e a disciplina-mecanismo.

Na disciplina-mecanismo, pelo jogo do olhar e, acrescente-se, da escuta, produz-se uma forma de vigilância mais discreta, mais capilar e mais sutil, cuja materialidade se torna vaporosa em termos de origens e mais eficaz em termos de efeitos. Uma forma de poder que se materializa em seus efeitos, mas que dissipa os rastros que pudessem identificar a sua própria origem. Poder total dos efeitos, irresponsabilidade total da ação do poder. 

Foucault, numa clara remissão a Marx, registra que ‘’a máquina de ver é uma  câmara escura em que se espionam os indivíduos”[3]. Ótica e escuta total, destinadas a converter cada indivíduo, identificado como óbice aos projetos nefastos de dominação total, à margem de qualquer legalidade, um caso a ser observado, vigiado, submetido à logica do espectro total e até destruído fisicamente.

No centro da disciplina-mecanismo, a figura central é o exame enquanto mecanismo binocular de vigilância ininterrupta. O exame estabelece, segundo Foucault, uma economia da visibilidade no exercício do poder, faz da individualidade objeto do documentário da vigilância, cerca o indivíduo, de forma rarefeita e muita concreta, fazendo dele um caso de inspeção minuciosa e sem trégua das formas contemporâneas do panóptico.[4] É uma forma de poder que, atuando de forma invisível, constrange os indivíduos a uma visibilidade obrigatória para torna nula sua potência política ou de pensamento. Atualizando a fórmula de Marx: Liberdade, Igualdade, Capital Financeiro e Tecnologias subsumidas a intento de poder total é a insígnia de uma época de controle total.

Agambem, em várias passagens, afirma que, quando emergirem as singularidades que escapam à laminação do poder, virão os tanques de ferro. Já não se precisa de tanques de ferro, as novas técnicas de olhar e de escutar já chegam antes que as singularidades apareçam no horizonte político[5]. A palavra liberdade, mesmo massacrada, nunca teve uma atualidade tão gritante.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 50-51.

[2] MARX, Karl. Lettres à Kugelmann. Paris: Editions Sociales, 1930, p.  99-100, carta de julho de 1868. No texto Ideologia e Aparelhos Ideológicos, Althusser faz um uso conceitual das ideias contidas nessa carta e mostra que todo poder fusiona consenso ideológico e coerção. Podemos acrescentar que, na temática da reprodução, é preciso inserir o uso das técnicas que figuram como mecanismos de coerção mais sutis e mais eficientes que a repressão física visível.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis: Editora Vozes, 2009, p. 196.

[4]  FOUCAULT, Michel. Ob. Cit. Capítulo sobre o exame. Na obra Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020, fizemos uma análise de como o exame, agindo à margem da legalidade, chega às singularidades de forma capilar. Um poder tão sutil que opera à margem da lei. Heidegger afirma que a Terra é o aberto do qual não se pode afastar porque nele estamos imersos. Diante das técnicas modernas, a própria Terra se torna objeto do panóptico. Quem sabe estamos presenciando a necessidade de um direito do espaço cósmico e interplanetário? Nesse contexto, como saliento na obra citada, a tese do espaço jurídico vazio deve ceder às injunções da comunidade humana universal.

[5] Toda técnica é desdobramento de um sentido.

KANT E AS ANALOGIAS DAS EXPERIÊNCIAS

A Alain Badiou

“Nenhum mundo é tal que sua potencia transcendental pode desrealizar por completo a ontologia do múltiplo”

 Alain Badiou, Lógicas de los mundo

O que é permite a experiência? O que é a experiência? Na filosofia alemã moderna, o conceito de experiência, de Hegel a Adorno, tem uma preeminência que precisa ser cuidadosamente desvelada. O conceito ganha vigência e assoma como essencial na Crítica da Razão Pura de Kant. Mais do que um livro sobre os limites, as condições e as possibilidades do conhecimento, podemos afirmar que é um livro sobre quais são as condições da experiência. A busca sobre as condições do conhecimento é uma função da necessidade de compreender o sentido da experiência.  

Kant confessa que foi Hume que lhe tirou do sono dogmático[1]. Qual o sentido da afirmação? É preciso remontar à questão que Hume planteia e verificar a forma com que Kant responde à questão. Hume questiona o princípio da causalidade pelo qual um fato A está, necessária e universalmente, atrelado ao fato B. Para Hume, não há nada que, do ponto de vista da lógica, aponte para verificação lógica de que dois eventos estejam vinculados do ponto de vista da necessidade. É cediço que, na filosofia, há necessidade quando um fato é sempre da mesma forma, mantendo-se constante e uniforme: a necessidade trata das coisas que sempre são como são.  No evolver da filosofia, necessário significa aquilo que obedece às leis naturais.

Hume rechaça a possibilidade de os conhecimentos encontrarem uma justificação na percepção sensível de tal forma que o liame entre os fenômenos é mais fruto do hábito do que da lógica: uma necessidade subjetiva fundada no hábito aparenta emanar de uma necessidade objetiva arrimada no conhecimento. Afirma:

“Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta em direção da outra, mesmo que se suponho que o movimento na segunda me veja acidentalmente sugerido como resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar dessa causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível com o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.” [2]

Seguindo Quentin Meillassoux[3], podemos afirmar que Hume não inquire porque as leis são necessárias, mas de onde vem a crença na necessidade das leis. A causalidade não seria um princípio ínsito à natureza, mas uma crença fundada no hábito: nossas inferências sobre a experiência decorrem mais do costume do que do raciocínio. Trata-se de um costume articulado na repetição da temporalidade. Afirma Hume: “Todas nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado”

Aqui, vamos arriscar a hipótese de que a solução do grave problema de Hume passa pela compreensão da filosofia transcendental de Kant[4] e o papel das analogias da experiência. É preciso remarcar que transcendental não se confunde com transcendente. O conhecimento é transcendental quando versa não sobre os objetos, mas sobre o modo de conhecê-los. Em sendo a matéria do conhecimento heteróclita e heterogênea, apenas a cognição, através dos conceitos e das categorias, permite conferir uma forma à rapsódia de sensações, isto é, um lugar de ligação como totalidade. A forma, então, é a condição sob a qual um objeto pode ser representado conceitualmente.

É nesse contexto que é preciso insertar a problemática das analogias das experiências. Nos textos denominados pré-críticos, cuja importância deve ser exalçada, Kant define a experiência como uma forma de conhecimento que exige o entendimento. Já se entrevê não uma dicotomia, mas uma conjunção entre o sensível e o inteligível.  Não há experiência que não esteja emoldura por categorias de conhecimento.

Quando da dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento, Kant vinca a ideia central do esquematismo, que confere a possibilidade da experiência e que doa realidade objetiva à nossa cognição. Entende-se por subsunção a colocação de um objeto sob um conceito, devendo haver uma homogeneidade – símiles correspondentes- entre o conceito e o objeto.

O esquema, então, apresenta-se como a condição formal da sensibilidade, a condição pela qual um objeto pode ser representado e apresentado. No dizer de Kant: “O esquema não é, pois, propriamente senão o fenômeno ou o conceito sensível enquanto concorda com a categoria”[5]

Os esquemas analógicos tem um uso regulador na medida em que a realidade pode apresentar novos aspectos não subsumíveis e que exigem uma retificação do conhecimento. A analogia, dentro dessa lógica, tem uma importância crucial que passou desapercebida. Se Kant responde ao dilema de Hume salvaguardando um espaço de pensamento transcendental que, por ser apriorístico, é capaz de resistir ao ceticismo conforme o qual a experiência é flutuante e heteróclita e, portanto, insuscetível de teorização e conforme o qual a própria causalidade é uma crença fundada no hábito e não na lógica, ao articular a analogia e experiência, por isso mesmo, projeta a possibilidade de a ciência se enriquecer com a experiência, assimilando novos aspectos da realidade, num processo infinito do conhecimento, não estaria assim escapando da imagem tradicional de que é um pensador que emperra na indecidibilidade entre o inteligível e o sensível?

Ao tratar da síntese, busca demonstrar que a ligação da diversidade dos elementos dos fenômenos não pode emanar dos sentidos e, pois, da intuição sensível, mas somente dos conceitos e das categorias a priori: as categorias se apresentam como conceitos que prescrevem a priori as leis dos fenômenos. Já as analogias, mesmo não tendo um sentido apriorístico, inserem-se no passe entre a categoria e a experiência. Se sobrelevarmos o papel da analogia e mesmo das categorias, Kant não é mais o filósofo do abismo entre o conhecimento categorial e a realidade sensível como sói divulgar-se, mas o que, de forma inaugural, pensou o passe entre o sensível e o inteligível.

Nesse ponto, tanto Hegel quanto Marx, ao conferirem mais movimento às premissas do pensamento kantiano, são herdeiros diretos de Kant[6]. Em Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, Hegel assinala: “Em qualquer proposição de conteúdo inteiramente sensível, como ‘essa folha é verde’, já estão inseridas categorias: ser, singularidade’’[7].

É no centro vivo da analogia que Kant resolve as contradições entre o inteligível e o sensível, entre o transcendental e o empírico e aqui se encontra a gênese moderna do pensamento dialético. Kant diferencia o sentido matemático e o sentido filosófico da analogia:

“Em filosofia, as analogias significam algo diferente do que elas representam em matemática. Na matemática, são fórmulas que exprimem a igualdade de duas relações de grandeza, e elas são sempre constitutivas de forma que, quando três membros da proporção são sempre constitutivos, o quarto é também dado por ele mesmo, isto é, pode ser construído. Na filosofia, ao contrário, a analogia é a igualdade de duas relações, não de quantidade, mas de qualidade: três membros sendo dados, eu não posso conhecer e dar a priori senão a relação com um quarto termo, mas não o quarto termo ele mesmo; eu tenho somente uma regra para procurar na experiência e um signo para lhe descobrir. Uma analogia da experiência não é senão uma regra segundo a qual a unidade da experiência (não a percepção ela mesma, como intuição empírica em geral), deve resultar das percepções, e ela se aplica aos objetos (aos fenômenos), não como princípio constitutivo, mais simplesmente como princípio regulador”[8]

A analogia da experiência é uma regra segundo a qual a unidade aberta da experiência deve resultar da unidade sintética das percepções e, ao se aplicar aos objetos não como princípio constitutivo, mas como princípio regulador, converte o conhecimento num processo aberto às novidades e ao cotejo fático numa alteridade provida de motivação comunitária sem se ensimesmar num sistema fechado e refratário ao uso público da razão.

Partindo da premissa de que os modos do tempo são a permanência, a sucessão e a simultaneidade -cuja fonte é indisfarçavelmente a física de Newton e guardam relação com a noção de temporalidade e de espacialidade que lhe é subjacente- Kant assinala três analogias da experiência, a saber: a) a substância persiste no meio das mudanças dos fenômenos (permanência); b) todas as mudanças sucedem conforme a lei da ligação dos efeitos e das causas (sucessão); c) todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas como simultâneas no espaço, estão numa ação recíproca (ação recíproca ou comunidade).[9]

Percebe-se que a analogia da causalidade permite superar o dilema de Hume, revelando-se que a experiência não é aleatória, alheia e estranha à teorização[10]. Se Kant reconhece nos conceitos as condições a priori da possibilidade da experiência, nas analogias da experiência –especialmente a da causalidade- verifica-se a conjunção entre o transcendental e o empírico numa relação criativa em que, ao mesmo tempo, temos o rigor de uma regra bem aplicada e a possibilidade de, diante de novas circunstâncias, fazer o conhecimento avançar.

Os sistemas teóricos analógicos, então, são motivados e, por isso mesmo, o itinerário percorrido não altera o ponto de partida; ao contrário, realiza-o de forma cabal de modo que, a cada circunstância nova e desconhecida, os esquemas conceituais se enriquecem com as particularidades com que depara. O modo com que os esquemas teóricos indexicam o real é analógico. Por meio da analogia, para usar a terminologia de Badiou, podemos nos acercar do vínculo entre o ser-múltiplo e os esquemas transcendentais de sua aparição.[11] Sendo a experiência uma síntese das percepções, um aspecto da realidade só pode ser identificado enquanto se relacionar com um símile- que o marca- no indexador transcendental: a realidade é a forma com que a estruturamos por meios dos esquemas transcendentais.  

As analogias da experiência, como tratam da relação da busca de um não dado a partir de um dado, apresentam um uso regulador, permitem ao conhecimento avançar de forma a abarcar aspectos novos: unifica, de forma frutuosa, rigor e invenção. A variação das imagens dá ensejo à identificação das continuidades e das descontinuidades entre os fenômenos, articulando-se os nexos causais entre os fatos.

O não conhecimento de aspectos ocultos do real não é prova do malogro da ciência, mas afirmação de sua imperatividade. À ciência cabe mesmo investigar o que está oculto. Diante disso, é possível reconfigurar, à luz da dialética, a ideia de necessidade e de contingência. Necessário é o que podemos relacionar às leis gerais; contingente o que, não podendo ainda ser remontado às leis, permanece oculto e desconhecido. O que chamamos contingência é apenas o que remanesce incompreendido em suas causas. A causalidade analógica, no contexto, cumpre papel decisivo porque enseja não só o cálculo de um quarto termo desconhecido, mas a descoberta de uma relação existente num nível profundo entre os vários termos, mas ainda oculta. É, à luz da indexicação transcendental, que a relação entre os termos é, pela primeira vez, apresentada em seus nexos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] KANT, Emmanuel. Prolégomênes a toute métapsysique future qui pourra se présenter comme science. Paris: Vrin, 1941, p.13.

[2] HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Editora Nova Cultura, p. 51.

[3] MEILLASSOUX, Quentin. Después de la Finitud: Ensayos sobre la necesidad de la contingência. Buenos Aires: Caja Negra, 2015. A ontologia da finitude redunda numa filosofia do malogro e da resignação. Merece contemplação a obra de Sartre por ter sido a única que, adstrita às contradições da finitude, tenha dela extraído consequências libertadoras. Lendo a obra retroativamente, a palavra final não está na melancólica conclusão de O Ser e O Nada em que o ser humano, mergulhado na contradição de ser para si inconcluso e buscar realizar-se enquanto ser em si completo, não passa de uma paixão inútil; mas no final do livro A Náusea em que chega à conclusão de que a arte sobrevive ao artista na eternidade e na duração. Dentre outras inestimáveis contribuições do livro ‘’O Ser e O Evento’’, de Alain  Badiou, está a de ter desarticulado a ontologia da sanha da finitude, devolvendo, com todas as consequências decorrentes, ao infinito a posição central na filosofia e, também, na ciência. A ciência, com seus functores, eixos e coordenadas, tem dificuldade de lidar com o infinito. É no Oriente, especialmente na China, onde a relação entre ciência e infinito tem as concreções mais fecundas, desde que subsumidas para o comum. O trem chinês e os computadores quânticos são a prova viva dessa relação.

[4] Existem três imagens do pensamento: o empirismo, o transcendentalismo e o especulativo. Em Hegel, a tendência especulativa consegue reunir de forma inovadora o empirismo e o transcendentalismo. sobre o especulativo  em Hegel ver o genial livro El Porvenir de Hegel, da filósofa Catherine Malabou.

[5] KANT, Emmanuel. Prolégomênes a toute métapsysique future qui pourra se présenter comme science. Paris: Vrin, 1941, p.13.

[6]Não se compreende a afirmação de Marx de que o concreto é a síntese de múltiplas determinações sem ter lido, linha a linha, a Crítica da Razão Pura.

[7] HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). São Paulo: Loyola, 1995, p.42.

[8] KANT, Emmanuel. Critique de raison pure. Paris: Flammarion, 1976, p.218.

[9] Diante das novas descobertas da física quântica, podemos arriscar a hipótese de que as analogias da experiência em Kant podem ser renovadas sem perder a dimensão rica que ora ostentam nos seus escritos.

[10] Sobre a relação entre as crises de paradigmas científicos e as crises do modo de produção capitalista bem como a necessidade de rechaçar o caráter aleatório dos fenômenos para reafirmar a necessidade de compreendê-los cientificamente, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020. Pelas injunções do modo de produção capitalista, muitos fenômenos são lançados na irracionalidade para que não sejam enfrentados. Existe um obscurantismo científico inerente ao capitalismo que precisa ser revelado e criticado.

[11] BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: El ser y acontecimento, 2. Obra-prima do pensamento, de rigor lógico robusto. Sobre a questão levantada aqui, ver o Livro III, Grand Lógica, 2, El objeto.

O PESO DO SÉCULO

A ZHOU ENLAI

Diáfana presença no ar de chumbo

Mais sutil do que vento

Hidráulico, sabe a tempestade

Sabe dos campos minados onde se emaranham passado e porvir

Das longas marchas onde o possível e o fel se intricam

Pudera eu ver-te, camarada

Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;

Nos teus ombros de leveza

Pesa a dor do século  

aprendi que, no mais emaranhado dos cafarnauns, tua presença diáfana trouxe

a cã calma, a tez da aurora, o júbilo dos povos,

Pudera eu ver-te, camarada

Pudera eu, com meu alforje de pérolas e canções, homenagear-te;

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

A ANALOGIA CONTRA O FANTASMA DO INDECIDÍVEL

Quando, no ápice da Guerra Fria, um diplomata norte-americano afirmou que era preciso pensar uma estratégia para os tempos de paz, na verdade, estava deixando claro que a distinção entre paz e guerra se desvanecia. Nesse momento, estabeleceu-se a lógica da guerra indireta voltada à desestabilização das democracias nos países estrategicamente relevantes por meio do estímulo a divisões internas, inviabilizando a construção de um projeto unitário, desativando-se o processo político, entregue a políticos capazes de reativar a colonialidade do poder e subordinar os interesses nacionais às injunções do imperialismo. Dentro dessa lógica, a colonização do sentido comum do direito cumpriu um papel decisivo, tendo por mecanismo central a apropriação privada da linguagem e a normatização apócrifa dos fatos que esgarçam a legalidade e a tipicidade jurídica, dando azo a perseguições dos que forem eleitos como inimigos.

Instauram-se políticas de inimizades, direcionadas a líderes populares e anti-imperialistas, operando-se a suspensão colonial do direito. Por meio da apropriação privada da linguagem fomenta-se o fantasma do indecidível, mergulhando a cidadania na mais obscura incerteza, preordenando-se as estruturas de poder para interesses terríficos de dominação. A indefinição do código lícito-ilícito permite lançar formações sociais numa lógica do espectro que serve para suprimir a potência política pelo medo e, o mais grave, por meio de uma aparência de legitimidade jurídica perseguir aqueles identificados como capazes de abalar os interesses do imperialismo. Ou seja, qualquer pessoa pode perder, por meio de mecanismos sutis de apropriação privada dos sentidos, o estatuto de cidadão, tornando-se, para usar Agambem, vidas expostas a toda sorte de violação estatal.

Existe uma concepção eurocêntrica para a qual o direito é apenas um instrumento de opressão classista e que nada mais é que a vontade do mais forte. Tais teorias ignoram completamente a história, especialmente dos países periféricos, pois não haveria apropriação colonial dos territórios e das riquezas desses países sem a teoria do espaço jurídico vazio. Portanto, defender que o direito é sempre opressão significa legitimar as formas de saques imperialistas mesmo que sob a aparência de criticidade.

Na Europa, em que o sistema jurídico funciona como limitação do exercício do poder até se pode dar o luxo de criticar a igualdade formal, mas, na modernidade periférica, em que sempre imperou formas de poder abusivas e violentas, defender a legalidade é tarefa importante, mas não a única nem a decisiva. Na verdade, uma perspectiva genuinamente dialética, não descola o aspecto formal da legalidade do aspecto substancial. Uma coisa é criticar os limites da legalidade formal, outra coisa é defender sua suspensão, desprotegendo-se, sobretudo, os pobres – os que são parte de parte alguma, na linguagem de Rancière- e os politicamente insubmissos.

 Em Hegel, a dialética formal/substancial sempre esteve mais desenvolvida do que nas ambiguidades do marxismo vulgar em relação à legalidade. Lenin, em reiteradas passagens, estabeleceu que umas tarefas do proletariado é consumar, no sentido de levar a plenitude, todas as tendências positivas da democracia burguesa. Defender a legalidade sem qualquer laivo de ingenuidade é tarefa política fundamental.

As amargas experiências, na história recente da América Latina, demonstram que a suspensão colonial do direito é mobilizada para perseguir líderes políticos populares e intelectuais orgânicos capazes de adensar, à maneira de significantes mestres para usar Lacan, as aspirações mais genuínas de um povo num projeto político soberano e independente, voltado a resolver as contradições lancinantes das formações sociais periféricas.

O mecanismo sutil da corrosão da legalidade é a apropriação privada da linguagem que permite o esgarçamento do binômio lícito-ilícito, inserindo condutas atípicas e legais sob a égide da ilegalidade mediante a normatização apócrifa dos fatos. A hermenêutica jurídica analógica, por meio de um largo suporte semiológico, permitiu identificar o fenômeno e estabelecer, por meio da compreensão dos três níveis de interpretação (textual, intertextual e histórico), critérios de decidibilidade racionais que permitem, mediante o uso público da razão, compreender quando a interpretação se insere na moldura analógica e quando dela se desgarra de forma que o intérprete alheia-se da comunidade linguística, manipulando a produção dos signos para alterar, quase de forma imperceptível e com aparência retórica de legitimidade, o âmbito de validade das normas, alcançando situações que, se obedecido rigorosamente o método, estariam forma do espectro normativo.

A hermenêutica jurídica analógica não nega o caráter criativo que emoldura todo ato interpretativo, mas, partindo da ideia consolidada de que o texto é um campo limitado de ações possíveis, permite vislumbrar a continuidade entre texto e interpretação numa espiral criativa em que o sentido comunitário da linguagem e da comunidade política é preservado e controlado pelo uso público da razão.

 Todo intérprete que se alheia da comunidade linguística também, de forma imediata, se afasta da comunidade política sob a pretensão de que pode, por sua vontade irracional, instaurar o direito da forma que lhe convém. Por isso, se pode dizer que nunca houve solipsismo. Se o intérprete acha que detém de forma imediata, sem qualquer trabalho teórico-interpretativo, a verdade de um texto é sinal de que a comunidade política se alienou ao permitir uma produção de sentido alienada da comunidade de comunicação. Por isso, o que se chama solipsismo já é um fenômeno coletivo. Na verdade, a ênfase no termo, além de desconsiderar toda uma tradição filosófica para a qual solipsismo é sinônimo de intersubjetividade, de Wittengeinst a Merleau-Ponty, serve para ocultar o fato de que a normalização do arbítrio interpretativo é um fenômeno político cujas raízes devem ser procuradas na dinâmica da geopolítica.

A dominação imperial de espectro total só funciona se se lançar as formações sociais na assombração do indecídível. Emmanuel Levinas fala do desastre, remontando à raiz etimológica do termo: a ausência de um astro que oriente. A vida fica presa a um tempo sem tempo: o tempo infernal em que tudo perdura nos mesmos impasses e nas mesmas impossibilidades. O tempo como impossibilidade, a vida como possibilidade da impossibilidade, perdida num tempo eternamente suspenso da indefinição. Nesse sentido, os livros de Kafka continuam de atualidade gritante ao demonstrar como funciona a lógica do espectro do indecidível: as vidas dos personagens de Kafka se encontram num tempo suspenso no indecidível.

Uma formação social, quando mergulha no indecidível, perde os eixos da ação política e social, é dominada pela lógica do espectro em que os cidadãos são convertidos em potenciais vidas nuas, isto é, podem ser colhidos arbitrariamente nas malhas de um sistema jurídico que já não funciona conforme o binômio lícito-ilícito. A assombração do indecidível alimenta o medo, coarcta a possibilidade genuína da emergência democrática, cria o ensejo de perseguir qualquer pessoa sob a aparência de legitimidade jurídica, produz a sombra de que, a qualquer tempo, qualquer um pode ser privado da cidadania e das condições básicas da vida cotidiana.

Defender a moldura analógica é tarefa primeva para restabelecer a produção objetiva dos sentidos, garantindo-se a base de direitos humanos necessária para que a refrega política aconteça sem descambar para a malsinada lógica do amigo-inimigo. Na analogia, pode-se palmilhar um caminho em que a produção dos sentidos é compartilhada pela comunidade dos intérpretes e suscetível de verificação comunitária. Enfim, a comunidade se reapropria das condições coletivas de produção de sentido e afugenta a alienação linguística que permite o indecidível.[1]

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Sobre todas essas questões ver: As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.

Tua Vigência

Vulneram-me os teus cabelos alongando-se arbóreos

Mulher vinda das seivas estelares,

retraças a felicidade do universo

Quero as ervas que instilam teu corpo

O que no campo abraça as invenções de um tempo urdido na candura

Na viagem, o orvalho inicia a corola:

O milagre em suas sementes de luz acolhe as sereias do teu olhar

Vindima e vime ramificam a tua existência

Finas malhas, folhas virentes como vozes

Candeias e candelabros vivendo destino amável

no largo em que cresce teu nome

Seria o próprio périplo beirando o verdor?

A preparação da chuva de novos seres?

Meu rebento abisma-se em tua nascente

Quando os sinos estrugem a música dos vitrais

A claridade que me cria e nutre vem de ti

De tuas florestas erguidas em pleno mel

Como um lugar terno cheio de virações e sépalas

Intuo e abeiro o mês invadido pelos matizes do Ipê

Eu te encontro na cidade possuída pelas árvores

E sei das águas a espelhar mitologias felizes

Posso contar-te dos milagres em que me refaço

Da manhã, da criança, das orquídeas e rizomas

Levanto-me: sou o canto que a terra sonha

Vislumbro a amazônia, a festa de rios que a tua vigência proclama

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento

ZIZEK E A MELANCOLIA EUROCÊNTRICA

“Quem está enredado em particularidades só vê particularidades”(Hegel).

Em artigo recente, publicado no Le Monde, Slavoz Zizek volta a defender o legado ocidental da Europa afirmando que os pontos altos dos iluministas continuam centrais para o mundo. Apesar de não dizer o que entende pelo signo Europa, é importante destacar que o texto não coloca a questão no ponto em que pode se apresentar adequada e justa. E, adequada e justa, vai no sentido que Lenin estabelecia: de demarcar um problema onde ele pode ser corretamente abordado.

Não há problema algum em reconhecer o legado filosófico da Europa, cuja negação seria de um obscurantismo absurdo, mas é necessário entender que a universalidade postulada pela Europa sempre se cingiu, nas práticas correntes, às investidas imperialistas e que, sob a veste de um humanismo excludente, desencadeou políticas de inimizades, espoliando povos inteiros de seus territórios e de sua autodeterminação.

Lembro Foucault – que soube exercitar o difícil exercício da tradução e da alteridade radical engajando-se em lutas anticoloniais como na defesa da Revolução Iraniana- quando dizia que as Luzes do Iluminismo também criaram as prisões e as instituições de sequestros, as quais tiveram como laboratórios os países submetidos, com muita violência, à apropriação colonial.

Se colocarmos a questão na lógica do sistema-mundo, o conjunto de valores europeu resulta frágil e antinômico porque, como salientava Sartre, num prefácio à obra Os Condenados da Terra de Franz Fanon, tece loas abstratas à universalidade, mas trata os outros povos como particularidades a serem exploradas. Esta patente contradição, essa chaga aberta, é diariamente vista e não dá para destacar o legado da prática que desencadeia.

O caso de Hegel é interessante e é fecundo para desobstruir a questão da unilateralidade eurocêntrica. Se, em algumas passagens, Hegel afirma uma espécie de teleologia em que o espírito desde os povos antigos culmina na Europa, no cerne vivo da fenomenologia do espírito, ao analisar a dialética do senhor e do escravo, Hegel afirma categoricamente que o senhor, por estar preso às particularidades, crispado na defesa renhida de seus próprios interesses, é incapaz de adotar uma postura mais abrangente, e que o escravo,  na medida em que está despojado dos atributos da humanidade, constitui a verdadeira consciência essencial e o único a poder consagrar, desde a ética da coragem, uma perspectiva verdadeiramente universal. Eis uma verdade que lança Hegel para além do eurocentrismo e que pode ser imediatamente reinvindicada pelos povos insurgentes contra o colonialismo. Seguindo essa lógica, Marx e Engels, em A Sagrada Família, afirmam que o proletário se perde na alienação, mas, ao mesmo tempo, adquire a consciência teórica dessa perda e, que, por estar privado da humanidade, o proletário é a classe capaz de adotar o ponto de vista universal concreto e verdadeiramente humanista.

Tem razão Enrique Dussel quando afirma que estamos numa época em que floresce uma filosofia mundial da qual o protecionismo teórico do Zizek, para usar Jacques Lacan, é o sintoma mais claro, filosofia cujas novas tarefas não apartam as teorias de seus efeitos políticos: a emergência de um novo movimento anticolonial é a prova mais concreta disso.

Permitam-me uma história: certa vez, numa palestra em que criticávamos a transplantação acrítica de teorias, um participante deu a entender que nós não podíamos criticar Dworkin. Entendemos perfeitamente e respondemos: se a razão é universal, ela passa por nós, então, desde que no rigor lógico, podemos ser um momento fecundo da razão: reiteramos nossas críticas a Dworkin.

Filósofos da América Latina, da Ásia e da África, uni-vos com os seus povos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

POR UMA RENOVAÇÃO MARXISTA DA TEORIA DA DEPENDÊNCIA

A Simon Bolívar

 “A posteridade de Marx ainda está muito longe de haver-se esgotado; é possível que na América Latina esteja apenas começando”

Enrique Dussel

“Escrevo para o povo ainda que ele não possa

ler a minha poesia com seus olhos rurais.

Virá o instante em que uma linha, a aragem

que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,

então o labrego levantará os olhos,

o mineiro sorrirá quebrando pedras,

o caldeireiro limpará a fronte,

o pescador verá melhor o brilho

dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,

o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio

do aroma do sabão, olhará meus poemas,

e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.

Neruda, Canto Geral

Podemos começar com uma afirmação peremptória: a teoria da dependência foi frutífera em analisar os efeitos da inserção da América Latina na economia mundial, e nisso continua atual e premente, mas, por não ter articulado a lógica dialética, faltou analisar as causas mais profunda que explicariam a situação de atraso econômico-social em que as formações periféricas, por injunções externas e internas, estão submersas.

André Gunder Frank, ao enfeixar os fatos centrais da dependência, leciona que: 1) a conquista coloca toda América Latina em situação de dependência econômica; 2) essa situação determina a posição, sempre subserviente, das classes dominantes, as quais ocupam o Estado e os demais instrumentos políticos para reproduzir essa dependência; 3) da estrutura de colônia e de classe resulta uma economia de exportação baseada na super-exploração; 4) a estrutura agrária e o modo de produção agrícola se transformam de acordo com as novas oportunidades e sempre submetidos às flutuações da demanda exterior.[1]

Já Ruy Mauro Marini, em Dialética da Dependência[2], mostra que a inserção da América Latina no comércio mundial se deve à injunção de figurar como fornecedor de produtos agrícolas, que são cruciais para o desenvolvimento das atividades industriais nos países do centro capitalista. Então, o que se chama de modo de produção agrícola é uma necessidade da economia mundial e não mera contingência. Não é novidade que a América Latina constitui o continente que mais fornece alimentos no mundo.

Marx, em O Capital, demonstra a correlação intrínseca entre produção industrial e a produção agrícola na dimensão espacial do sistema-mundo:

“A constante ‘transformação em excedentes’ dos trabalhadores dos países da grande indústria promove artificialmente rápida a emigração e a colonização de países estrangeiros, que se transformam em áreas de plantações das matérias-primas do país de origem, como, por exemplo, a Austrália tornou-se um local de produção de lã. Cria-se nova divisão internacional do trabalho, adequada às principais sedes da indústria mecanizada, que transformam parte do globo terrestre em campo de produção preferencialmente agrícola para outro campo preferencialmente industrial.”[3]

A inserção dependente na economia mundial, ao estar arrimada em trocas desiguais, portanto, constrange os países periféricos a explorar ainda mais o trabalhador como forma de compensar as perdas no plano internacional, constituindo uma estrutura de super-exploração. Urge compreender esse mecanismo a partir do conceito de mais-valia.

A compreensão, límpida, transparente e clara, do que é a mais-valia ocorre quando da distinção entre trabalho necessário e trabalho excedente. Desde Adam Smith até David Ricardo, o trabalho necessário é aquele que proporciona ao operário a contrapartida para manutenção de sua reprodução física. Não obstante, o trabalho coagulado na mercadoria sempre ultrapassa o necessário à manutenção do trabalhador. Leciona Marx:

‘’O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. A essa parte da jornada de trabalho chamo de tempo de trabalho excedente, e o trabalho despendido nela: mais-valia (surplus labour). Assim como, para a noção do valor em geral, é essencial concebê-lo como mero coágulo de tempo, como simples trabalho objetivado, é igualmente essencial para a noção de mais-valia concebê-la como mero coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho objetivado. Apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extorquido do produtor direto, do trabalhador, diferencia as formações sócio-econômicas, por exemplo a sociedade da escravidão da do trabalho necessário’’[4] (MARX, Karl. O Capital: vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-9).

A mais-valia se divide em: 1) mais-valia absoluta, vinculada à jornada de trabalho e 2) mais-valia relativa, adstrita às questões técnicas da produção. Portanto, é possível a obtenção de mais-trabalho pela ampliação da jornada de trabalho ou pelo desenvolvimento de técnicas que permitam produzir mais em menor tempo.  Em razão do baixo desenvolvimento científico das formações sociais periféricas (mais-valia relativa), a única forma com que a super-exploração pode se manifestar é no plano da mais-valia absoluta, isto é, na ampliação da jornada de trabalho, que se dá das mais variadas formas[5].

A tese, ainda que adstrita ao plano dos efeitos, é correta e se faz evidente quando, em momentos de crise econômica, verifica-se a pressão de organismos internacionais para os países periféricos empreenderem mudanças legislativas no campo do direito do trabalho e da previdência social, corroendo-se os direitos de natureza sócio-econômicos para extração de mais-valia.

A necessidade de, no plano interno, extrair mais-trabalho, ligado à jornada de trabalho, também se deve à pressão externa para que não haja desenvolvimento científico nos países periféricos. Por isso, os teóricos da teoria da dependência ora a vinculam à questão da super-exploração- mais valia absoluta- ora a correlacionam à questão do desenvolvimento científico- mais-valia relativa.

Devemos acrescentar que a sobre-exploração envolve, sobretudo, a subsunção de formas arcaicas de produção, como no caso do trabalho escravo e até a prática da servidão[6].

Seguindo a linha desenvolvida por Enrique Dussel, podemos retomar a assertiva de que a teoria da dependência precisa ser retomada a partir da leitura global de Marx, o que consiste em identificar as categorias centrais do pensamento marxiano e aplicá-las rigorosamente aos contextos das formas sociais do capital-periférico subdesenvolvido. E aqui devemos reconhecer o grande mérito de Kant ao afirmar que as categorias são concebidas para serem aplicadas à experiência. Conforme Hegel salientava, o único erro de Kant é que a dedução das categorias é sempre abstrata e desarticulada da experiência. Em Marx, temos uma grande novidade epistemológica: a relação em espiral entre a lógica e a experiência história. As categorias são hauridas da experiência histórica, alçadas ao plano teórico e, uma vez aplicadas à realidade, servem para esclarecê-la desde que sejam rigorosas e voltadas à descrição crítica. O diagnóstico da teoria da dependência, no que concerne aos efeitos, é irreprochável. Mas cabe auscultar as causas mais profundas na perspectiva das categorias desenvolvidas por Marx. Ou para usar Mao Tsé-Tung: é preciso compreender o fenômeno a partir da contradição principal e não apenas da contradição secundária.

É preciso distinguir o dinheiro como dinheiro e o dinheiro como capital. Para Marx, a fórmula geral do capital é: dinheiro-mercadoria-dinheiro. O capital não se identifica inicialmente com dinheiro. O capital é o circuito que se inicia com o dinheiro, passa pela mediação do intercâmbio de mercadorias, para se consumar como dinheiro novamente. Capital, portanto, é o dinheiro que gera, produz dinheiro. Por isso, não é ociosa a discussão de Marx sobre os fatores da mercadoria, a saber: o valor de uso e o valor de troca.

O valor de uso consiste na utilidade que a mercadoria proporciona e não se confunde com o valor de troca. A distinção entre valor de uso e valor de troca se revela fecunda para demonstrar a diferença de perspectiva em relação aos valores da mercadoria decorrente da diferença no polo da relação de troca comercial.

A mercadoria interessa ao capitalista não pela utilidade que pode proporcionar (valor de uso), mas pelo valor de troca que ostenta. Inclusive, a distinção é crucial para compreender que o lucro, ou melhor, a mais-valia vem da exploração do trabalhador e não do intercâmbio comercial. A extração de mais-valia se dá na exploração do trabalho vivo.

Como parte do trabalho objetivado na mercadoria não é pago, o processo de circulação, na forma originária do capitalismo, no qual a mercadoria interessa apenas como valor de troca, é de fundamental importância para a formação de capital porque permite consumar a exploração do trabalho não pago ínsito à mercadoria.

A grande mutação, já entrevista por Lenin, é que a produção de excedente, decorrente do processo de circulação do capital, enseja uma grande concentração de capital excedente que se autonomiza e cria as condições para a produção autorreferente de dinheiro e sua exportação dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos.  Leciona Lenin:

“O que caracteriza o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo atual, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital”[7]

Marx já pressentira essa autonomização quando afirma que a fórmula do capital a juros é dinheiro-dinheiro sem a necessidade da mediação do processo de circulação de mercadorias. O cerne do capitalismo atual, na dinâmica do sistema-mundo, portanto, não é mais a exportação de mercadorias, mas a exportação de capitais.

O fetichismo do dinheiro autorreferente tem efeitos epistemológicos, circundando de mistério fenômenos como a inflação que, desde as categorias marxistas, são explicáveis. A inflação nada mais é do que uma crise na produção e intercâmbio de mercadorias que é apresentada como crise monetária[8]. Aqui se vislumbra o fetichismo do dinheiro autorreferente produzindo um ruído para evitar a compreensão cabal de um fenômeno. O domínio de setores estratégicos permite, por exemplo, a produção artificial de inflação, produzindo abalos nas economias dependentes, atingindo-se, especialmente, os setores populares[9].

Nos países desenvolvidos, produziu-se um grande excedente de capital que, sob a palavra ‘terna’ investimento[10], é aplicado nos países periféricos, servindo de dínamo para opressão de povos inteiros por meio do apossamento dos seus territórios e de suas riquezas.

Nos estudos da acumulação de capital, Rosa Luxemburgo, apesar de incorrer numa certa teleologia histórica, entrevê o modo como os empréstimos dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos são instrumentos do imperialismo:

“As contradições da fase imperialista se manifestam mais claramente nas contradições do sistema de empréstimos internacionais. Esses empréstimos são indispensáveis à emancipação dos jovens Estados capitalistas ascendentes e, ao mesmo tempo, constituem o meio mais seguro para os velhos países capitalistas colocarem os novos sob sua tutela, de controlar suas finanças e de exercer sobre eles uma pressão em sua política externa, aduaneira e comercial.”[11]

A própria assertiva se debate numa contradição e precisa ser mais compreendida. Não há como compatibilizar os termos da questão. Ou o capital estrangeiro constitui um meio necessário de desenvolvimento para os países subdesenvolvidos ou, ao contrário, constitui a engrenagem sutil da dominação imperial.

A economia burguesa dominante criou o mito de que o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos depende de capital estrangeiro, quando, na verdade, acontece o contrário. O que impede o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos é propriamente a dominação pelo capital estrangeiro cuja manutenção depende da reprodução da dependência, entrando-se num círculo vicioso. O capital estrangeiro promove a dependência e só se mantém pela reprodução da dependência.

Por isso, a busca, constante e permanente, pela dominação do campo político que, ao ser desprovido de autonomia, cria as condições para a reprodução da dependência. Para dizer da forma simples com que se expressam certos próceres do imperialismo: um país é dominado pela quantidade de capital estrangeiro que é investido nele.

Nos termos da teoria da dependência, o desenvolvimento do subdesenvolvimento, para retomar o termo de André Gunder Frank, envolve sempre a necessidade, dentre tantos efeitos, de os países desenvolvidos controlarem o processo político nos países periféricos para, especialmente, manietar o desenvolvimento científico, preservar o analfabetismo para produzir uma superpopulação relativa mais suscetível de formas de explorações mais intensas [12], fetichizar todas as formas de organizações que podem colaborar com a produção de uma esfera pública crítica, subsumir formas arcaicas de produção, como o trabalho escravo e servidão.

Ruy Mauro Marini, no texto citado, postula que a dependência está intrincada com a impossibilidade de os países periféricos desenvolverem o próprio processo de circulação. A saída da dependência seria, pois, criar as condições para a produção de um processo autônomo de circulação. A tese, mais uma vez, é correta apenas no nível do aspecto da aparência, mas, no que concerne à essência do fenômeno da dependência, não é satisfatória.

Leon Trotsky afirmava que a função histórica do capitalismo é o desenvolvimento das forças produtivas. Se analisarmos a asserção dentro do sistema-mundo em que a questão espacial centro- periferia emerge, veremos que a asserção é válida apenas para os países desenvolvidos. Uma das condições para a reprodução da dependência é evitar, de todas as formas possíveis, que os países periféricos desenvolvam suas forças produtivas, o que permitiria a produção de excedente, ensejando o equacionamento e a superação da dívida pública e até uma alteração substancial na divisão internacional do trabalho e do capital[13]. A desindustrialização nos países periféricos é um projeto deliberado da dominação imperial. A inexistência de um processo próprio de circulação é, pois, efeito da dominação.

A questão da dependência, portanto, está vinculada à questão da conversão dos orçamentos dos Estados periféricos em garantia do capital financeiro nacional e internacional[14]. Sejamos claro: nas formações sociais periféricas em que toda a história do poder colonial está orientada à dispersão das massas e das classes sociais subalternizadas, a única forma possível de transformação social se dá pela organização política para a conquista do poder do Estado[15]. O mecanismo da dívida torna os Estados periféricos estruturas incapazes de empreender as políticas públicas necessárias para debelar a dependência. Nesse contexto, o mecanismo da dívida pública externa ou interna cumpre o papel decisivo na submissão de um país ao capital financeiro nacional e internacional, retirando qualquer autonomia política voltada ao questionamento da dívida pública interna e externa e dos seus efeitos, impedindo a superação da dependência. A manutenção da dívida pública representa o mecanismo central da reprodução da estrutura colonial da dependência econômica.

Se aplicarmos a ideia dialética da influência recíproca entre causa e efeito, podemos afirmar que, no plano internacional, a própria eminência adquirida- que permite aos países desenvolvidos exportar capital- é decorrência do mecanismo da dívida pública. Alçados pelo mecanismo da dívida pública à condição de países desenvolvidos, só permanecem na condição de eminência se mantiverem inquestionável o mecanismo da dívida pública e dos efeitos decorrentes desta, especialmente na questão orçamentária[16].

Hinkellamert, ao criticar a teoria do imperialismo que coloca o cerne da dominação na exportação de capitais, tangencia a questão da dívida pública externa sob o argumento de que nunca houve exportação de excedentes por parte dos países desenvolvidos:

 “A própria teoria do imperialismo, desde Hobson, Bucarin e Lenin, caiu na cilada de crer que os países do centro transferem excedentes para os países da colónia, que hoje chamamos de Terceiro Mundo. Jamais o fizeram e jamais farão. No período de maior dinâmica do investimento estrangeiro direto nestas regiões, entre 1870 e 1928, a Inglaterra teve um saldo negativo ininterrupto em sua balança comercial, o que significa que importou excedentes e financiou seus investimentos estrangeiros diretos gigantescos através da movimentação de poupanças internas dos países nos quais investiu.[17]

O que lhe faltou foi justamente perceber o modo como se dá confusão entre dívida pública- externa ou interna- e o capital financeiro. Afora isso, toda a análise desse mestre continua vigente e atual. Em O Capital, Marx compreendeu o fenômeno claramente, afirmando:

“A dívida pública converte-se numa das mais poderosas alavancas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de uma capacidade criadora, o transformando em capital sem ser necessário que seu dono se exponha aos riscos e aborrecimentos que são inseparáveis do investimento industrial e mesmo de atuar como usurário. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois os títulos da dívida pública continuam a funcionar em suas mãos como se fosse dinheiro. A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu os agentes financeiros que funcionam como intermediários entre o governo e a nação. As parcelas de sua emissão que são adquiridas pelos arrematantes de impostos, negociantes e fabricantes privados lhes proporcionam o serviço de um capital caído do céu. A dívida pública faz prosperar sociedades anônimas, isto é, o jogo da bolsa de valores e nossa moderna bancocracia”[18].

É interessante notar que Marx insere o tema da dívida pública no terreno da acumulação primitiva do capital, deixando clara a relação entre o domínio imperial, capital financeiro e o mecanismo da dívida pública. A acumulação primitiva do capitalismo consiste num fenômeno heteróclito que envolve a supressão da base fundiária dos camponeses e dos povos originários, legislações draconianas, pilhagem dos bens dos Estados etc. David Harvey, apesar de ter trazido contribuições inestimáveis no esclarecimento e no desdobramento do conceito, não inseriu a questão da dívida pública- externa e interna- como elemento central da acumulação primitiva.

A exportação de capital não tem fins filantrópicos, mas objetiva ao incremento da acumulação de capital, isto é, a autovalorização do capital pela produção de mais mais-valia. Poderíamos até designar esse fenômeno como mais-valia internacional porque se sustenta na exploração de países inteiros.

No direito civil, nos direitos das obrigações, existe um instituto denominado confusão em que as figuras do credor e devedor se enfeixam na mesma pessoa, constituindo uma forma de extinção da obrigação. O mecanismo da dívida pública produz essa confusão. Dessa forma, os Estados periféricos se convertem em garantes do capital financeiro nacional (dívida interna) e internacional (dívida externa)[19], suprimindo-se qualquer possibilidade real de desenvolvimento econômico, lançando na opressão da fome e do desemprego povos inteiros que, se adquirissem autonomia política, poderiam desenvolver suas forças produtivas, estimulando formas sustentáveis de desenvolvimento que, respeitando o metabolismo ser humano e natureza, engendrariam novas de ser, novos modos de produção.

Já Kant, no texto Pela Paz Perpétua, afirmava que a inexistência de qualquer mecanismo de dívida na resolução de querelas entre Estados, ainda que oriunda de guerra, e o respeito incondicional à autodeterminação dos povos são condições básicas para a paz entre os povos. É de uma atualidade gritante.

Em Princípios de Filosofia do Direito, Hegel afirma que um povo entra para história universal quando engendra novas formas de ser que se imprimem de forma duradoura no tempo-espaço. Se os povos da América Latina e o Caribe derem uma solução racional à espinhosa questão da dívida pública- interna e externa- podem se inserir na história universal, alterando a divisão internacional do trabalho em prol do desenvolvimento econômico capaz de proporcionar bem-estar universal, conferindo materialidade à ideia de Kant de hospitalidade incondicional, deixando o imperialismo apenas como uma chaga vergonhosa da história do sistema-mundo.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.


[1] FRANK, André Gunder. Lumpen-bourgeoisie et lumpen-développement. Paris: François Maspero, 1971, p.20.

[2]Texto inserto em “América Latina, dependencia y globalización. Fundamentos conceptuales Ruy Mauro Marini. Antología y presentación Carlos Eduardo Martins. Bogotá: Siglo del Hombre – CLACSO, 2008”

[3] MARX, Karl. O Capital. Vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 62. A estrutura permanece a mesma e provoca a luta por terras agricultáveis.

[4] MARX, Karl. O Capital: vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-9.

[5] Na reforma trabalhista brasileira, a supressão das horas in itinere, a redução do intervalo intrajornada e o trabalho intermitente constituíram formas de extração de mais-trabalho. Além disso, decisões negando o acúmulo do adicional de periculosidade e de insalubridade contrariando as normas da OIT constituem, também, forma de extração de mais-valia.

[6] Caio Prado Junior, em Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, fala de várias formas arcaicas de produção como a meação. Conforme salientava Louis Althusser, no mesmo país podem conviver, ao mesmo tempo, vários modos de produção. É preciso estudar como o capitalismo, mesmo tendo por característica o trabalho assalariado, subsume modos de produção arcaicos.

[7] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p.

[8] Fica evidente que são múltiplas as causas que podem gerar uma inflação como crise energética, indexação da economia, ou qualquer outro fator que afete a produção e o intercâmbio de mercadorias.

[9] Quando do golpe no Chile em 1973, Henry Kissinger dizia que era preciso fazer a economia gritar de dor.

[10] Investimento é capital, capital é dinheiro produzindo dinheiro, e dinheiro nada mais é que trabalho objetivado.

[11] LUXEMBURG, Rosa. L’accumulation du capital II. Paris: François Maspero, 1969, p. 89.

[12] Faltou à teoria da dependência, ao falar em super-exploração, relacioná-la à questão do trabalho qualificado como Marx já anunciava.

[13] Veja-se, por exemplo, o caso dos países do Leste Europeu que, sob o regime comunista, tornaram-se potências econômicas em apenas três décadas, mas que, no período de Guerra Fria, sofreram brutal desindustrialização.

[14] A ‘solução’ que determinados governos encontram para essa questão é a compressão orçamentária nos setores sociais e econômicos e no aumento da carga tributária que sufoca o setor produtivo. Evidente que são falsas soluções para o grave problema da dívida pública interna e externa. 

[15] O revolucionarismo abstrato, tão ao gosto da pequena-burguesia, costuma dirigir seus torpedos ao Estado, incorrendo no mais débil historicismo. O que caracteriza o pensamento dialético, dentre outras coisas, é o imperativo de historicizar o discurso. Historicizemos: quando Marx criticava o Estado criticava algo concreto: o brutal e repressivo Estado Prussiano. E tinha razão em fazê-lo. Havemos de concordar com David Harvey: a única estrutura de poder capaz de impor freios ao capital é o Estado. A repressão de todo movimento político de contradição antagônica na modernidade periférica tem a ver com a necessidade para o império de ter o monopólio do Estado com a finalidade de reproduzir a dependência.

[16] Isso fica claro quando se analisa o caso da Independência do Brasil 1882 em que se herdou uma dívida externa.

[17] HINKELAMMERT, Franz J. A dívida externa da América Latina: o automatismo da dívida. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.

[18] MARX, Karl. O Capital: vol. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 278. Destaques nossos.

[19] É preciso lembrar Mao Tsé-Tung quando fala da posição de classe. Qual a posição de classe dos economistas oficiais? Declino isso porque há muito tem surgido uma retórica de que a dívida externa, em alguns países, se converteu em dívida interna, o que, por si só, já é discutível e, mais ainda, não resolve nada porque o problema permanece o mesmo, mudando-se apenas os personagens. Na economia burguesa atual, impera a ideologia da não ideologia. Negar que um discurso é ideológico é uma ideologia. Se houvesse neutralidade axiológica porque o mesmo fenômeno em determinados lugares é inflação e, em outros, crise de abastecimento?

O CONCEITO DE NATUREZA NO MARXISMO

Da mesma forma que se atribui ao idealismo alemão o erro de conceder à natureza um determinado lugar para logo sublimá-la, diz-se que Marx e Engels concederam à natureza um lugar abstrato. Ao analisar as bases do pensamento metafísico, Habermas assinala:

“O próprio Marx não reflete sobre o nexo entre a natureza em si, natureza para nós e sociedade. A dialética da natureza de Engels, a ampliação do materialismo histórico para o dialético, tornou evidente a recaída no pensamento pré-crítico.[1]

A assertiva não se sustenta. Para demonstrar o equívoco, resgatemos a categoria de negação que figura, ao mesmo tempo, no plano epistemológico e no plano ontológico. O método dialético confere um sentido novo à negação. Negar, em dialética, significa, na verdade, em determinar de forma que uma coisa, ao se inserir num sistema, somente se expressa de acordo com os imperativos internos desse sistema, excluindo-se outras determinações possíveis. Por isso, significa entender a realidade não como objetividade morta, mas cingida pelo caráter processual-dinâmico em que a negação da negação revela o movimento das coisas.[2]

Conforme afirma Engels:

“Negar, em dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Espinosa dizia: omnis determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo, uma negação. Além disso, o caráter da negação obedece, em primeiro, à natureza geral do processo, e, em segundo lugar, à sua natureza específica. Não se trata apenas de negar, mas de anular novamente a negação. Assim, a primeira negação será de tal natureza que permite que seja novamente possível a segunda negação. De que modo? Isso dependerá do caráter específico do caso concreto. Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o inseto, esta se executando, inegavelmente, o primeiro ato, mas torna-se impossível o segundo. Portanto, cada coisa tem um modo especial de ser negado, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento, acontecendo o mesmo com as ideias e os conceitos”[3]

Ao entender o sentido dialético da negação, é possível diferenciar o processo de trabalho do processo de valorização. Operando-se uma variação imaginativa em que se suprime mentalmente todas as formas de organização social, chega-se à essência do trabalho enquanto interferência teleológica na natureza para se obter os meios de existência. 

 O processo de trabalho consiste na eterna necessidade de mediação entre o ser humano e a natureza, independentemente da forma com que o trabalho é subsumido numa determinada formação social. Como Marx e Engels já tinham remarcado em A Ideologia Alemã:

“Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por qualquer outro critério. Mas os homens começam a se distinguir dos animais desde que quando começam a produzir seus meios de existência, passo este que é consequência mesma de sua organização corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua vida material.”[4]

Já o processo de valorização se expressa na forma com que cada formação social subsume o processo de trabalho[5]. Ou seja, na forma com que o trabalho é determinado em cada sociedade específica. No caso do capitalismo, o trabalho vivo é subsumido sob a forma de trabalho assalariado. Ao ocorrer apropriação dos meios de produção pelas classes dominantes, há uma ruptura entre o trabalhador e os meios de produção de forma que o trabalhador, privado que é dos meios de produção e da propriedade individual, é forçado a colocar a potência criadora de sua corporalidade viva como mercadoria. Por isso, há uma diferença muito grande entre a determinação do valor trabalho pelo salário e a determinação pelo trabalho vivo.

Uma intuição básica de Adam Smith é de que o elemento comum às mais variadas mercadorias é a quantidade de trabalho. O valor da mercadoria se coaduna com a quantidade de trabalho necessário para sua produção. Não obstante, não há coincidência analógica entre o valor do salário e a quantidade de trabalho expressa na mercadoria. A mais-valia, isto é, trabalho não pago, só se desvela quando, perscrutando a subsunção capitalista do trabalho, percebe-se a distinção entre a determinação do valor pelo salário e pela determinação pelo trabalho vivo. O processo de valorização do capital significa justamente a produção de mais-trabalho, de um excedente decorrente da exploração da força de trabalho. Nesse contexto, tanto o trabalho vivo quanto a natureza não são vista em si mesmas, mas como meios preordenados ao processo de autovalorização do capital, de produção de excedente.

O conceito de natureza em Marx, então, aparece quando da análise do processo de trabalho. Para Marx, a natureza é o corpo não orgânico do homem, meio natural que o condiciona e matéria com que, mudando as formas naturais, produz os meios de sua própria existência. Superando a dicotomia ocidental entre corpo e alma, alude às qualidades físicas e espirituais da corporalidade viva, podendo-se falar, também, nas qualidades físicas e espirituais da natureza. O cerne do pensamento ecológico de Marx é superar qualquer visão da natureza enquanto objeto, compreendendo-a na dinâmica da eterna necessidade de o homem se engajar no metabolismo da natureza para produzir seus meios de existência. Nas análises do marxismo, já se pressente todas as consequências da crise ecológica.  O que está em jogo, no momento de pandemia, é a ruptura no metabolismo ser humano e natureza, colocando-se em risco o futuro da humanidade. A tarefa, então, é criar um modo de produção que possa se apresentar como ecossistema salutar, permitindo o livre desenvolvimento de todos.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e professor da UNEB.


[1] HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 49.

[2] O conceito de negação em Hegel é fundamental para superar a epistemologia positivista.

[3] ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 120-121. Foi com base na leitura do eterno mestre Enrique Dussel do conceito de negação que desenvolvemos a distinção entre valor e fonte criadora de valor. A meu ver, a melhor forma de homenagear um grande filósofo é fazer uso dos seus conceitos e leituras mais do que recitá-lo na literalidade. A natureza e o trabalho vivo são as fontes criadores de valor. No capitalismo opera-se sob a forma de propriedade privada (que não se confunde com a propriedade individual) e a mais-valia. Há que desenvolver a categoria de mais-valia fundiária, urbana e rural. Não é por acaso que o capitalismo só sobrevive à medida que socava as duas fontes criadoras de valor. Há que pensar novas formas de organização societária em que a relação entre trabalho e terra seja reinventada num sentido comunitário. A única questão filosófica importante é a reinvenção da vida.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 45.

[5] Sobre a categoria de subsunção, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

O SENTIDO ESTRATÉGICO DA CATEGORIA DE PROBLEMÁTICA EM ALTHUSSER

À Liga da Juventude Comunista

“Uma teoria é revolucionária precisamente na medida em que é elemento de separação e de distinção consciente em dois campos, na medida em que é um vértice inacessível ao campo adversário” Gramsci

“Política e tática são a vida mesma do partido” Mao Tsé-Tung.

Toda constituição de um campo de conhecimento obedece a um conjunto de pressupostos teóricos subjacentes que, muitas vezes, não é explicitado de forma que sua tematização remanesce obscurecida, seja por motivos teóricos, seja por motivos políticos. Para usar Heidegger, a todo pensamento corresponde um impensado que lhe é co-constitutivo e que se lhe antolha.

Se compreendermos por paradigma científico um conjunto de princípios teóricos compartilhados consensualmente pela comunidade científica a partir do qual se avalia a verdade ou não de um enunciado, podemos afirmar que uma ruptura epistemológica acontece quando há uma alteração nas premissas subjacentes que encartam e imantam esse mesmo conjunto e que, por sua vez, implode-o, gerando uma nova forma de conhecimento.

O trabalho da crítica, por sua vez, pode ser entendido como o processo de tematizar o que, num pensamento, permanece impensado, trazendo a lume as premissas subjacentes que lhe são inerentes ou desdobrando as premissas no sentido de lhe atribuir as consequências que se pretende evitar.

Michel Foucault, na magistral aula inaugural no Colégio de França, convertida no livro A ordem do discurso, mostra que um enunciado, ainda que verdadeiro, pode ser rejeitado pela forma com que se organiza um campo de conhecimento. Podemos acrescentar, tendo em vista as articulações entre a ciência e as formas de poder, que, por injunções políticas, um enunciado ou uma forma de saber pode ser objeto de campanhas terríveis e sutis de censura. O Capital de Marx, por exemplo, foi objeto de uma longa campanha de silêncio.[1]

Todo campo de conhecimento se baseia, pois, numa problemática. Conforme leciona Louis Althusser:

“A problemática de um pensamento não se limita ao domínio dos objetos tratados por um autor, isso porque ela não é uma abstração do pensamento como totalidade, mas a estrutura concreta e determinada de um pensamento, e de todos os pensamentos possíveis de um ato de pensamento”[2].

A problemática instaura um sistema de referências a partir do qual as questões e os problemas específicos de um campo de conhecimento são colocados. É um regime de visibilidade e uma tática discursiva. É um regime de visibilidade porque delimita o horizonte das perguntas e oculta o que, no calcanhar da problemática, insinua-se e que, se fosse reconhecido e teorizado, levaria a sua implosão teórica. É uma tática discursiva em cujos limites somente determinadas questões aparecem, interditando-se a emergência de problemas que não se enquadram nos limites de seu volume e espessura.

Não se trata apenas de forma de ocultação ideológica, mas da constituição de um campo de conhecimento estribado num consenso que instaura o segredo sobre determinadas questões. Tal consenso, ao obedecer a critérios não explicitados, indica uma posição frente ao mundo e aos problemas que se suscita.

Portanto, na problemática, somente determinadas questões aparecem, interditando-se outras. No caso da economia política burguesa, qual é o impensado que lhe é co-constitutivo?[3] Vejamos um enunciado de ninguém menos do que David Ricardo:

“Adam Smith, que definiu com tanta exatidão a fonte original do valor de troca, e que coerentemente teve que sustentar que todas as coisas se tornam mais ou menos valiosa na proporção do trabalho empregado para produzi-las, estabeleceu também uma outra medida-padrão de valor, e se refere a coisas que são mais ou menos valiosas segundo sejam trocadas por maior ou menor quantidade dessa medida-padrão. Como medida-padrão ele se refere algumas vezes ao trigo, outras vezes ao trabalho; não à quantidade de trabalho empregada na produção de cada objeto, mas à quantidade que este pode comprar no mercado, como se ambas fossem expressões equivalentes e como se, em virtude de se haver tornado duas vezes mais eficiente o trabalho de um homem, podendo este produzir, portanto, o dobro da quantidade de uma mercadoria, devesse esse homem receber, em troca, o dobro da quantidade que antes recebia.

Se isso fosse verdadeiro, se a remuneração do trabalhador fosse proporcional ao que ele produz, a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que esse mercadoria compraria seriam iguais, e qualquer delas poderia medir com precisão a variação das coisas.”[4].

Nas brilhantes análises de Marx vemos que, diante da heterogeneidade das mercadorias, o traço que lhe é comum é justamente a quantidade de trabalho; que o salário, no modo de produção capitalista, corresponde ao minimamente necessário à reprodução física do trabalhador[5]; que a mais-valia corresponde à parte de trabalho não pago. Pode-se verificar que todos esses corolários já estão presentes no enunciado citado.

Em O Capital, Marx, ao realizar uma leitura sintomal da economia burguesa[6], enuncia que os economistas burgueses viram algo que negaram porque seria implosivo para o próprio sistema de conhecimento que desenvolveram e, portanto, para a formação social que este conhecimento busca legitimar. É esse o papel da problemática: interditar um campo de conhecimento para interditar o questionamento da injustiça de uma determinada forma de organização societária. Não há campo de conhecimento que não esteja articulado com as graves questões políticas.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Numa carta a Engels, Marx tenta ele mesmo articular, sob um pseudônimo, a crítica do livro O Capital para suplantar o que chamou de ‘muro do silêncio’ em torno do livro. A peça teatral de Bertold Brecht “A vida de Galileu” busca demonstrar como um conjunto científico se defronta com as injunções do poder instituído, de como a verdade pode ser interditada por meio da perseguição dos cientistas.

[2] ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: La décoveurte, 2005, p. 65.

[3] Veja-se que um liberal de talento descomunal como Joseph Schumpeter afirma que as bases da economia são a terra e o trabalho. Se fizéssemos uso dessa arguta ideia, poderíamos fazer uma análise mais abrangente das crises econômicas. A inflação galopante nos EUA, por exemplo, está diretamente relacionada à grave crise energética por que passa o país.

[4] RICARDO, David. Princípios da economia política e tributação. São Paulo: Abril Cultura, 1982, 44-45.

[5] Uma das razões da ocupação estatal pela burguesia é ter o domínio da política sobre o salário mínimo. Uma política genuinamente de esquerda redunda em valorização do salário mínimo- que se deveria chamar salário básico.

[6] Sobre a leitura sintomal da economia burguesa clássica, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

A LUTA TEÓRICA CONTRA A ESPONTANEIDADE

“Eu vos dôo, proletários do planeta, cada folha até a última letra” A pleno pulmões, Maiakóvski

Lenin sempre ressaltava que o fato de um movimento político de contradição antagônica ascender ao poder não significava, por si só, a abolição das lutas de classes. Ao contrário, nesses momentos, mais do nunca é preciso articular a defesa ativa da disciplina coletiva diante da reatividade recrudescida das classes dominantes cuja articulação, não se deve esquecer, é sempre de natureza internacional.

Inicialmente, a ideologia entendida como um conjunto de representações acerca do social-histórico não tem uma natureza reativa, pois constitui o conjunto de articulações simbólicas a partir do qual o ser humano intelige e compreende as suas relações intersubjetivas. É mais o horizonte em que em estamos mergulhados do que algo sobre que meditamos.

Não há fato desprovido de pressuposições. Por estarmos sempre num contexto de articulação simbólica, não há experiência selvagem em que os sentidos se apresentam primários e fundantes. É esse o problema das ciências sociais. Na medida em que estudam um objeto já prenhe de sentido, enfrentam uma aporia inevitável: voltar-se ao estudo do significado já dado socialmente ou submeter a significação social ao modelos dos fenômenos físicos.[1]

Émile Durkheim, em livro clássico de metodologia social, coloca a questão no seu cerne:

“Os homens não esperam pelo advento das ciências sociais para conceber ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, e a própria sociedade, pois não podiam passar sem elas para viver. É, sobretudo, em sociologia que estas prenoções, para retomar a expressão de Bacon, são suscetíveis de dominar os espíritos e de substituir à realidade. Com efeito, os fatos sociais não se realizam senão através dos homens; são resultado da atividade humana. Parecem, portanto, não ser mais do que o pôr em prática as ideias, inatas ou não, que trazemos em nós, mais que sua aplicação às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si. A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade, aparecem assim como um simples desenvolvimento das ideias que temos sobre essa sociedade, o Estado, a justiça, etc. Por consequência, estes fatos e as suas análises parecem não ter realidade senão nas e pelas ideias que são os seus germes, e se tornam, desde logo, na matéria própria da sociologia.”[2]

Aqui tangencia a função duplamente hermenêutica das ciências sociais, mas se inclina por transplantar o modelo das ciências naturais às ciências sociais ao remarcar que se deve estudar os fatos sociais como coisas, na sanha positivista por uma noção de objetividade desprovida de movimento.

Guerreiro Ramos lutou contra esse corte positivista ao enfatizar que o pertencer à comunidade impede um sobrevoo absoluto sobre os dados sociais e que a sociologia da modernidade periférica envolve sempre o compromisso do sociólogo com a compreensão do real na dinâmica das contradições e que, por isso, só se desvela com o engajamento crítico. Mas essa é uma outra questão.

Se a ideologia tem um sentido orientador no mundo da vida, quando adquire um caráter opressivo? Quando as significações, imagens e representações camuflam, ainda que com dados tênues da realidade, as relações de poder; quando, por meio da construção de uma evidência familiar que forja um horizonte estreito de percepções, busca-se manipular os comportamentos para a manutenção ou retorno das relações de dominação. A ideologia figura, então, como uma filosofia espontânea na qual todos estamos submergidos.

Resulta fácil inferir que, em razão do domínio pelas classes dominantes dos mais variados agenciamentos coletivos de enunciação, para retomar um termo de Guattari, a ideologia das classes dominantes se torna dominante e passa a ter uma capilaridade nas mais variadas instituições, incluída a família, que não se deve nunca subestimar.[3]

A luta teórica, nessa encruzilhada, não é uma luta acadêmica: é uma luta sobre o sentido do social-histórico e sobre a orientação diante dos graves problemas políticos. A luta de Lenin contra a espontaneidade no movimento operário se insere nessa encruzilhada contra a primazia das representações burguesas, dialogando com a classe operária para articular o sentido do todo estruturado complexo para mais bem se orientar nas questões políticas e econômicas. Sem teoria adequada, a prática política torna-se cega e incapaz de produzir efeitos políticos adequados. Afirma Lenin:

“Por que- perguntará o leitor- o movimento espontâneo, o movimento pela linha de menor resistência, conduz precisamente à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a ideologia socialista, porque é mais completa a sua elaboração e porque possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos” [4]

É preciso acrescentar esse enunciado: a ideologia burguesa é mais antiga, possui meios de difusão muito mais numerosos e, hoje, possui muito mais capilaridade que na época de Marx[5]. O capital financeiro, ao monopolizar os agenciamentos coletivos de enunciação, tem mais condições de forjar a evidência familiar que interessa à manutenção das relações do domínio.

A assunção ao poder de um movimento de contradição antagônica que não significa a alteração dessa conjuntura da dinâmica da produção do real torna-o vulnerável à reatividade das classes dominantes que não pensam duas vezes em mobilizar todo o arsenal de meios de comunicação para engendrar o caos organizado para fins de desestabilização[6]. Cabe-nos o diuturno trabalho da crítica contra os sofismas, as frases e as palavras-de-ordens mais cotidianas e mais capilares.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB


[1] Em Teoria da Ação Comunicativa, Habermas, partindo dessa questão, afirma a natureza duplamente hermenêutica das ciências sociais, que são obrigadas a tematizar um dado que já tem uma significação social no mundo da vida.

[2] DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 44.

[3] Os meios de comunicação instantânea passam a ter um papel central nesse contexto.

[4] LENIN, Vladimir Ulianov. Que fazer: Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 92-3. Hoje, temos uma teoria crítica muito mais desenvolvida, mas que precisa de canais de popularização. Uma das primeiras medidas de Lenin foi a construção de um jornal de âmbito nacional para fazer frente à filosofia espontânea burguesa.

[5] O grande filósofo italiano Gianni Vattimo, ao enfatizar a força dos meios de comunicação na construção da realidade, costuma dizer que Marx, se vivo, seria muito mais pessimista diante de um projeto emancipador. É preciso entender o alerta no sentido de que não se pode acomodar e que o trabalho da crítica não terminou. Marx apenas preparou o terreno adequado para a nossa longa jornada, a longa marcha da emancipação.

[6] Slavoz Zizek afirma que, hoje, apenas a direita tem mobilizado a paixão política. Para um psicanalista, a afirmação é demasiado ingênua além de incorreta espacialmente.