Arquivos da Seção: Da Ciência Jurídica à Jurisprudência

EGOLOGISMO HOJE

A Giuliani Fonrouge e a Luis Alberto Warat

Uma visão que radica no mais acendrado conservadorismo atribui ao direito uma função repressiva, olvidando a condição ontológica da experiência jurídica. O remontar à origem fenomenológica do direito, por uma redução eidética fundamental, não é mera questão terminológica ou discussão escolástica vazia, mas constitui um dispositivo teórico prenhe de consequências.

Como uma charrua ara a terra, um dispositivo abre a porta, um dispositivo teórico engaja um campo de conhecimento em inflexões que levam à ruptura epistemológica. Conforme assinalamos em obra recente, uma ruptura epistemológica ocorre quando, inserido nos eixos de um campo, revela-se algo não tematizado ou não desdobrado em suas consequências.[1]

A teoria Egológica do Direito, desenvolvida por Carlos Cossio, lança um novo dispositivo teórico e opera uma redução fenomenológica do direito. A redução, em Cossio, significa a ex-posição originária de um fenômeno em sua raiz lógico-ontológica. A teoria egológica, portanto, é uma lógica transcendental do direito e, especialmente, uma ontologia cultural do direito.

O projeto da ontologia moderna, de matriz heideggeriana, desoculta o campo do conhecimento para abrir o tema da existência, isto é, do ser-no-mundo do ser humano. Afirma Heidegger:

“Orientando-se por essa idéia, realizou-se a análise preparatória da cotidianidade mais imediata, chegando-se a uma primeira delimitação da cura. Esse fenômeno possibilitou uma apreensão nítida da existência e de suas remissões intrínsecas à facticidade e à decadência. A delimitação da estrutura da cura forneceu as bases para uma primeira distinção ontológica entre existência e realidade. Isso levou à seguinte tese: a substância do homem é a existência.”[2]

A existência tal qual se desvela em abertura à questão do ser não acontece de maneira descontextualizada. Dylthey insere o problema na dicotomia natureza e cultura,que servirá de base para discussões em inúmeros campos do conhecimento. O egologismo, na medida em que constitui uma metodologia fundada filosoficamente, radica na distinção natureza e cultura.

No diálogo com Kelsen, enunciou Cossio:

“Vida plenária, pois, em oposição à vida biológica. E vida plenária, portanto, como cultura; compreendendo em sua íntima unificação os dois aspectos da cultura: o que, como vida objetiva, consta dos produtos do fazer humano, subsistindo com autonomia ôntica em relação ao seu autor (objetos mundanais), e o que, como vida plenária vivente, consta dos quefazeres atualizados, inseparáveis de seu autor (objetos egológicos).” [3]

Os objetos culturais como objetivação da vida humana, então, distinguem pelo substrato e pela relação com o autor: 1) os objetos mundanais, cujo substrato é material e se emancipam do autor, assumindo vida cultura destacada; 2) os objetos egológicos, cujo substrato é a conduta e remanesce vinculados ao autor na medida em que o direito é co-existência.

Uma escultura, seja de madeira, seja de ferro, ganha existência autônoma e se torna objeto de contemplação turística, relíquia individual, ao mesmo que tempo que condensa sentidos a serem interpretados existencialmente pelo público dotado das condições sociais. Uma norma, mesmo se destacando da comunidade jurídica que a criou, mergulha em contextos de interação institucional que não são apenas complementares no sentido de que não há obra sem leitor, mas, sobretudo, porque o direito não se realiza automaticamente e depende da conduta. Em lição lapidar:

“ Quando os aviões alemães foram bombardear, em 1914, Paris, levaram a Vênus de Milo ao sótão do museu Louvre, coberta de areia, para protegê-la das bombas; e, da mesma forma, com todas relíquias do grande museu. Por que não se podia proteger da mesma forma o direito francês, que é também uma realidade cultural? A resposta é uma só: porque o direito francês estava na conduta dos franceses, em presença intransferível.”[4]

A teoria egológica, portanto, insere-se num contexto profundo da compreensão de que o direito não se realiza imediatamente na produção legislativa, como certa perspectiva estática da ontologia moderna possa sugerir.

Ao captar ontologicamente o direito como conduta co-existencial, não deixa de se pensar o direito de maneira normativa. São perspectivas que não se apartam, mas se complementam de maneira criativa, numa compreensão que podemos chamar de protonormativa.

O direito é liberdade fenomenológica, mas é norma jurídica. A norma jurídica não se confunde com a conduta. Há, portanto, uma diferença ontológica entre a norma jurídica e a realidade que é representada pela norma jurídica. A norma é conceito com que a comunidade pretensora pensa as condutas que pretende dirigir e governar.

Escreve Cossio:

“Para nós, o direito é vida humana plenária considerada desde certo ângulo, ou como temos dito sempre, é a conduta humana em interferência intersubjetiva. A norma, que é a significação expressada, é, simplesmente, a representação intelectual desta conduta como conduta. A norma é conceito que menciona a conduta mentada como quem esboça ou pré-esboça uma ação humana. A norma é um pensamento com o qual pensamos uma conduta, tal como os conceitos de triângulo e sol são pensamentos com os geômetras e o astrônomo pensam seu objeto sem a crença de que tais conceitos tem a quantidade de ângulos ou a temperatura que correspondem aos objetos e somente a eles. Assim, a norma que representa a conduta não tem, por exemplo, a temporalidade desta’’[5]

A norma, fruto da abstração formal da lógica, estrutura-se em atributos abstratos, arrancados da experiência, e, voltados à experiência, tem por referência semântica determinadas condutas que acontecem em contexto cujas particularidades são sempre abertas.

Não se afirma, de forma imprudente, que o direito não alcança a realidade, mas que a complexidade do contexto em que a conduta acontece sempre apresenta aspectos não previstos pela norma enquanto esquema conceitual. De outro lado, o esquema normativo, marcado por certos atributos, tem a possibilidade de normatizar.  A aplicação do direito se torna segura, pois, o acontecimento fático, previsto, antecipada e abstratamente, convola-se com o esquema abstrato. Muito embora não se confunda com os símiles abstratos, a conduta fática é classificável e suscetível de qualificação jurídica.

O direito enquanto norma- juízo disjuntivo- encontra-se no plano lógico, dotado de generalidade. A conduta normatizada está no plano da experiência social, no campo da intersubjetividade, em plenitude das circunstâncias que a contingência elabora. Neste acontecer fático vigora a individualidade fática. A aplicação do direito, portanto, é lógica da individuação.  

Kelsen, ao refutar o egologismo, dizia que a conduta só interessa ao direito enquanto regulada por uma norma jurídica. Dessa maneira, o objeto da ciência seria a norma e não a conduta humana. Na verdade, Kelsen aborda um aspecto da questão. Se o direito é objeto cultural, dotado de um substrato- a conduta em co-existência- e de um sentido- a significação normada-, interessa ao direito, no plano da experiência da aplicação, a dialética entre a conduta mentada e a significação normativa que se adjudica.

A interpretação e aplicação do direito transitam, dialeticamente, da norma à conduta, do substrato ao significado, até se atingir a solução que corresponde aquilo que Aristóteles chama prudência: isto é, a incidência rigorosa de um padrão, artisticamente.

O direito é uma arte. E é, em Aristóteles, uma forma de governo.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] Ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Marxismo, Arqui-Espaço, Agrimensuras Críticas. Curitiba: CRV, 2024.

[2] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petropólis: Editora Vozes, 2006, pág. 327. O conceito de cura (sorge) e cuidado, longe de ser o cuidado no sentido comum, como erroneamente propaga Leonardo Boff, tem que ver com a disposição originária do ente humano ao sentido do Ser enquanto Ser. 

[3] COSSIO, Carlos; KELSEN, Hans. Problemas escogidos de la teoria pura del derecho: teoria egologica y teoria pura / Kelsen-Cossio. Imprenta: Buenos Aires, G. Kraft, 1952, pág.107.

[4] COSSIO, Carlos; KELSEN, Hans. Problemas escogidos de la teoria pura del derecho: teoria egologica y teoria pura / Kelsen-Cossio. Imprenta: Buenos Aires, G. Kraft, 1952.

[5] COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944.

POR UMA HERMENÊUTICA DA PARTICIPAÇÃO PARENTÉTICA

“No direito moderno, os burgueses são forçados a dar à lei uma expressão geral” Karl Marx

O ser humano é ser-em-situação, isto é, um ser que assume um conjunto de hábitos necessários à orientação diante da vida, do ser, do outro, e, mormente, diante da formação social de que faz parte.

A hermenêutica, na linha de Gadamer, traduz a relação de ser-em-situação no conceito de pertencimento à tradição. A tradição se revela como uma comunidade histórica de preconceitos, que sedimenta uma estrutura pré-temática que norteia o modo de pensar e agir humano.

 A tradição histórica, então, enquanto horizonte, oriundo do passado, que condiciona o viver social. O pertencimento à tradição leva à ideia de pré-compreensão na medida mesma em que nenhum entendimento se produz sem pressuposições, sem visão prévia.

Afirma Gadamer:

“Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de quem quer compreender um texto está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição.”[1]

Nenhuma tradição é unívoca ao ponto de impor, monoliticamente, os sentidos aos que interpretam. Todo texto, independentemente da tradição a que está adstrito, abre um campo aberto, onde há espaço de decisão, embora limitado ao quadro de equivalências. Parafraseando Carnelutti, decidir é decidir-se. Na hermenêutica moderna, decidir-se na compreensão das recepções adstritas ao quadro analógico do texto.[2]

A sociologia, por sua vez, também enfatizou o ser-em-situação, mas numa perspectiva diversa, apresentando vários vetores:

  1. o modo-de-produção, isto é, a maneira com que se organizam os fatores de produção;
  2. a divisão de classes e seu reflexo no lugar de produção e de poder que as pessoas ocupam;
  3. a grave questão das organizações administrativas, públicas e privadas;
  4. as formas de distinção social, relativas ao acesso a bens materiais e simbólicos;
  5. os valores que se projetam pelos meios de comunicação;
  6. os horizontes teóricos que se espargem pelos aparelhos ideológicos;

Para Guerreiro Ramos, todas essas questões esbarram no tema das organizações. Afirma o fundador da sociologia crítica:

“Organização é aspecto da vida social e individual cuja relevância só recentemente vem sendo assinalada. No entanto, dificilmente se compreende o essencial da vida coletiva, caso se descure do seu aspecto organizacional. A organização é o segredo da servidão humana. É para os seres humanos o que a espécie é para os animais inferiores. Uniformiza as condutas, subordinando-as mecânica e dogmaticamente, reduz e anula até a liberdade. A descoberta e o estudos dos efeitos da organização sobre a vida humana estão destinados a ter importância idêntica à que tem conhecimento sistemático do inconsciente. A compreensão do inconsciente caracteriza a conduta superior. Do mesmo modo, a compreensão da organização libera a existência humana de grande parte de suas servidões.’’[3]

No caso do direito, dois enclaves são fundamentais: 1) a função do ensino jurídico; 2) o modo com que se realiza a prática jurídica;

O ensino jurídico, hoje, corre dois riscos: o da superficialidade e do comércio de mistérios que ofusca e sobrepuja o necessário estudo das categorias teóricas e práticas do direito, filosoficamente fundadas. Na verdade, são complementares na medida em que, para fugir, ilusoriamente, da superficialidade, criam-se círculos com fumos de intelectualidade, mas desprovidos do mínimo de rigor lógico, com enunciados que não conseguem articular o menor significado.

Relevante a questão da relação sujeito e objeto, a qual é de grande atualidade e merece interpretação correta não em termos de superação, mas de inserção adequada do tema (enjeu).

Escreve Emerich Coreth:

“Aqui se patenteia um estreito entrelaçamento de sujeito e objeto. De fato, o sujeito só é este sujeito concreto enquanto codeterminado pelo mundo de seus objetos; porém, só é este objeto concreto na medida em que se abre pelo modo de ver, questionamento e apreensão de sentido por parte do sujeito.”[4]

Nem o sujeito nem o objeto, em sendo originários das condições históricas e das condições sociais, são determinados abstratamente. Sobre o sujeito e na construção do objeto pesam não apenas as determinações do passado, mas o modo do influxo das organizações na relação com o tempo e o espaço, a construção do sentido e, mormente, o modo que as objetivações da individualidade, em seus fluxos e enclaves, são forjadas no âmbito social-histórico presente.

Afirma Karl Marx:

“A perspectiva da doutrina materialista, na qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação e, por corolário, são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o educador mesmo precisa ser educado. É porque tende a dividir a sociedade em duas partes em que uma se sobreleva a outra (por exemplo, em Robert Owen).

A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana não podem ser compreendida racionalmente senão enquanto prática revolucionária.” [5]

As organizações são frutos da interação humana, voltada a produzir e alcançar os objetivos socialmente estabelecidos, mas, desenraizando-se das origens históricas, assumem feições heterônomas, impondo-se sobre as subjetividades.

No contexto do que denominamos sociedades fraturadas com conurbações transcendentes[6], em que não há tradição, as instituições coisificam-se em interesses de círculos e clãs e não são responsivas ao interesse coletivo, à vontade geral, e à eficácia da constituição. 

As organizações públicas e privadas, na Antiguidade Clássica, eram projeção da Estadística, a qual estava vinculada, filosófica e politicamente, à agrimensura do espaço e à construção da política e da economia.

No Brasil, em que a Constituição, embora projete um estado de coisa, no sentido latino do termo, marcado pela produção e a criação artística, esbarra na ausência de Estadística, as conurbações transcendentes vivem parasitariamente da dívida pública, que compromete o futuro. Temos constituição, mas não temos Estadística[7].  Na América Latina, é tarefa primeva reinventar a Estadística.

Nesse contexto, as categorias centrais da história cultural da ciência jurídica e da hermenêutica filosófica e jurídica não são difundidas a contexto e de maneira aprofundada. O descortinar dos conceitos, no âmbito jurídico, abre frestas para que o trabalho dos juristas, teóricos e práticos, seja a cognição consciente do ordenamento e não a idiossincracia subjetiva dos sujeitos. [8]

A tarefa do saber jurídico é ambiguamente estipulada: de um lado, reproduz estereótipos que dificultam a compreensão do texto; de outro, em sendo criativo, pode abrir o horizonte em que a interpretação e aplicação do direito, na cognição adequada dos textos, façam valer o direito enquanto formação dos liames societários e os sentidos projetados pela comunidade política, detentora do poder de normatizar de maneira geral e abstrata.[9]

A participação, em Platão, é conferir sentido concreto e particular ao que se apresenta de forma universal. Na lógica jurídica, conferir concretude individual àquilo que, abstratamente, mediante predicados inseridos na hipótese normativa, vem previamente estabelecidos. Enfim, a difícil arte de interpretar e aplicar ao direito e preservar os sentidos coletivos. Interpretar e aplicar são, portanto, atitudes parentéticas, isto é, a elevação à consciência dos dados da realidade e o alcance de uma objetivação clara do que se apresenta como obra ou texto, engajando e ultrapassando a si. O jurista seria a comunidade em concreto. O espírito objetivo. Para citar Rudolf Stammler, o jurista como aquele que forja, na arte viva da exegese, o que a comunidade quer unificar.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, pág. 442.

[2] Sobre o tema ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024. No texto, inserimos de maneira originária, no campo do direito, a estética da recepção. A relação direito e literatura deve ser intrínseca e não extrínseca na forma trivial com que acontece no Brasil. Quando Dworkin aventava a hipótese estética, claramente, referia ao fato de que, na literatura, há mais teorias interpretativas do que no direito.

[3] RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963, pág. 147.

[4] CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêuticas. São Paulo: EPUL, 1973, pág. 100.

[5] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Études philosophiques. Paris: Editions sociales, 1951, pág. 62, tese III. Na edição da Ideologia Alemã, consta o texto de Friedrich Engels em que analisa o conceito de graça teológica em Feuerbach, onde está a gênese do existencialismo secularizado e a ideia de que a existência só se realiza pela unidade com o ser na graça.

[6] Sobre o desenvolvimento do conceito, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Marxismo, Arqui-Espaço, Agrimensuras Críticas. Curitiba: CRV, 2024. Ver também o artigo publicado na Revista Empório do Direito sobre a violação sistemática do art. 37, inc. II, CRFB, e as consequências para a estrutura societária do trabalho e das organizações, num exemplo patente da inexistência de Estadística: https://emporiododireito.com.br/leitura/das-formas-de-assuncao-a-cargos-publicos-na-constituicao-de-1988. No tempo em que se esboçava, no Brasil, a Estadística, Guerreiro Ramos, afirmava que ‘’só uma situação econômica segura pode subtrair os funcionários a um servilismo obrigatório em relação aos dirigentes”. Ficam claras as razões do caos administrativo a que estamos submetidos.

[7] A ausência de Estadística mergulha as formações sociais no caos e na indeterminação, no vórtice em que os talentos possam naufragar e não se constituir a possibilidade do saber libertário. É um círculo vicioso que as nações do centro estimulam e fomentam.

[8] Um dos temas que emerge da biologia moderna é o do surgimento da consciência e da cognição como processo vital da existência em geral.

[9] Karl Marx, em bosquejo do texto ‘’Teses sobre Feuerbach’’, escreve: “No direito moderno, os burgueses são forçados a dar à lei uma expressão geral”. Alain Badiou diz que o livro a República tem sido, para ele, uma obsessão. No meu caso, marxista ortodoxo, as Teses sobre Feuerbach tem sido uma espécie de Gestalt, de algo que prepara e anuncia e produz. Não é à-toa que tenho, até então, uma centena de páginas sobre o livro de 2 páginas.

A APLICAÇÃO DA LÓGICA AO CAMPO JURÍDICO

“A teoria pura é uma teoria do direito positivo.” Hans Kelsen

Hans Kelsen pretendia conferir autenticidade à ciência jurídica, conferindo-lhe autonomia de maneira que, no campo instituído, prevalecesse os critérios científicos internos e não a invocação de enunciados advindos de outros campos do conhecimento.

Pretende, ao excluir enunciados de outras áreas, erigir um saber próprio e especializado, voltado, precipuamente, à compreensão do objeto da ciência jurídica. Portanto, aqui emerge um dualismo, não entrevisto na inteireza, entre a ciência jurídica- conjunto de enunciado, e o objeto jurídico- a ordem jurídica positiva.

À ciência jurídica cabe estudar o direito válido em determinado tempo e espaço. Kelsen estabelece um conjunto de demarcações: separa a ciência jurídica do jusnaturalismo, da política do direito; enfatiza a diferenças entre questões morais e questões jurídicas.  As questões alinhadas não se confundem com metalinguagem ou a busca pela pureza abstrata da ciência jurídica, mas de estabelecer adequadamente o objeto da ciência jurídica.

Afirma Kelsen:

“A realidade jurídica, a existência específica do Direito, manifesta-se num fenômeno designado como positividade do direito. O objeto específico de uma ciência jurídica é o Direito positivo ou real, em contraposição a um Direito ideal, objetivo da política.[1]” 

Nesse entrocamento, a questão da definição do objeto da ciência jurídica, qual seja do direito positivo, sobrepaira crucial. Trata-se de uma questão complexa, pois, a constituição de uma ciência, qualquer que seja, demanda a existência de um objeto que lhe seja próprio.

Carlos Cossio leciona:

“A Teoria pura do direito não se refere, pois, diretamente ao direito, senão à ciência do direito; dizendo de outra maneira, a teoria pura se refere ao direito enquanto este é objeto de conhecimento científico[2]’’

O enunciado foi objeto de desinterpretação, para usar um termo do próprio Cossio, na medida em que se atribui à teoria pura do direito um sentido de metalinguagem. Na verdade, a teoria pura não é metalinguagem, pois, entre a ciência jurídica e a ordem jurídica não há homologia linguística. Trata-se de um erro primário, propagado como novidade epistemológica.

Leciona Lourival Vilanova:

“Falar sobre o Direito como sistema importa numa colocação em nível de metassistema. Em nível da linguagem do direito positivo não é possível: o Direito não usa a linguagem para falar sobre ele mesmo, como linguagem. Se o fizesse, poria sua linguagem como objeto mencionado, acerca do qual discorria. Seria um discurso sobre o discurso, um discurso de nível superior ao discurso-objeto.”[3]

Não há homologia entre a linguagem do direito positivo, de natureza diretiva, e a linguagem descritiva, com pretensão científica. Entre a descrição enunciativa e o discurso-objeto há diferenças de natureza linguística: a ciência jurídica descreve as normas jurídicas, isto é, o objeto que lhe é próprio.

Embora a teoria pura do direito seja ciência jurídica, a sua constituição remete não a si mesma, mas, necessariamente, ao objeto que lhe é pertinente. Para Kelsen, a teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo. Direito positivo é o direito válido numa comunidade política, isto é, o conjunto de normas criadas e produzidas pelos órgãos de produção e aplicação do direito.

A remissão à comunidade política correlaciona-se ao problema da unidade e da fundação da positividade. Não há que confundir positivismo e positividade. Positivismo é postura epistemológica que limita a ciência jurídica ao estudo do direito válido sem importações de critérios de outros campos do conhecimento. Positividade é a própria ordem jurídica enquanto manifestação política da comunidade.[4]

Kelsen estabelece inúmeras linhas de demarcação e, ao mesmo tempo, não deixa de debater aquilo que afasta do campo jurídico. Leciona:

“Abstrair da validade toda e qualquer norma de justiça, tanto da validade daquela que está em contradição com uma norma jurídica positiva como daquela que está em harmonia com uma norma jurídica positiva, ou seja, admitir que a validade de uma norma do direito positivo independe da validade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são consideradas como simultaneamente válidas- é justamente o princípio do positivismo jurídico’’[5]

A validade, então, é interna ao direito na medida em que o direito regula sua própria produção. A teoria autopoiética no sentido de que o direito cria a si mesmo numa circularidade autorreeflexiva já está em Kelsen.

A validade, pois, revela-se como critério que molda a autorreferência da ordem jurídica[6]. Demarca onde termina a política e onde inicia a ordem jurídica. A justiça, para Kelsen, não é tema irrelevante, mas, não integrando o âmbito da ciência jurídica, é objeto da teoria política do direito.

Na lição imarcescível de Lourival Vilanova:

“A validade é propriedade da forma lógica de relacionar, independente do conteúdo gramatical e conceptual das proposições constituintes. A validade independe da correção gramatical e da verdade empírica: há próprio da forma lógica’’ [7]

O objeto da ciência jurídica é a ordem jurídica positiva. Para apreensão da natureza do direito positivo, a dicotomia dever ser e ser é axial. Embora tenha afirmado que é um dado imediato da consciência, Kelsen explorou corretamente a dicotomia, a qual instaura um conjunto de corolários teoréticos[8].

Assertoa Kelsen:

“Ora, o conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significa que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem.” [9]

As normas jurídicas, enquanto manifestação do dever ser, são, portanto, atos de vontade. Integram a esfera humana do agir político-normativo. Inseridas no âmbito do deve ser, às normas jurídicas não se atribuem o predicado da verdade e da falsidade, mas sim da validade ou não validade. As normas em si não são verdadeiras nem falsas, mas valem ou não valem. A lógica formal tem incidência somente no campo da ciência jurídica cujos enunciados podem ser qualificados de verdadeiros ou falsos.

A lógica formal se aplicaria aos enunciados descritivos do direito e, na medida em que os enunciados descritivos da ciência jurídica se referem às normas jurídicas, linguagem prescritiva, de maneira indireta, a lógica incidiria no campo normativo do direito. O princípio da não-contradição incidiria diretamente no campo da ciência e, indiretamente, no campo da ordem jurídica: dois enunciados diferentes sobre a mesma norma, então, seriam contraditórios. É a posição de Kelsen[10].

De outro lado, Lourival Vilanova diferencia o sistema jurídico como sistema empírico e acaba admitindo a possibilidade de normas contraditórias e pertencentes ao mesmo sistema. Afirma:

“Assim sendo, nem a lei de não-contradição garante a consistência dos sistemas jurídicos positivos, nem a lei-de-terceiro-excluso garante a completude dos mesmos. É que os sistemas jurídicos são sistemas empíricos de normas de conduta, não sistemas de proposições cognoscentes da realidade. Resta tão-só a unidade, que é conferida pelo comum fundamento-validade de todas as normas.” [11]

Inserto nesse diálogo entre gigantes, inserimos um enclave teórico ao afirmar que o sistema jurídico não é um dado, pronto e acabado, mas um sistema de significados à espera de formalização no momento de interpretação e aplicação do direito, muito embora o quadro analógico exista na condição de base intransponível e incontornável.[12] 

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1988, prefácio.

[2] COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944, p. 170.

[3] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses. 3. ed. 2005, p. 157-8.

[4] Para Kelsen, normativismo e positivismo são sinônimos.

[5] KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 11.

[6] Sobre a importância da validade não apenas como critério epistemológico, mas também como categoria topográfica demarcadora do que é jurídico e do que não é jurídico, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 66 a 70.

[7] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses. 3. ed. 2005, p. 46.

[8] Sobre um dos corolários da dicotomia ser e dever ser, ver : NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020, p. 34-5.

[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p. 5.

[10] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p. 228 a 232.

[11] Ob. Cit. P. 284.

[12] Ver:NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 65 a 86.

SOBRE O TEMA DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

A Pontes de Miranda, jurista maior

O diálogo tenso entre Carlos Cossio e Hans Kelsen deixou muitas questões jurídicas, filosóficas ou dogmáticas, em aberto, especialmente, pela natureza de um embate que, segundo um dos protagonistas, era geométrico.

Do balanço que podemos empreender avulta axial a importância do tema do conceito do direito e as inflexões no plano das categorias centrais da dogmática jurídica.

Carlos Cossio vislumbra o direito como liberdade fenomenológica, vida plenária, vida objetivada e vida vivente, e, articulando uma redução eidética, afirma o engendramento, nesse contexto, de obrigações, faculdades, ilícitos e sanções.[1] É dentro desse horizonte teórico que denominamos nossa teoria de teoria protonormativa do direito na medida em que cabe ao direito, constituído ou legislado, estabelecer, originariamente, os liames e o vínculos que imantam as relações jurídico-sociais.

Seguindo Andrés Ortiz-Osés, na metafísica aristotélica, protofilosofia significa a filosofia primeira em que se imbricam o sensível e o inteligível. No caso do direito assiste razão à Cossio ao defender que a essência da vida humana é a liberdade. A constituição, portanto, na teoria protonormativa da constituição existe, primária e primacialmente, para definir e erigir as liberdades democráticas, desde à assunção da nacionalidade à cidadania, seja do sufrágio, universal e igualitários, seja dos direitos e garantias fundamentais.

A protonormatividade da constituição tem vários efeitos e regula o conteúdo da estrutura jurídica de maneira que a legislação ulterior não pode vulnerar ou diminuir a abrangência das liberdades democráticas. Há, portanto, uma hierarquia interna que se verifica, no âmbito constitucional, na distinção entre lei complementar e lei ordinária. Os conteúdos contrários, especialmente, ao regime de liberdades democráticas, direitos e garantias fundamentais, devem ser expurgados mediante os mais variados mecanismos disponíveis à sociedade e ao estado.

Afirma José Afonso da Silva:

“Mas a constituição rígida, por seu caráter fundamentalmente sintético, não pode descer a pormenores, a assuntos tidos como de menor relevo, ou que devem constituir apenas desdobramentos de normas e princípios constitucionais. Não pode, nem deve,  regular todos os assuntos, todas as instituições; por isso, deixa muitos deles às leis ordinárias, ou complementares’’[2]

O excerto merece inúmeras considerações críticas consoante aos axiomas e aos postulados da teoria protonormativa da constituição. Olvidando o instigante tema da lacuna do direito que embebe o direito numa concepção protonormativa, salientamos que a primazia da constituição não decorre da rigidez constitucional, mas deflui do primado das liberdades constitucionais na medida em que a existência humana e o direito, para citar Carlos Cossio, supõem a liberdade, ou, na linguagem dialética, a vontade livre.

O próprio Kelsen, nas antinomias que informam sua teoria, defende a constituição como norma de fundo e , portanto, acaba defendendo, ao contrário do que se diz, uma teoria material da Constituição.[3]

Outrossim, determinadas constituições, incluída a atual constituição, deferem à lei complementar as matérias mais importantes da constituição do estado e da sociedade, tendo preeminência sobre a legislação ordinária, que, via de regra, se reservam matérias menos importantes.

A legalidade emerge enquanto uma meta-regra inerente à separação dos poderes e que conforma o atuar estatal e da sociedade quando no exercício do poder normativo, incluídos os atos administrativos, de quaisquer poderes, já que se rechaça a doutrina italiana dos atos administrativos, no ato de regular e conferir especificidade à constituição e à lei.

Durante muito tempo, o debate constitucional emaranhou-se, embora em termos mais precários, na questão do dever-ser e do ser e num conjunto de classificações sobre as normas que emergiram. Na tradição norte-americana, as normas constitucionais passaram a ser divididas em normas auto-aplicáveis (já executáveis) e normas não auto-aplicáveis (não executáveis).

Dentro das categorias emergentes na dogmática jurídica, ressaltam-se: existência, vigência, eficácia, incidência. O termo aplicação da norma é mais complexo porque envolve a mediação institucional e social. Portanto, afirmamos que a doutrina norte-americana padece de fragilidade teórica uma vez que a toda norma em si depende de um conjunto de procedimentos, sociais ou orgânicos, para ser considerada aplicada. Por exemplo, na tradição realista do direito, vigência tem a ver com direito aplicado nos tribunais e não o cristalizado nos códigos. A aplicação da norma não se confunde com a norma em si, já enfatizava Carlos Cossio[4].

No Brasil, passou-se a usar uma junção entre o termo eficácia e aplicabilidade. José Afonso da Silva, em livro propalado, defende a seguinte classificação: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral; b) normas de eficácia contida e aplicabilidade direta, imediata, mas não integral e c) normas de eficácia limitada ou reduzida, programáticas ou de legislação. Alguns autores inserem, no âmbito das normas de eficácia limitada, as normas de natureza programáticas ou de princípio institutivo.

O Professor paulista assim define as normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta:

“normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto.” [5]

Já as normas de eficácia contida, incidem imediatamente, mas se preveem mecanismo de manter, segundo o autor, a eficácia contida em certos limites.

As normas de eficácia limitada, programáticas ou de legislação, são aquelas cuja executoriedade depende de legislação posterior.

No âmbito da ciência dogmática do direito, distingue-se validade e eficácia. Para Kelsen, a validade é a existência específica da norma e a eficácia o fato de a norma ser obedecida. Nas antinomias que imbuíram a teoria pura, embora tenha, inicialmente, rechaçado a categoria da eficácia, porque inserida no plano do ser e não do dever ser, assim desdobrou seu pensamento:

“Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que- costuma dizer-se- não é eficaz em uma certa medida, não será considerada norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição de vigência. No entanto, deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma”[6]

A nosso ver, o tema da eficácia tem correlação com o tema das condições de aplicação de norma que extrapolam a dimensão de validade e contornam o tema dos mecanismos de mediação, sociais ou institucionais, necessários à concretização da ordem jurídica.

A própria noção de sanção mergulha na ambiguidade assinalada na medida em que é previsão hipotética e realização procedimental. A ambiguidade aqui exposta revela que, na falta de mecanismos idôneos de mediação, a própria normatividade se esgarça e o direito deixa de ser garantia.

Em obra recente, assinalamos, lembrando a noção crucial de componente hermenêutico, da lavra do saudoso amigo Nelson Saldanha:

“A visão sociomórfica do direito, ao confundir prescrição e ciência, oculta as questões que se revelam centrais: 1) o direito prescrito para se realizar, escorreitamente, necessita ser formalizado, isto é, necessita de uma ciência e de uma técnica; 2) que não existe ordem em si, já plenamente desenvolvida, incidindo imediatamente e conformando, automaticamente, a realidade social. Há, conforme desvelou originariamente Nelson Saldanha, o componente hermenêutico. Ou seja: a norma traz em seu germe vários sentidos, configurando-se não como dado estanque e consumado, mas como campo hermenêutico. Nesse sentido, considerando a origem da hermenêutica, a ordem é um campo aberto, mas limitado, onde acontece os conflitos de interpretação.” [7]

Nesse sentido, o tema da aplicação, na linha que desenvolvemos, é tema que interessa, concomitantemente, à ciência jurídica e à teoria política do direito na medida em que o direito deve ter, para citar Stucka, objeto, isto é, referibilidade sociológica, mas que não serve para a classificação das normas constitucionais.

Invocando Pontes de Miranda ao distinguir entre a incidência e o atendimento da norma[8]. A norma sempre incide; já o atendimento depende do grau de civilização do país.

Em maneira embrionária e lacônica, podemos classificar as normas constitucionais em normas de incidência atual, quando o âmbito de validade e o objeto da norma já estão constituídos e normas constitucionais de incidência futura, na medida em que dependem de atos normativos gerais e abstratos ou atos normativos de natureza político-social.

Na verdade, os exemplos de normas de eficácia contida são exemplos em que ainda não se constitui o objeto da norma e que não é a eficácia que se contém, mas o objeto que não se constitui. A normas de incidência futura dependem, portanto, da concretude da separação dos poderes e da capacidade político-econômica em realizar os objetivos abstratos da constituição.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944.

[2] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 42.

[3] Luigi Ferrajoli, leitor assíduo de preleções dos clássicos jurídicos, usa incorretamente o termo aporia. Na minha terminologia, haurida em Kant, uso o termo antinomia para referir aos dualismos de Kelsen.

[4] Ver Obra Citada.

[5] Ver Obra Citada, página 82.

[6] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p.12.

[7] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, p. 37.

[8] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado: Parte Geral, Tomo I, Introdução:  pessoas jurídicas e jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1970, especialmente o capítulo A regra jurídica e o suporte fático.

SOBRE PRESCRIÇÃO PENAL E PUNIBILIDADE

“O direito se define pelas regras da semiótica’’, Santiago Nino

Nas discussões dogmáticas sobre as categorias jurídicas centrais da teoria do delito, verifica-se que a discussão sobre a punibilidade foi olvidada e obumbrada por uma chusma de categorias que, envolta em mistérios feitos para diletantes de si mesmos, desarticulam o campo da dogmática penal para tornar confusa a interpretação e aplicação do direito penal.

Eros Grau afirma, erroneamente, que a intepretação e a aplicação do direito são a mesma coisa. Interpretar é retirar sentidos de um texto. Aplicar é interpretar diante de um conjunto fático que necessita ser formalizado e qualificado juridicamente. São momentos diferentes de uma mesma arte.

Afirma Kelsen:

“o direito a aplicar é uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”[1]

Ocorre que a qualificação jurídica depende do esquema normativo necessário e elementar à construção da jurisprudência ou do precedente.

A dogmática penal costuma definir o crime como fato típico, antijurídico e culpável. Desde Kelsen, na medida em que o ilícito é criação jurídica, resulta absurdo chamar um fato- que contraria ao conjunto de normas- de antijurídico. Nesse contexto, há decretar o fim da expressão antijurídico no direito penal.

A invocação da expressão injusto penal mais confunde do que esclarece. Analisando o conjunto, parte da dogmática penal afirma que o crime é fato típico, ilícito e culpável.

Eugenio Raul Zaffaroni e Pierangeli defendem o conceito de tipicidade conglobante. Assertoam:

“Isto nos indica que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa.” [2]

Norberto Bobbio, ao criticar a teoria inerente ao tema da completude do ordenamento referente à teoria do espaço vazio, afirma que:  ” Parece que a teoria do espaço jurídico vazio nasce da falsa identificação do jurídico com o obrigatório’’[3]

Pensamos que a teoria conglobante fica prisioneira do modal proibido. O direito é um conjunto de proibições, obrigações, permissões e atribuições de competências.

O que se desvela essencial para o descortinar do horizonte necessário à visada adequada da questão é ver que a ordem jurídica, em seus mais variados níveis, não pode ser insulada na ideia de tipicidade conglobante. Primeiro: o direito se realiza de forma típica. Segundo, afirmar que uma forma de realização inerente a um fenômeno se expande a outros níveis é redundante; terceiro, aferir os níveis adjudicados pela dogmática penal ao fato criminoso como conglobante nada tem que ver com tipicidade; quarto, os níveis estabelecidos estão erroneamente estabelecidos; quinto: estando erroneamente estabelecidos, é preciso suprimir os errôneos e encartar o que podemos chamar, com base em Guerreiro Ramos, teoria protonormativa do delito.

Por enquanto, podemos ressaltar que é necessário incluir, na linha de Basileu Garcia, a punibilidade. O direito penal, ao final, é a supressão de uma faculdade natural, isto é, a liberdade de ir e vir, e deve ser cientificamente válido para coarctar o que, segundo a natureza das coisas, é atributo ineliminável do ser humano.

Incide sobre a questão examinada os institutos da prescrição e da decadência da pretensão punitiva, estatal ou não. O conceito de prescrição penal envolve a inércia do titular da pretensão punitiva e o transcurso do tempo, perecendo a pretensão.

Para Clóvis Bevilácqua a “prescrição é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não-uso delas, durante um determinado espaço de tempo.”

A prescrição da pretensão punitiva está inserida no aspecto temporal que emoldura a norma jurídica penal. Na medida em que o aspecto temporal é quantitativo, há que verificar as homologias do domínio jurídico da punibilidade.

 Sem adentrar nos méritos das peculiaridades da situação específica, realizando, de acordo com Lourival Vilanova, a formalização lógica, citemos excerto da sentença, que configura verdadeira jurisprudência, prolatada pela Ilustre magistrada Rafaele Curvelo Guedes dos Anjos, integrante dos quadros efetivos do Tribunal de Justiça da Bahia, a saber:

“Compulsando-se os autos, verifica-se que a pretensão punitiva do Estado está prescrita em relação aos delitos dos crimes contra a fauna (art. 29 da Lei 9.605/98), que tem pena abstrata de 06 meses a 01 ano, prescrevendo em 04 anos, e do crime de posse de droga para consumo (art. 28 da Lei 11.343/06), tendo em vista que a imposição e a execução das penas impostas aos usuários e dependentes de drogas, prescrevem em 02 (dois) anos, conforme art. 30 da Lei 11.343/06.

Em relação ao delito de posse de arma de fogo (art. 12 da Lei 10.826/03), a pretensão punitiva do Estado está antecipadamente prescrita, vez que esse crime tem pena abstrata de 01 a 03 anos, prescrevendo em 08 anos. Todavia, dada às circunstâncias do caso e a primariedade técnica das partes rés, em caso de aplicação de pena, esta não seria superior a 02 (dois) anos. Para essa pena in concreto, a prescrição ocorreria em 04 (quatro) anos, na forma do art. 109, do CP.

Logo, considerando que entre a data do recebimento da denúncia e hoje passaram-se quase 06 anos e não houve outra causa interruptiva, verifica-se lamentavelmente a ocorrência da prescrição antecipada.

Não obstante à ausência de previsão legal e existência de argumentos contrários à aplicação do instituto, vê-se que a aplicabilidade da prescrição em perspectiva apoia-se no princípio da economia processual, da instrumentalidade das formas e da celeridade da justiça.”

A intepretação que se apresenta, ao romper os lugares comuns, revela que o tema da prescrição é intrínseco ao atributo da punibilidade, e, na lógica formal que transcorre a decisão, na medida em que diferencia corretamente os institutos incidentes, tem efeitos políticos libertários e mostra que a linguagem, ao transformar o real, pode transformar os espaços e ampliar a ampliar a liberdade[4]. Enfim, é uma jurisprudência que, na exegese adequada, na articulação correta da ponderação no sentido de Recaséns Siches, revela que o tempo da prescrição está encartado no predicado punibilidade enquanto característica central da conduta ilícita, e a liberdade de muitos já tarda.

Hoje, é uma questão de uso público da razão e, lembrando Pontes de Miranda, o homem é o que, porque sabe mais do que os outros animais, corrigir-se.[5]


[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. 2000.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 9. ed. rev. e atual. São Paulo (SP): Revista dos Tribunais, 2011.

[3] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, página 272.

[4] Sobre a importância da interpretação nas lutas pelos sentidos e pela liberdade., ver a obra: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Do discurso retórico da legalidade à construção societária da legalidade. Curitiba: CRV Editora, 2024, Ebook.

[5] MIRANDA, Pontes de. Tratado da Ação Rescisória: das sentenças e de outras decisões. Campinas: 1998.

O filósofo nas solidões da colônia (sublimes sublimações)

“É necessário pensar em termos de resistência, na pedra em que se arrojam todos os que reivindicam a livre criação e perguntar de quem é essa pedra tal qual a pedra de Sísifo levando montanha acima o que simbolizaria o trabalho inútil e sem esperança, mas, no furor e no silêncio de tantos anos, a pedra simboliza a antítese entre a criação e o poder; a pedra é a do poder na medida em que o corpo envelhece, o rosto em estertor, as barbas alevantando-se do húmus silente das coisas, os dente armados combalidos e em convalescência, os instantes envenenados pelo ressentimento, pela inveja, pela poder sem dique, mas a pedra é de quem? De quem é essa pedra que mostrou o fim de geração profunda e que pensava universalmente o Brasil? De quem é essa pedra que revelou a tirania instituída? De quem é esta pedra em que algo de futuro relampeja e reluz? Segundo Hegel, é nas pedras que o espírito se suprassume. A pedra do espírito em combustão onde o sonho possa tornar-se o mar caudaloso onde os peixes migram, onde se aplaca a sede, onde renasça a humanidade em potência, criação e infinito. A pedra dos que resistem, dos que não desertaram, dos que são e permanecem.”

O filósofo nas solidões da colônia (sublimes sublimações)

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.

“Democracia está ameaçada em todo o mundo”, diz João Cezar de Castro Rocha.

BR 247 – “Se não reagirmos, em 15 anos não haverá mais democracia no mundo”, alertou o historiador e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), João Cezar de Castro Rocha, durante uma entrevista para o podcast De Fato, do Brasil de Fato RS. Rocha discutiu os perigos da ascensão da extrema direita e sua influência crescente na política global.

Em sua análise, Rocha destacou a disseminação da teologia do domínio, uma ideologia que interpreta literalmente passagens bíblicas para justificar um projeto político de expansão e controle. Ele explicou: “Na teologia do domínio, [o versículo] ‘crescei e multiplicai-vos’ é ampliado para significar a expansão da base neopentecostal na sociedade, visando, eventualmente, o domínio político.”

Além disso, Rocha apontou a manipulação da informação pela midiosfera extremista como uma estratégia preocupante. Ele observou que essa manipulação, baseada em uma mistura de erro, ilusão e apropriação seletiva do método científico, tem sido eficaz na disseminação de ilusões coletivas e na distorção da realidade política.

Com base em sua extensa pesquisa sobre o bolsonarismo e movimentos similares, Rocha ressaltou a urgência de uma reação. Ele baseia suas preocupações em seu livro “Bolsonarismo: Da guerra cultural ao terrorismo doméstico – Retórica do ódio e dissonância cognitiva coletiva”, publicado em 2023.

“Não verás país nenhum”, disse Rocha, citando Loyola Brandão, enquanto acrescentava: “Se não reagirmos em 10, 15 anos não veremos democracia nenhuma no mundo.”

URNA ELETRÔNICA E VERIFICAÇÃO COMUNITÁRIA DA FORMAÇÃO DO PODER COMO DECORRÊNCIA DO DIREITO AO SUFRÁGIO

Na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5889- DF se declinou a oposição do voto impresso com o sigilo do voto, expungindo-se do ordenamento a norma que consignava o voto impresso, invocando-se inúmeros princípios jurídicos. Sustentou-se a oposição entre o voto impresso e princípios jurídicos da economicidade e da eficiência.

Confirmo vimos salientado desde o livro As Antinomias do Direito na Modernidade Periférica, a interpretação do direito ocorre em três níveis complementares e articulados, a saber: o nível textual, intertextual e histórico.

Nesse contexto, em sendo o direito um fenômeno normativo, o texto é o parâmetro indeclinável para a interpretação. Por isso, temos, invocando a estética da recepção, salientado que a questão central do direito hoje é: como um texto estrutura a própria leitura?

Isso porque o intérprete, ainda que seja um momento necessário para o desvelamento dos sentidos, não pode desvirtuar os sentidos comunitários produzidos pela comunidade política.

Diante da recepção eufórica, na dogmática e na prática interpretativa, da teoria dos princípios, poucas foram as vozes que se abalançaram a questionar o óbvio: qual é a normatividade dos princípios? Que procedimentos metodológicos podem ser invocados para confirmar, cientificamente, a dedução normativa dos princípios?

Ricardo Guastini, jurista genial, em Lezioni sul linguaggio giuridico, em capítulo dedicado à obra de Dworkin, traz questões demolidoras da juridicidade dos princípios, revelando o caráter a-científico do uso dos princípios na interpretação do direito.

Ao articular que a teoria de Dworkin é a teoria da completude do ordenamento com a invocação dos princípios, registra que Dworkin deveria argumentar em duas frentes: 1) argumentar em favor de normas implícitas; 2) declinar qual o critério de validade de uma norma implícita.

As questões até, então, não foram respondidas, desvelando-se que a invocação de princípios na prática interpretativa resulta inadequada do ponto de vista metodológico.

Tendo em vista os níveis de interpretação, que desenvolvo no âmbito da Hermenêutica Jurídica Analógica, verifica-se que, no Brasil, os princípios tem sido inserido no âmbito do nível estrutural para produzir falsas antinomias e a revogação de normas hígidas constitucionalmente. Ou seja: os princípios são invocados para revogar normas.

Na medida em que não há dedução normativa dos princípios, invocá-los carece de metodologia e significa a corrosão da normatividade do direito.

No caso da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5889- DF, não houve a dedução dos princípios e, portanto, a decisão demonstra a ausência total de normatividade e é caso notório de apropriação privada da linguagem, que se verifica quando o intérprete atribui aos textos normativos significados que não guardam normatividade.

A ausência de normatividade da decisão tem efeitos políticos na medida em que, na ausência do voto impresso, fere-se cláusula pétrea- o voto direto e individual- e subtrai o processo eleitoral da verificação comunitária.

Se o cidadão não tem condições de aferir o voto, a comunidade política não detém as condições de verificar o resultado das eleições, o sufrágio perde a substância, a democracia bruxuleia.

Podemos afirmar que as eleições no Brasil não têm verificação comunitária de maneira que o sufrágio não é suscetível de aferição coletiva, e, portanto, a formação do poder é maculada no nascedouro.

Diretas já. Viva Sócrates Brasileiro.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.

A NECESSIDADE EPSITEMOLÓGICO-POLÍTICA DE ENTENDER AS FORMAÇÕES SOCIAIS DA AMÉRICA LATINA

Nas formações sociais da América Latina, as sobrecodificações teóricas estrangeiras tem efeitos políticos imediatos, que merecem ser analisados. O descortinar de teorias dotadas de aparato categorial correto, no contexto da América Latina, tem efeitos tão profundos que tornam o próprio teórico um momento de contradição profunda da própria formação a que pertence. Nesse sentido, há uma censura implícita aos que se abalançam a buscar pensar as formações da América Latina de forma autônoma e livre das injunções de repetir o que é produzido alhures. As formações sociais da América Latina, por injunção da colonialidade do poder, para funcionar do modo totalitário com que funciona, precisa reprimir o pensamento autêntico.

Conforme salientado por Alberto Guerreiro Ramos e Aníbal Quijano, a heterogeneidade estrutural das formações da América Latina exige uma inflexão teórica dramática, interna e externamente. Internamente, por significar a compreensão do modo como a sociedade se forma, como ganha compleição e, externamente, pelo confronto necessário com a saber produzido em outros contextos.   E, na medida em que se forjam categorias e compreensões no contexto da América Latina, projeta-se  efeito explicativo sobre as demais formações sociais e se supera o pensamento que se dizia hegemônico. Se a América Latina tinha somente a sociologia consular, para citar Guerreiro Ramos, devotada à repetição acrítica e mal alinhada, hoje temos as primícias de novas epistemologias que se ombreiam e superam as epistemologias norte-americanas e europeias.

Vejamos o caso da ciência política. Hoje, é corrente que o Brasil é um país de matiz democrático. A palavra produz sortilégios retóricos e, ao criar solidariedades epidérmicas, produz a percepção da realidade. O trabalho inicial da crítica é não se deixar levar por sortilégios verbais e verificar o que é operante na realidade. Como se formou e se forma o Brasil? O Brasil, desde a origem, é uma sociedade fraturada em que, de um lado, as populações estão em busca de constituir uma forma autônoma de vida e, de outro, a construção de um Estado Colonial que, extrativista de tributos, procura reproduzir a si mesmo independente dos efeitos e dos custos sócio-econômicos que possa provocar. Nesse contexto, o Estado se torna absolutamente repressor e não cria as condições para produzir, inclusive capital. O Brasil não é uma formação democrática na medida em que necessita reprimir o potencial político das massas. Os partidos, sem exceção, cumprem a missão de reprimir a possibilidade política e estigmatizar pessoas probas. Os partidos, que se arrogam o título de esquerda, são peritos em estigmatizar e reproduzem as mazelas do Estado Colonial. Não obstante, a luta pela vida engendra formas de organizações políticas, ainda que não vinculadas a partidos, uma vez que a estrutura partidária se torna burlesca, parasitária e corrupta,  de maneira que o Estado Colonial existe para produzir a dispersão organizativa das massas.

Na minha terminologia, denomino essas formações como sociedades fraturadas com conurbações transcendentais, isto é, estruturas alçadas acima para reprimir as possibilidades de questionamento da distribuição colonial dos bens. Nesse contexto, categorias como hegemonia, legitimidade, arrefecem de sentido. É o caso do Brasil, dos EUA e da China. Os poderes agem arbitrariamente sem o uso público da razão. Não obstante, na medida em que se fundam a epistemologia nova e as novas formas de organização, os poderes coloniais entram em profunda crise e podem simplesmente perder a funcionalidade. Como só enxergam egoisticamente a si talvez não vejam as primícias do novo.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.

A CRISE DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A QUESTÃO FULCRAL DAS FONTES CRIADORAS DE VALOR

Ao Camarada Stálin

Marx enuncia que uma formação social entra em crise quando o modo de produção não corresponde mais ao desenvolvimento das forças produtivas. No caso do modo de produção capitalista, o enunciado de Marx entra numa espécie de conurbação, pois, ainda que na sua gênese o capitalismo tenha desenvolvimento de forma inaugural e exponencial as forças produtivas, vemos, a olhos vistos, uma crise geral do conhecimento que se manifesta de forma plena no plano da crise da produção.

Fizemos a distinção, ainda em crisálida na teoria de Marx, entre valor e fontes criadoras de valor. Na medida em que a circulação de mercadorias não explica o surgimento do valor, Marx verbaliza que são duas as forças criadoras de valor: natureza e trabalho vivo. Em sendo Aristóteles uma das fontes axiais do pensamento dialético, podemos averbar que são seis as fontes criadoras de valor: natureza, trabalho vivo, ciência, tecnologia, técnica e arte.

Hoje, a crise se entronca na crise do pensamento científico e da ausência de tecnologias voltadas não só ao incremento da produção, mas à produção da produção. De forma clara: a repressão do pensamento engendrou uma crise da tecnologia e, por corolário, da produção. O que pesa sobre o modo de produção capitalista é que não produz mais.

Gramsci enuncia, de forma genial, que a tecnologia, mesmo que oriundas das injunções militares, acabavam por se destacar, expandindo-se para outras áreas, sobremodo, à produção. Por isso, em razão do descompasso preludiado, as grandes potências possuem o monopólio de tecnologias de espionagem e não as voltadas à produção. Digamos de forma clara: a crise do capitalismo é a crise da produção. E por qual razão? O baixo desenvolvimento científico, o qual  se revela claramente na ênfase da lógica do prestígio. Em épocas de desenvolvimento científico, o conhecimento é operante e pragmático, isto é, voltado à resolução dos problemas que emergem da vida em coletividade e não show business.

Nesse sentido questão central foi esboçada por Alberto Guerreiro Ramos ao enunciar que todas as questões passam pela teoria das organizações e pela redução tecnológica.

A irracionalidade do capitalismo contemporâneo não resolve a questão. O fato de o capitalismo financeiro tentar se autonomizar em face da produção leva, claramente, à implosão do próprio sistema financeiro e demonstra mais claramente que a atual crise do capitalismo. Como reprimiu as forças produtivas não produz mais.

O problema do modo de produção capitalista é um problema de produção. Um modo de produção quando não mais produz não pode ser chamado de modo de produção. Por isso, sem ironia, podemos dizer que o capitalismo não é mais um modo de produção e coloca em risco a humanidade.  

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.