CPI do Genocídio: A tropa em choque do Planalto
Em funcionamento desde abril, a comissão parlamentar de inquérito criada no Senado Federal para investigar a atuação do Executivo no enfrentamento da pandemia e o uso de recursos federais pelos estados e municípios – provocantemente alcunhada de CPI do Genocídio pelos opositores do desgoverno desastroso do militar insubordinado – consolidou até agora a irrefutável acusação de que o governo de Bolsonaro agiu deliberadamente para comprovar a tese da Imunização de Rebanho aprovada pelo seu Ministério Paralelo da Saúde, composto por seu filho, o Vereador Federal Carlos Bolsonaro, alguns médicos charlatães e prepostos tresloucados que creem que a terra é plana e que a Ciência é uma invenção globalista para doutrinação marxista do mundo e a serviço da esquerda para derrubar o governo do Capitão Tragédia por ele ser “honesto, competente, conservador, cristão e hétero”.
Tudo isso é reafirmado pelo gado bolsonarista, embora se avolumem as denúncias de corrupção na sua família e no governo, a máquina estatal tenha sido aparelhada por militares inoperantes que a paralisaram quase que completamente, o presidente tente convencer os incautos que é bom conservador também quem casa várias vezes, que é cristão utilizar o povo brasileiro como cobaia no experimento macabro da Imunização de Rebanho para satisfazer sua Pulsão de Morte e, por fim, que macho de verdade tem de ser homofóbico ainda que se dirija sempre aos amigos machos com expressões conotativas de relacionamentos íntimos como ‘estar namorando, estar noivo, estar casando’ .
Voltando à CPI, esta já tem elementos suficientes, advindos dos depoimentos e dos documentos amealhados, que comprovam as seguintes irregularidades na condução da Pandemia:
- Existência no governo Ministério Paralelo da Saúde para aconselhamento na gestão da pandemia;
- Tentativa de mudar a bula da cloroquina, medicamento sem eficácia contra a Covid, mas defendido pelo presidente;
- Ausência de resposta do governo federal às ofertas de venda de vacina da Pfizer por meses a fio;
- Recusa das ofertas da Coronavac pelo governo, com suspensão das negociações após críticas de Bolsonaro;
- Ciência do Ministério da Saúde, desde o dia 7 de janeiro sobre a falta de oxigênio no Amazonas, antes do que havia sido informado pela pasta;
- Inação do governo federal ao descartar a possibilidade de intervenção federal na saúde no Amazonas.
Então, explicitadas as premissas que nortearão o relatório que apontará a culpa do Executivo Federal na morte de mais de meio milhão de brasileiro até agora, façamos o devido recorte das defesas apresentadas. Antes, porém, gostaria de advertir que me utilizei do termo “defesa” apenas pelo amor ao debate, pois a ação deliberada do governo pelo experimentalismo nefasto da Imunização de Rebanho é tão clarividente pelas práticas adotadas de propaganda oficial de medicamentos inúteis, mas com fortíssimo efeito placebo, induzindo à população a agir irresponsavelmente ao negligenciar o uso de máscara, o distanciamento social e as outras medidas não farmacológicas; da recusa reiterada em adquirir os imunizantes ofertados pelas farmacêuticas renomadas como a Pfizer e pela promoção cotidiana de aglomerações com intuito indisfarçável de colaborar para aumentar o contágio do Coronavírus, estimulando de crianças a idosos abandonarem as recomendações da Ciência e da Organização Mundial de Saúde, somada à detração da honra de pessoas por meio das redes sociais, como ocorreu recentemente com a doutora Mayra Pinheiro, chamada de Capitã cloroquina, por ter festejado a vacina que tomou ou com a senadora bolsonarista Soraya Thronicke, por ter se assustado com o assombroso número de 507 mil vítimas da COVID 19 e do menosprezo de um governo sádico.
Como vemos, tudo isso torna indefensável o mandatário do país. Todavia, ainda assim, consideremos as caricaturas empunhadas pela chamada Tropa de Choque na CPI do Genocídio, encenadas pelos senadores canastrões adeptos da Velha Política, aquela que Bolsonaro pretendia abolir do cenário nacional e que hoje é sua tábua de salvação, a quem o governo tem recorrido por ajuda paga á custa do erário, ou seja, do dinheiro do “Cidadão de Bem” pagador de impostos. Deste conglomerado chamado Centrão é o deputado Ricardo Barros, líder do Governo na Câmara e denunciado na CPI pelos irmãos Miranda como sendo o articulador do esquema de corrupção que se insinua no Ministério da Saúde.
Primeiramente, como costumava dizer certo senador piauiense, “atentai bem” para o intrépido senador gaúcho Luís Carlos Heinze, a fazer o papel de ventríloquo desatinado, balindo incessantemente seu discurso mal ajambrado sobre as vidas salvas pelo famigerado Tratamento Precoce com drogas inúteis, cuja defesa de inexistente eficácia é feita ainda, segundo ele, por personagens esdrúxulos como os charlatães Didier Raoult e Vladimir Zelenko, além de uma cepa de médicos brasileiros aloprados, como certo virologista que não acredita em vacinas. E nem pretendo suscitar o repetido nome de determinada atriz pornô, que vem ganhando status de obsessão nas intervenções do senador durante os debates na CPI.
Seguindo os passos do senador Heinze, vem o nortista Eduardo Girão com seu falso dilema sobre a conduta de seu chefe, tentando convencer o público e a si mesmo de que é um árduo defensor da Ciência, apesar da defesa intransigente da liberdade de Bolsonaro fazer o que bem entender, ofender quem quiser, desrespeitar as instituições e atentar diariamente contra a Democracia e os princípios humanitários. Também no batalhão a serviço do Planalto têm os senadores Fernando Bezerra Coelho e Ciro Nogueira a comparecem esporadicamente tão somente para entoar o outro balido da propaganda oficial, tal qual as ovelhas da distópica Revolução dos Bichos de George Orwell, insistindo na tecla de que a CPI não passa de narrativa política, como se pudessem negar que qualquer julgamento de crimes de responsabilidade do Presidente da República é sempre jogo político, a exemplo do impeachment, no qual a única coisa que evita a queda do governante é a fidelidade canina de mais de um terço dos parlamentares do Congresso Nacional.
Por último, já que as tentativas de tumultuar os trabalhos da CPI pelo senador Flávio Bolsonaro têm sido frustradas, vejamos o senador do Estado de Rondônia, Marcos Rogério, advogado de fala rebuscada, gestual pomposo, modelo de vestimenta enfeitado, sobrancelhas bem delineadas, gravatas escolhidas com esmero, penteado impecável, enfim, um verdadeiro metrossexual, cuja acepção nos melhores dicionários afirma ser aquele homem moderno, narcisista, que gasta tempo e somas consideráveis de dinheiro com a aparência e seu estilo de vida. Ele, no afã da busca pela visibilidade que lhe assegure a pretensa candidatura ao governo de seu estado, costuma destrinchar as mais estapafúrdias teses jurídicas, arrimadas num bolodório recheado de sentenças falaciosas de fazer inveja ao inesquecível Odorico Paraguaçú, durante os “festejamentos de seu empossório” no cargo de prefeito de Sucupira.
O estrepitoso, senador rondoniense, e porque não dizer, ao modo peculiar do supracitado gestor municipal, o pavoneado doutor das jurisprudências de improviso, acredita piamente no parlapatório enviesado para dizer ao cidadão brasileiro que, subtraído o meio milhão de mortos, a CPI do Genocídio não passa de “obra da esquerda comunista, marronzista e badernenta”, fazendo jus, portanto, ao apelido público de Rolando Lero, saudoso personagem do ator de verdade Rogério Cardoso, a ponto de ser admoestado constantemente pelo presidente da comissão, senador Omar Aziz.
Isto posto, se alguém foi esquecido nessa real Tropa em Choque do governo Bolsonaro na CPI do Genocídio, é porque sua citação se tornara dispensável diante dos nomes aludidos. E embora não se deva olvidar a contribuição enorme que alguns bolsonaristas têm dado à elucidação dos crimes cometidos pelo governo federal, seja por meio de confissões em depoimentos ou da entrega de evidências materiais que depõem contra a conduta do presidente, como foi com a revelação da carta da Pfizer pelo Fabio Wajngarten e a menção ao Gabinete das Sombras, os depoentes bolsonaristas têm mentido como nunca visto antes, mas como ele próprios costumam pregar: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
Por: Adão Lima de Souza
UMA NOTA SOBRE A QUESTÃO DO MARCO TEMPORAL E A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS DOS POVOS ORIGINÁRIOS
Ao humanista DALMO DALLARI
A interpretação do direito, na modernidade periférica, corre o risco de ser sobrecodificada pela colonialidade do poder que, no plano da linguagem, envolve a possibilidade de colonização dos sentidos comunitários e objetivos dos textos pelas representações subjetivas e ideológicas dos intérpretes. No contexto em que a colonialidade do poder se apresenta subjacente às práticas interpretativas, pode acontecer a distorção da analítica normativa com o objetivo de revestir de aparente legalidade interpretações absurdas que constituem atentados graves à ordem jurídica, sempre articulados para promover os interesses das classes dominantes em detrimento do sentido textual, intertextual e histórico do direito vigente.
Quanto à analítica jurídica, o jusfilósofo Lourival Vilanova, de forma profícua, estabeleceu que toda normas tem quatro âmbitos de validade: 1) o pessoal; 2) o temporal; 3) o material e 4) o espacial.(1)
A semiologia jurídica demonstrou que é possível, por meio da apropriação privada da linguagem, alterar os âmbitos de validade da norma com o objetivo de atingir situações, fatos e pessoas que estavam fora do alcance do espectro normativo ou limitar ou suprimir indevidamente um direito consagrado mediante a inserção de notas ou características que, não integrando a norma, são embutidas por meio de falácias criando-se a impressão epidérmica de que aqueles elementos imantam as normas quando são impostos pelo intérprete, afetando-se a consistência interna do direito para produzir efeitos externos prejudiciais a determinados grupos.
No caso das normas que reconhecem os direitos dos povos originários, as normas da constituição vigente – inscritas no art. 231- se referem sempre às terras tradicionalmente ocupadas e aqui o advérbio tradicionalmente, pelo seu teor literal, indica, clara e evidentemente, as terras que originariamente já são ocupadas pelos povos originários. O âmbito de validade temporal das normas do art. 231 remonta ao que originariamente pertence aos povos originários, inexistindo, no texto normativo, qualquer modulação temporal limitada ao marco específico da data da promulgação da constituição de 1988 ou outro marco ligado àquela data.
A validade temporal das normas consagradoras dos direitos territoriais dos povos originários não tem qualquer relação com o marco temporal a partir da promulgação da constituição – 5 de outubro de 1988- ou com qualquer outro critério vinculado àquela data. Inserir um marco ad hoc atropela o texto constitucional, altera o âmbito de validade temporal das normas referidas e vulnera a força normativa da constituição.
A questão é ainda mais grave quando é público e notório que a questão dos registros de propriedade no país sofre de absoluta falta de transparência e é questão pendente e padecente de atuação escorreita pelo Estado. A economia do projeto de lei 490/2007 mal disfarça que, valendo-se dessa indeterminação, a falaciosa noção de marco temporal objetiva expropriar as terras dos povos originários. O projeto de lei não passa pelo cotejo constitucional e constitui afronta aos três níveis básicos da interpretação jurídica, quais sejam: o textual, o estrutural e o histórico.
A metodologia jurídica permite identificar as interpretações que se inserem no arco hermenêutico -as possibilidades interpretativas legítimas- e as que, mediante a colonização dos sentidos, inserem notas ou aspectos alheios à tessitura textual da norma, criando-se novos textos, confundindo-se a atividade interpretativa- do judiciário- com a criação jurídica-legislativo.
Conforme salientava Pontes de Miranda, a topologia das normas – o lugar em que estão inseridas- pode servir de norte para a interpretação. Nos Atos das Disposições Transitórias Constitucionais consta regra sobre a demarcação das terras indígenas, a saber: “Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
A questão da demarcação, portanto, se insere no direito constitucional transitório que visa a estabelecer uma continuidade segura entre o passado anterior à constituição e o futuro de tal forma que o indigitado marco temporal vinculado à promulgação da CF de 88 vulnera, além do art. 231, o direito transitório e se revela como um sofisma destinado não só a restringir mas também a suprimir os direitos povos originários por meio da desfiguração do direito vigente.
Causa pasmo que, após quase 33 anos, a norma do art. 67 voga no limbo jurídico das normas desprovidas de eficácia jurídica. Mas sempre é tempo de colher a constituição pela palavra e fazer valer sua força normativa. (2)
- A importância da Arquitetônica Jurídica Analógica decorre da necessidade de articular as categorias epistemológicas que ensejam a aplicação segura do direito. Sobre os três níveis da interpretação jurídica ver o capítulo I, sobre a colonialidade do poder como obstáculo hermenêutico à eficácia das normas constitucionais ver o capítulo 2 e 8, ambos do livro “As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018.
- O caráter performativo da constituição não se confunde com gesto vazio, mas serve para enfatizar a necessidade de engajamento social no uso público da razão e do intérprete na comunidade de comunicação instaurada pela constituição, realizando de forma objetiva os sentidos comunitários nela talhados. É o que o filósofo espanhol André Ortiz chama de hermenêutica da implicação em que a subjetividade do intérprete, em vez de se fechar, abre-se à historicidade objetiva do texto.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.
MARIATÉGUI E A TAREFA LATINO-AMERICANA
“Aquele que sai da contemplação e desce à realidade pode colher mil flores”, Mao Tsé-Tung.
O dogmático, na fabulosa definição de Mao Tsé-Tung, é aquele que impõe à realidade sempre cambiante esquemas teóricos prévios, ignorando a necessária articulação entre a universalidade e a particularidade. Rechaça-se o positivismo acrítico que supõe uma realidade dada e imutável, como contraposição vazia do pensamento, e, ao mesmo tempo, o idealismo que se evade em conceitos altaneiros sem qualquer capacidade de se enriquecer com a realidade. O apelo teórico da dialética é que, saindo da posição plácida da contemplação, o teórico dirija-se à realidade porque, se souber ver, há de colher mil flores. É um chamamento poético para haurir na realidade os elementos para a transformação.
Engels, em livro sobre Feuerbach, afirma que a proposição hegeliana de que o “real é racional e o racional é real’’ não é a santificação do que existe enquanto tradição arraigada e opressiva, mas a mirada da disjunção entre o velho e o novo porque o real não coincidindo completamente consigo mesmo pode dar ensejo a algo novo.
A tarefa latino-americana é, portanto, profundamente dialética. José Carlos Mariatégui mostrou que aplicar esquemas prévios rígidos para uma realidade sempre movente não enseja teorias adequadas e anunciava a tarefa latino-americana: romper com a concepção colonialista da tradição e promover uma leitura crítica da tradição e a colocação da questão da raça em termos econômicos e sociais.
O movimento crítico da tradição não se confunde com a nostalgia romântica de um tempo primevo e paradisíaco, mas se trata de uma reintegração histórica e uma ruptura da tradição unívoca e monolítica, exigindo, então, uma inflexão no pensamento marxista que deve enfrentar a questão indígena, tema inexistente no marxismo europeu.
As formações sociais da América Latina, para retomar o conceito de René Zavaleta, são “abigarradas’’ em que a questão da raça, gênero e classe estão imbricadas, repercutindo no plano econômico, político e ideológico de forma que a análise dogmática, além de efeitos nefastos de compreensão, engendra efeitos políticos nefastos (1).
Afirma Mariategui:
“O problema das raças serve na América Latina, na elaboração intelectual burguesa, entre outras coisas, para encobrir ou ignorar os verdadeiros problemas do continente. A crítica marxista tem a obrigação inadiável de coloca-lo em termos reais, desprendendo-o de toda tergiversação ou pedantismo. Económica, social e politicamente, o problema das raças, como o da terra, é, em sua base, o da liquidação do feudalismo” (2).
A questão da raça na América Latina está jungida à questão do imperialismo. As classes dominantes – oligarquias brancas- introjetam os ‘valores’ do imperialismo e não nutrem qualquer alteridade em relações aos povos originários, fomentando um conceito fechado de nação da qual apenas os dotados dos atributos da branquidão participam.
A ênfase no narcisismo das pequenas diferenças- pigmento da pele, origem étnica- serve para acicatar políticas de inimizades que se expressam, sobremodo, na investida do capital representado pela oligarquias sobre os territórios dos povos originários, na subsunção de formas arcaicas de produção e na maquinaria de políticas criminais de morte.
Mariatégui discutiu o tema da terra no modelo teórico do feudalismo. Na verdade, se articularmos, como Marx o faz no Manifesto do Partido Comunista, a descoberta da América como elemento central na constituição da modernidade e do capitalismo, o tema do feudalismo precisa ser superado pela análise de como o modo de produção capitalista, desde sua gênese, subsume o escravismo colonial, seja dos negros nos sistemas de plantação, seja dos índios na encomenda e outras formas arcaicas de produção. E, no evolver, no surgimento das sociedades industriais, não só discutir a questão do exército industrial de reserva, mas a continuidade da acumulação primitiva pelas oligarquias brancas pelo modelo extrativista do próprio estado e pela política de desapossamento dos povos originários (3).
No livro Os quilombos como novos da terra, demonstramos que a acumulação primitiva do capital é uma tendência intrínseca e contínua do capitalismo e que consiste na expropriação violenta, sutil ou explícita, contínua e sistemática da base fundiária dos camponeses e dos povos originários. O capitalismo, para se reproduzir como modo de produção extrativista do trabalho, busca, de todas as formas, a expropriação da base fundiária dos camponeses e, na América Latina, dos povos originários para formar contingentes que serão inseridos na sobre-exploração do capital ou subsumidos na políticas de morte.(4)
Já em 2008, no texto A legalidade como instrumento retórico de conformismo social, tínhamos enfatizados que, diante do corte unívoco das formações sociais ocidentais, tudo que foge da estruturação colonial do poder, é lançado na irracionalidade e na patologia. A tentativa de encontrar o crime em traços antropológicos cumpre a função hegemônica de estabelecer o Outro excluído como a figura fantasmática do mal e da potencial ameaça. Os arranjos ideológicos e imagéticos dessa concepção são propalados cotidianamente de forma a constituir um imaginário que justifique um arremedo de legítima defesa que, sob o pretexto de afastar o mal, instaura políticas de mortes. Se o outro excluído coloca em questão a forma social excludente, apresenta-se, de acordo com a ideologia colonial, como ameaça à ordem da propriedade privada e à pilhagem estatal pelas classes dominantes.
A própria desordem social, causada por determinações sociais e econômicas, é manipulada para reforçar os efeitos da ordem colonial. Em vez de buscar compreender as razões das injustiças, todas as contradições são lançadas ao plano da patologia: o conflito é catalisado pela lógica ideológica, sendo apresentado como problema de índole moral-individual. A política criminal que ganha compleição estatal em alguns cantões da América Latina é orientada pela noção nefasta de traços antropológicos e, imbuída de acendrado racismo, instaura políticas de inimizades que redunda na produção sistemática da morte.
Na verdade, a velha cantilena liberal da liberdade negativa é decantada para fazer de uma questão econômica uma questão de ordem individual. Hegel ao colocar a questão econômica no sistema de ética, inverte a posição liberal e afirma que não há que falar em liberdade sem a concretização dos direitos materiais, dentre esses o direito de manter-se em vida, exigindo-se, portanto, profundas alterações de ordem econômico-social.
A tarefa latino-americana, na linha de Mariatégui, articula-se com a necessidade ver o enclave da raça, gênero e classe na lógica dialética sem qualquer dogmatismo e pensar estratégias de profundas transformações política e econômicas.
- É difícil traduzir a expressão ‘abigarrada’ de forma que é mais profícuo preservar a riqueza que tem no original.
- MARIATÉGUI, José Carlos. La tarea americana. Buenos Aires: Prometeu Livros, CLACSO, 2010.
- Há que fazer uma análise foucaultiana de obras que, a pretexto do desenvolvimento, são feitas em terras dos povos originários, expropriando-os dos seus territórios, cuja dimensão ultrapassa a relação de posse com a terra.
- Sobre a subsunção de formas arcaicas de produção pelo capital e sobre o giro descolonizador ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.
ALBERTO GUERREIRO RAMOS: A DESTINAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA MODERNIDADE PERIFÉRICA
A FIDEL CASTRO E A TRAN-DUC-THAO
“Os antagonismos essenciais da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na polaridade, estagnação e desenvolvimento, representados por classes sociais de interesses conflitantes, e ainda entre nação e antinação, isto é, um processo coletivo de personalização histórica contra um processo de alienação”
A redução fenomenológica encontra seu motivo na meditação do cogito. Descartes começa por colocar em questão todos os objetos que se apresentam aos sentidos e, para evitar uma regressão ao infinito, chega ao reconhecimento de que se pode duvidar de tudo, mas não de que se duvida. A dúvida metódica desemboca na afirmação de uma verdade inquestionável: o cogito enquanto substância que pensa. Pelo exercício da dúvida metódica, o cogito enquanto instância da certeza é fruto dessa suspensão da apreensão dos objetos exteriores.
Em Edmund Husserl, a redução, mesmo partindo do cogito, avança no sentido de compreender que o questionamento radical do mundo objetivo não significa a diluição da objetividade, mas a apreensão da correlação originária entre consciência e mundo. A atitude natural na medida em que se torna inquestionada e tornada hábito impede o descortinar da relação originária com o mundo. Por isso, a redução significa o questionamento constante da atitude natural na pretensão de buscar readquirir a situação originária da relação entre consciência e mundo. (1)
A própria atividade científica, ao esquecer que surge das demandas da vida operante, acaba por se alienar completamente. Não se trata apenas de que os princípios operatórios subjacentes à construção de um sistema não são conscientes ao próprio sistema, mas da relação da ciência e o mundo da vida. Em Husserl, o mundo da vida é limitado a uma esfera espiritual, esvaindo-se em materialidade. Já Alberto Guerreiro Ramos confere à redução fenomenológica um novo campo de imanência e o mundo da vida ganha materialidade. A redução sociológica consiste, pois, em depurar um objeto de estudo dos referenciais que o emolduram para permitir sua apreensão correta nas particularidades concretas.
No contexto marcado pela colonialidade do poder, o efeito de prestígio de imitar certos autores se torna maior do que a busca genuína da compreensão. A redução sociológica, ao se insurgir contra o mero decalque teórico acrítico, desoculta um objeto do sistema de referências produzido pelo contexto colonial, desembaraçando-o de todos os obstáculos epistemológicos, garantindo-se a percepção adequada dos fenômenos na inteireza de seu contexto.
Por isso, Guerreiro Ramos reivindicava a necessidade premente de se empreender um uso sociológico da sociologia, buscando superar a identificação simplista do trabalho teórico ao mero acúmulo de informação da literatura estrangeira em cuja literalidade estariam os dados concretos da realidade nacional. Os esquemas teóricos, hauridos na literalidade emergida de outros contextos, são impostos à realidade a ser observada, gerando efeitos deletérios na apreensão da realidade.
Alberto Guerreiro Ramos define a redução em três sentidos básicos: 1) a redução como método de assimilação crítica da sociologia estrangeira; 2) a redução como atitude parentética, isto é, como elevação à consciência dos fatores que determinam uma situação, permitindo uma intervenção consciente e producente a efeitos prefigurados racionalmente; 3) A redução como crítica do saber oficial vigente. (2)
Em síntese, a redução sociológica é uma atitude metodológica voltada ao desenvolvimento da capacidade de o sociológico de se desembaraçar dos pressupostos alienantes e desorientadores do colonialismo mental para poder estabelecer uma linha justa das questões centrais às formações sociais a que integra. Requer, sobretudo, uma compreensão da relação complexa entre a universalidade e a particularidade. Nem substancializar o universal de forma a negar a necessidade de apreensão da realidade em seus aspectos mais capilares. Nem hipostasiar o particular de forma a associá-lo à dispersão lógica do que é insuscetível de apreensão teórica. Trata-se de entender a universalidade concreta.
Louis Althusser já tinha assinalado que o fazer ciência já traz implícito um conjunto de princípios operatórios que, no mais das vezes, são inconscientes e que, por isso mesmo, determinam a percepção de um determinado fenômeno. Diante disso, afirma a necessidade de uma linha de demarcação que seja idônea a estabelecer a forma com que o saber científico seja funcional à formação social de que faz parte o sociólogo, permitindo uma autoconsciência social dos problemas para mais bem articular as soluções.
A redução sociológica, tendo em vista o contexto colonial, estabelece uma linha justa de demarcação, habilitando o sociológico, na medida em que for capaz de penetrar na dinâmica concreta das nações periféricas, a se tornar um momento de autoconsciência social e, pela elucidação que elabora junto às massas, um indutor do processo histórico de autodeterminação. O exercício da crítica do saber hegemônico revela-se essencial. A transplantação acrítica de teorias estrangeiras impede que as formações sociais periféricas entendam o seu próprio processo econômico-social. Vejamos um exemplo: Giovanni Arrighi, renomado economista, afirma em livro propalado: “A democracia parlamentar nunca se sentiu em casa na semiperiferia”.(3) Trata-se de enunciado ideológico que confunde causa e efeito, pois deixa de auscultar quais as razões pelas quais a democracia não se realiza nos países periféricos. Procurar as razões significaria deparar com o imperialismo e a necessidade de pensar a realidade. O enunciado seria correto se afirmasse que o centro capitalista sempre busca coarctar a emergência democrática nos países periféricos, por meio de golpes ou por meio de guerras híbridas.
A redução sociológica compreende que a batalha das ideias não é idealismo, mas está inserida na cruenta refrega política. Na modernidade periférica, as ideias tem pesada materialidade. Guerreiro Ramos o sabia e a redução sociológica foi um grito para que, na dispersão a que são forçadas as formas sociais periféricas, uma unidade pudesse ser produzida na força da ideia e da virtude sonhando que as massas emergissem em organizações de disciplina coletiva. A sociologia, nesse contexto, erige-se como instrumento de autodeterminação dos povos.
- O sentido da redução como resgate da vida prática não somente aproxima, mas leva muitas vezes ao marxismo. Trand-Duc-Thao, esse grande filósofo vietnamita, é exemplo dessa energia interna da fenomenologia a se encaminhar ao marxismo. Trata-se de um dos maiores filósofos da história cuja obra deve ser estudada e pensada.
- Obras do inesquecível mestre baiano: RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica. Rio de Janeiro: 1965; RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.
- ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petropólis, RJ: Vozes, 1997, p. 232. Na verdade, justamente quando as formações sociais que, na divisão internacional do trabalho são periféricas, se engajavam na luta por autodeterminação logrando desenvolvimento, surge a ideologia do não desenvolvimento. Um sociólogo até escreveu que se deve buscar alternativa ao desenvolvimento. Não há que tergiversar: as formações sociais devem, desde que numa integração do metabolismo ser humano e natureza, buscar o desenvolvimento econômico. Pretendo, em trabalhos futuros, demonstrar as repercussões da redução sociológica nos mais variados campos.
Por: Luís Eduardo Gomes Nascimento, advogado e professor da UNEB.
CONFERÊNCIA: CORRUPÇÃO, COMPLIANCE E ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
Está aberto o período de pré-inscrição para a Conferência “Corrupção, Compliance e Atuação do Poder Judiciário”, previsto para ocorrer no dia 10 de Junho, a partir das 19 horas, no formato virtual.
O evento está sendo organizado pelo Colegiado Acadêmico do Curso de Direito, da Faculdade de Petrolina (FACAPE) e o Programa Escola Verde.
A inscrição é gratuita e haverá emissão de certificado com carga horária de 3 horas; mediante assinatura da lista de presença que será repassada durante o evento.
De acordo com o prof Celso Franca, um dos organizadores do evento, “será um espaço importante para se debater assuntos tão atuais e relevantes para a sociedade”.
PROGRAMAÇÃO
A Conferência terá inicio com a palestra especial da ex-ministra do STJ, jurista e advogada, Eliana Calmon, as 19hs.
Em seguida, haverá debate com a participação dos ilustres convidados, Ivan Galvão, Procurador do Estado de Pernambuco; Vinicius Cardona Franca, Procurador do Estado da Bahia; e Leandro Bastos Nunes, Procurador da República.
PRÉ-INSCRIÇÃO
A pré-inscrição segue aberta até o dia 09/06, através do formulário eletrônico:
https://forms.gle/PQ2yzwphmB24GWGm9
A transmissão será através do Canal do Curso de Direito no YouTube.
link de acesso:
https://youtu.be/9XdwhfIIAyA
ELOGIO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO
A Frantz Fanon, Robert Nesta Marley e Mariele Franco (1)
Afirma-se que o século XX teve, no plano filosófico, uma destinação vinculada ao giro linguístico ou à virada ontológica. O giro linguístico se caracteriza pela ênfase na transcendência da linguagem que, entendida como medium, alberga as condições do entendimento mútuo aos quais pragmaticamente estão todos vinculados de tal forma que a corrosão dessas premissas só é possível com a destruição das próprias condições do diálogo. A linguagem figura não mais como representação do mundo, uma espécie de reflexo passivo, mas como estrutura simbólica do mundo. Essa tendência de encontrar na linguagem um terreno a salvo da colonização da razão instrumentalizada à lógica do capitalismo encontra na teoria da ação comunicativa de Habermas uma consumação plena.
A linguística moderna sempre se inseriu na relação complexa entre a semântica, entendida como teoria da referência extra-linguística, e a pragmática, que consolida a mirada nas situações concretas dos atos de fala de forma a vislumbrar um a priori compartilhado repassado por tradições culturais, decisões institucionais. Na pragmática, o mundo do inteligível é destranscendentalizado na medida em que as antecipações pragmáticas das situações de fala indica o mundo da vida como pano de fundo que condiciona a experiência social.
Haurindo em Husserl o conceito de mundo da vida, articula-o como pano de fundo das experiências sociais, como uma camada pré-temática de sentido que funciona na qualidade de posição prévia para a compreensão e para orientação social na medida em que traduz uma forma de vida redutora da contingência. Nesse sentido mais amplo, o mundo da vida serve para explicar a forma do laço social e erigir o agir comunicativo em que as interações intersubjetivas prefiguram o entendimento enquanto acordo comunitário. O agir comunicativo, ao implicar na superação do esquema sujeito-objeto, aposta no paradigma da intersubjetividade em que os sujeitos sociais, na medida em que vinculados à pretensão de verdade, podem, mediante o diálogo, chegar ao entendimento, isto é, ao acordo sobre uma coisa no mundo.
A entronização por Habermas da categoria de mundo da vida como pano de fundo para uma ação comunicativa voltada ao entendimento mútuo e à correspondente ideia de que, na fatualidade, existe a idealização virtual do consenso constitui uma forma de fuga diante da reificação do trabalho bem como da criação de uma zona espiritual cujo efeito persuasório diminui quanto mais se torna ilusória.
A ideia de que existem expectativas contrafácticas nas quais as condições do diálogo já estão presentes e que funcionam como pano de fundo ineliminável resta idealista. Ainda que Habermas reconheça formas violentas que corrompem o discurso, a identificação da linguagem como lugar da razão que universaliza o acordo na medida em que, na instauração do visar ao outro, subjaz as condições transcendentais do diálogo e do entendimento, não ignora as relação de poder instaurada de forma violenta? Contrafático é o que, mesmo não tendo efetividade, mesmo contrariando a dinâmica dos fatos, permanece ainda válido. Não é uma forma de idealizar uma comunidade para evitar o confronto com as formas fáticas de dominação? A idealização da linguagem como lugar do acordo não corre sempre o risco de santificar a dominação, fática, dos espoliadores? Não seria a ênfase no medium linguístico uma forma de reservar uma ilusória forma de comunidade para fugir da dor de milhões de pessoas no cotidiano, isto é, da ausência de comunidade ali onde a questão da reprodução da vida é central?
Ao substituir a categoria do modo de produção pelo mundo da vida, Habermas, esse grande filósofo, se afasta completamente do marxismo. O itinerário de Habermas da teoria crítica até à noção de uma democracia consensual na forma de autolegislação concretizável mediante procedimentos em que, pela co-originariedade da autonomia privada e da esfera pública, a formação da opinião e da vontade seja a mais abrangente de forma a levar a conclusão provável de que todos aquiescem com o conteúdo produzido, indica uma aproximação com o pensamento liberal. A legitimidade se confunde com a gênese democrática das leis. Não se vê, portanto, qualquer debate da economia e das contradições da sociedade. Na verdade, o próprio Habermas afirma que sua teoria se faz para evitar o risco do dissenso. Mas, conforme diz Rancière, as formações sociais não se resolvem numa conta perfeita e que a placidez das classes dominantes pode ser interrompida pela emergência dos não contados, emergindo as contradições. Enfim, se há política é porque o dissenso pode ganhar figura, questionando a ordem colonial.
Quanto ao destino ontológico, Heidegger inaugurou, colhendo as melhores intuições de Husserl, a compreensão do ser. A distinção entre o como apofântico enquanto terreno dos juízos lógicos estruturado na relação entre um sujeito e um predicado, o que na figuração simbólica se expressa “A é B”, e o como hermenêutico enquanto dimensão existencial que condiciona a enunciação, indica uma referibilidade à vida prática.
De fato, é um avanço reconhecer que um juízo tal como ‘o céu é azul’ não se consubstancia sem uma visão prévia, posição prévia do que seja céu e do que seja azul. Heiddeger, em diversas passagens, afirma que a vida prática, mesmo que não se expresse em enunciados, ainda sim é teórica.
Aqui, verifica-se que o como hermenêutico enquanto vida antepredicativa encerra sentidos prévios emergidos da experiência e não de celestiais conceitos, avançando para a retomada de aspectos que uma teoria do juízo é incapaz de responder. Não obstante, em Heidegger, o mergulho na vida prática sempre está associado ao prostrar-se decadente à lógica das coisas, e pela fuga diante dos afetos, como a angústia, que poderiam indicar uma abertura ao mundo e ao questionamento.
O tema do cotidiano revela-se meramente negativo na medida em que indica o mergulho no si impessoal e na fuga da questão metafísica sobre o sentido do ser. À inautenticidade de um mero viver à maneira de coisas, Heidegger opõe, ao menos em Ser e Tempo, a assunção do destino do ser humano à essência que lhe cabe: pensar o ser.
O evento, nessa senda, é apropriação do destino do ente cuja essência é pensar, não o seu sentido próprio, mas o sentido do ser. Por isso, Heidegger recusou a ideia de Sartre, presente na conferência O existencialismo é humanismo, de que o ser humano é o único ser cuja existência precede a essência, pois, primeiro existe, mas, dentro do horizonte do tempo, escolhe o que vai ser. O que Heidegger critica é o fato de Sartre reduzir a questão ontológica à questão antropológica. Portanto, a saída para vida inautêntica seria o evento de se apropriar do pensar cuja destinação é pensar o ser para além de qualquer ente ainda que somente pelo ente a questão do ser se torna visível.
Em Heiddeger, as análises do cotidiano, muitas vezes, se aproximam da análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Diante de um determinado objeto, Heidegger apreende elementos que estão articulados à experiência cotidiana numa visão mais abrangente, atingindo um sistema de referências que, apesar de não vinculados ao modo de produção, já apresenta dimensões da realidade que uma teoria do juízo não abarca.
A própria figuração do conhecimento como a relação entre um sujeito cognoscente, desprovido de historicidade, e de um objeto de estudo, destituído de movimento, é superado pelo reconhecimento da facticidade do ser-aí que, desde sempre, já está mergulhado numa visão prévia do mundo. Toda compreensão já está estruturada numa pré-compreensão. O círculo hermenêutico, diz Heidegger, não é um círculo vicioso. A questão, nesse contexto, não é negar o círculo, mas saber se inserir nele desde que as pré-compreensões sejam norteadas e voltadas à retomada das coisas mesmas. Mas em que consiste esse retornar às coisas mesmas?
A filosofia da libertação, na linhagem de Levinas e desenvolvida por Enrique Dussel, parte da ideia de que a ética é a filosofia primeira e não se concebe como construção de enunciados. Significa, sobretudo, uma atitude diante do desafio que o rosto do Outro, o Outro excluído, lança à filosofia que, rompendo a ontologia do neutro, assume a responsabilidade desinteressada diante de outrem. Se a rostidade em outros pensadores se apresenta como a figura do poder, na filosofia da libertação, ao partir desde a América Latina e das contradições lancinantes e pungentes das formações submetidas à espoliação colonial, o Rosto é sempre o rosto dos indígenas, dos negros, das mulheres, das crianças. A filosofia da libertação se engaja na totalidade aberta em que a questão da classe, gênero, raça e faixa etária demanda uma lógica analógico-dialética. É dos rostos, que colocam em questão, na premência de sua presença, desde um não-lugar, a injustiça intrínseca das formações sociais capitalistas, que a filosofia da libertação parte. (2)
Mas o responder à interpelação do Outro exige, operando-se a redução fenomenológica, chegar à vida operante, reconhecendo-se que nem todos integram a comunidade de comunicação, que a brutalidade do poder nas formações periféricas não instaura nenhuma comunidade já que prevalência do ego colonial rompe sistemática e diuturnamente as premissas básicas do discurso, dentre elas, o reconhecimento do outro como legítimo outro. A análise da limitação da comunidade da comunicação à branquidão exige um giro decolonial que, inevitavelmente, vai se ver a braços com a centralidade da discussão econômica.
Esse giro é de fundamental importância porque o que caracteriza a filosofia denominada pós-moderna é a neutralização da questão econômica e a decorrente resignação ou, pior, da capitulação ante o capitalismo. A demonstração da limitação da comunidade da linguagem, inclusive pelas análises dos confrontos históricos, faz que a filosofia da libertação tenha visto a necessidade de estabelecer a pragmática econômica antes da pragmática linguística.
Sendo o modo de produção capitalista marcado pela lei absoluta da produção de mais-valia, isto é, pela extração de mais-trabalho, e, tendo em vista a divisão internacional do trabalho na dinâmica mundial, verifica-se que, na América Latina, a irracionalidade do capitalismo se acentua em contradições expressas em formas de exploração ainda mais intensa do que as existentes no centro do sistema-mundo.
A totalidade do capitalismo é autorreferente e se enucleia na necessidade de reproduzir as condições para a produção de mais-valia nada tendo que ver com as necessidades reais dos seres humanos. Totalidade tão fechada que a vida humana nada mais é que um mero episódio na produção de mais-valia (3). Mas todo sistema autorreferente encontra aporias e contradições que abalam sua consistência superficial e ideológica.
Desde Hegel, a concentração de riquezas sempre esteve intrincada com a produção de desigualdades. O que abala a totalidade fechada do capital é a presença da exterioridade do Outro cuja apresentação é irrepresentável na juntura da laminação unívoca da ordem e, na medida em que se organiza e busca furar os espaços pétreos das hierarquias, evidencia as injustiças e anuncia a crítica e a práxis transformadora. Toda tarefa reativa da ordem é para fazer o Outro irrepresentável apenas representado na dinâmica interna colonial sob a perspectiva do inimigo. Imagens, representações e aparatos coercitivos são mobilizados para que a verdade traumática da injustiça intrínseca da totalidade autorreferente não se manifeste nas suas fragilidades, para que se coarcte, de todas as formas, a elucidação advindas das formas organizativas das classes dominadas e dos intelectuais orgânicos.
A filosofia da libertação, portanto, encontra-se no plano de imanência em que a premissa da ética do Outro exige a critica das formações econômicas na modernidade periférica: a injunção de ouvir as vozes históricas dos pobres engaja a necessidade de transformação da economia desde outras bases, desde a superação analética da lei absoluta da extração de mais-trabalho, que informa o capitalismo.
Podemos afirmar, com Aristóteles e com Hinkellamert, que, no capitalismo, a economia deixar de ser o lugar de reprodução da vida para se converter em crematística, isto é, o lugar de circulação do capital financeiro sem qualquer mediação produtiva. No estágio atual do capitalismo, a economia vira um espectro sem qualquer natureza produtiva (7).
Em Verdade e Método, Gadamer afirma que a filosofia se realiza na escuta do logos, para a filosofia da libertação, e a geração que o segue, a filosofia se realiza no cruzamento entre a ética e a política e a pragmática econômica, para, ouvindo as vozes dos povos desapropriados, possamos no apropriar coletivamente da vida em suas mais variadas dimensões. Devemos perguntar: que novos mundos podemos fazer coletivamente? (8)
- Poema que dediquei a quem viveu a ética da coragem:
Todo nome de Maria esplende em teu périplo
São mães Luandas, mãos de Dakar
Toda Maria colheu no vão dos negreiros navios
Teceu e urdiu teu estandarte para que pudesse cerzir
Em dor e festa a consagração de uma aurora inexorável
No abismo do tempo alteiam-se
A maré e a fibra das verdades gizadas pelo teu passo;
O peso do chumbo e a covardia dos salteadores
São inócuas para desbotar as amoras e as américas nascidas
Em tuas madeixas
Porque o que movem Marias se alinha aos equinócios dos povos,
Todas as constelações expandirão mais brilho até ofuscar as opressões
No instante mesmo em brotam mais Melodias
E a certeza de que a história irá parir mais de teus filhos
Todo nome de Maria, Marielle, esplenderá
- O desafio da linguística é resolver essa dualidade. Habermas, em outras obras, reinvindica o conceito de objetividade e de referência, incorporando aspectos da semântica.
- Penso que à ontologia de Heidegger é preciso opor a ontologia de Levinas e da Badiou.
- Em Teoria do Sujeito, livro fundamental e de atualidade gritante, Badiou usa o termo fora-do-lugar (horlieu) para fundar a lógica dialética. O que está inscrito sob a forma de opressão é o que, quando se organiza, questiona o Um enquanto organização dos lugares da dominação. A meu ver, Teoria do Sujeito é a obra mais importante de Badiou, cujo estilo difícil faz torcer a língua francesa para mais bem expressar na língua mesma a torção dialética. Obra fundamental para quem quer compreender a lógica dialética.
- No Livro Apel, Ricoeur, Rorty y la filosofia de la libertácion, Dussel apresenta o modo como Alvarado sobrecodifica o texto Bíblico sobre o texto do Popol-Vuh dos Mayas. A análise das sobrecodificações eurocêntricas são cruciais para a consolidação da hermenêutica decolonial.
- Penso que a crítica de Dussell é dirigida à noção de totalidade fechada e não à totalidade aberta, que caracteriza a verdadeira dialética. A remissão a Sartre confirma essa tese.
- O filme Cosmópolis, de David Cronenberg, demonstra a disseminação do capital que se desgarra de qualquer atividade produtiva para se tornar a circulação autorreferente de dinheiro: o capitalismo como espectro. O processo de desindustrialização da América Latina é uma prova dessa tese.
- O grande desafio teórico-prático é pensar as formas de organizações coletivas que tenham a capacidade de formar um bloco nacional-popular-revolucionário. Nesse sentido, Alberto Guerreiro Ramos, já nos de 1960, salientava que a teoria da organização é a chave-mestra para a disciplina coletiva das transformações. Nesse sentido, a forma-partido não está perempta, mas deve ser capaz de fazer o trânsito entre os movimentos de bases e a institucionalidade sem fetichizar-se e ter um programa capaz de aferir a totalidade. Também, o corte para definir a esquerda se torna mais simples: é de esquerda quem luta a favor de um novo modo de produção. O resto é pálida oposição consentida e bazófia. Ver: RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA DA OBRA DE ENRIQUE DUSSEL
- DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofía de la liberación: superación analéctica de la dialectica hegeliana: Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974. Obra fundamental para entender o método analético.
- DUSSEL, Enrique. 20 tesis de política. México: Centro de Cooperação Regional para la Educación de Adultos da América Latina y el Caribe, 2006.
- DUSSEL, Enrique. El último Marx y la liberación latino-americana: un comentario a la tercera y a la cuarta redacción de “El Capital’’. Obra fundamental para fundar a verdadeira ortodoxia marxista. Nela, os conceitos de trabalho vivo, subsunção e, especialmente, a distinção entre valor e fonte criadora de valor se apresentam no esclarecimento cabal de Marx. Seguindo a linha desse grande filósofo, desenvolvi esses conceitos marxianos. Ver: NASCIMENTO, Luís Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.
Brasil chega a 400 mil mortos por Covid 19 com inépcia do governo federal
Com o desprezo do governo federal e da população pelos riscos da Covid-19, passando pela insistência do presidente em investir em remédios sem eficácia contra a doença até a demora na compra de vacinas, entre outros tropeços, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (29) a marca de 400 mil mortes provocadas pelo coronavírus, 14 meses após a detecção da doença no Brasil e apenas 37 dias depois de registrar 300 mil óbitos.
Às 12h41 desta quinta, o consórcio de veículos de imprensa formado por Folha, O Estado de S. Paulo, O Globo, G1, Extra e UOL registrava 400.021 mortes no país, com mais de 14,5 milhões de casos desde fevereiro de 2020. É o segundo maior saldo absoluto de mortos no mundo, superado apenas pelos mais populosos Estados Unidos (574 mil), onde a epidemia já dá sinais de declínio.
Sob a premência dos números e com a pressão de uma CPI para investigar sua gestão da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem sido aconselhado a atenuar seu discurso a respeito da maior crise sanitária em cem anos.
Enquanto cruzavam as marcas de 100 mil cadáveres (em 8 de agosto de 2020), 200 mil (em 7 de janeiro deste ano) e de 300 mil (em 24 de março), os brasileiros ouviam da maior autoridade do país que o Sars-Cov-2 é uma “fantasia da grande mídia”, uma “gripezinha” e um “mimimi”.
As frases de Bolsonaro coincidem com a escalada de mortes, e, com as falhas de gestão em todos os níveis e o fatalismo de parte da população, ajudam a explicar por que o Brasil virou preocupação mundial na pandemia.
A pequena inflexão no discurso presidencial, simbolizada pelo uso esporádico em público da máscara de proteção que tanto criticava e pela ênfase na vacinação ainda podem estancar o agravamento da crise, mas não são suficientes, a essa altura, para reverter o quadro nem apagar um saldo de mortos que supera, por exemplo, o total das baixas de soldados britânicos na Segunda Guerra Mundial.
Colapsos simultâneos dos sistemas de saúde pelo país já ocorrem, com falta de insumos que vão de oxigênio a medicação para intubação. Acelerar a vacinação, com as encomendas de vacinas tardiamente fechadas e as entregas frequentemente atrasadas, ainda não é uma realidade.Apenas recentemente Bolsonaro passou a trabalhar pela imunização dos brasileiros.”Estamos fazendo e vamos fazer de 2021 o ano da vacinação dos brasileiros. Somos incansáveis na luta contra o coronavírus”, disse em pronunciamento em rede nacional no fim de março. Nem sempre foi assim.Com a Coronavac, vacina que vem garantindo a imunização dos brasileiros, o presidente colocou em dúvida a eficácia da droga por sua origem chinesa (algo que o ministro Paulo Guedes ecoou nesta semana) e travou guerra com o governador João Doria (PSDB), seu ex-aliado de palanque que adquiriu o produto.
Pandemia: Projeto Escola Verde distribuirá máscaras de proteção.
Projeto Escola Verde, desenvolvido por várias Instituições de Ensino Superior da região do Vale do São Francisco, em parceria com o MEC, está confeccionando máscaras de proteção contra o Coronavirus, tanto de tecido como de acetato tipo face shield, para doação às instituições de saúde, como Hospital Universitário, postos de saúde e Ubs’s, além da população em vulnerabilidade social tanto de Petrolina quanto de Juazeiro. No próximo dia 30 , sexta- feira, o Projeto Escola Verde irá destinar mais de 3.000 máscaras de acetato e 200 de tecido para as instituições de saúde e comunidades carentes da região. As máscaras são confeccionadas pelos estudantes da Univasf e outras instituições de Ensino, voluntários do Projeto. Além máscaras o projeto também está realizando a Campanha Vale Solidário que visa arrecadação de alimentos não perecíveis e produtos de higiene e limpeza, para as famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade. As doações podem ser feitas nos campi da Univasf de Petrolina ou Juazeiro.
As doações serão recebidas pela portaria. Desde já agradecemos o empenho da comunidade do Vale do São Francisco. Este trabalho estará sendo realizado até que a população esteja segura do atual momento crítico pelo qual estamos passando.
Coordenadores do Projeto Escola Verde:
Prof.Paulo Ramos – Univasf.
Prof. Celso Franca – Facape.
Isto Posto… Os negacionistas e os mercadores da fé.
A atitude desse padre traduz bem o bolsonarismo na sua faceta mais odienta, indigna, abjeta e perversa. Os que comungam do mesmo pensamento negacionista do Capitão Comédia reproduzem todo o tempo as suas mentiras e aberrações, sem nenhum pudor. E, também sem qualquer traço de caráter ou vergonha, vão adotando novas narrativas absurdas e doentias sobre os mais variados assuntos, tão logo a verdade se imponha.
No início da pandemia que se abateu sobre o mundo, primeiro, os bolsonaristas negaram a existência do Covid 19. “Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus”. A doença se impôs. Economias poderosíssimas como dos Estados Unidos e da Europa foram a nocaute, com governantes céticos sendo obrigados a fazer lockdown para conter o contágio e evitar a bancarrota completa.
Depois, negaram sua gravidade. “O que eu ouvi até o momento [é que] outras gripes mataram mais do que esta”, mas a mortandade também se impôs, ceifando mais de 300 mil vidas de nossos irmãos brasileiros. A ponto de ameaçar de colapso o sistema de saúde do país e obrigar governadores e prefeitos a agirem de forma atabalhoada, devido à falta de coordenação nacional de um ministério da saúde ocupado por militares incompetentes e irresponsáveis em busca de aumentar seu soldo a expensas do erário.
Em seguida, numa demonstração maior da desonra que caracteriza os bolsonaristas, os fiéis escudeiros do presidente mais despreparado e incompetente que o Brasil já teve, apressaram-se em apontar os culpados pela tragédia na qual transformaram a crise sanitária, sempre tratada pelo mandatário maior com menoscabo e irresponsabilidade. Criaram um antagonismo inexistente entre tomar medidas sanitárias adequadas para debelar a crise de saúde e manter funcionando uma Economia que já vinha cambaleando com o fraquíssimo desempenho do “Chigago Boy” Paulo Guedes, um economista que se considerava um gênio preterido e incompreendido pelo país, mas que no presente não passa do bajulador-Mor do militar inepto. Culparam o distanciamento social, os prefeitos, os governadores, a china, os comunistas, as máscaras, o álcool gel e o Papa. “Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele.” A ciência se impôs. Governantes sérios viabilizaram a vacina.
Por fim, inflados pela estultícia e pelo que Freud denominava Pulsão de Morte, os bolsonaristas se apegaram ainda mais às perversões e mentiras, sabotando o acesso do povo a vacinas, porque, como bons charlatães que são, sempre tiveram suas soluções milagrosas contra a doença, a exemplo do famigerado Kit Covid, vendido aos seus sequazes estupidificados como porção mágica para curar a Covid 19, tal como fazem aqueles conhecidos mercadores da fé, que vendem “Feijões Mágicos”, para nossa gente humilde, já chafurdada na dor e na miséria. “A gente vai junto com pastores e religiosos anunciar para pedir um dia de jejum ao povo brasileiro em nome de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido possível”. Mas, a verdade é o tempo, e o tempo sempre se impõe. E chegará também para os bolsonaristas, quando não puderem mais negar seus pecados.
P.S. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Por: Adão Lima de Souza