A tua voz principia o fruto
A tua voz principia o fruto
Nela, redivivo, surpreendo incêndios precursores
Na câmara cálida onde pulula o rio que te congraça
Pus minha origem e minha ressureição
Posso efusivamente dedicar-me a tua descoberta
O dia farto não exaure sua tinta
Telúrico
Salta no voo dos meus olhos
Paira no verde
Amplo e febricitante
De tua chegada
São as velas que ampliam o mar: Tu me ensinas
Eis que as velas brotam do amor
Para dar forma o que exala de tua fome de ser o
Mais puro lampejo
A feira de júbilo trouxe para ti os corais de Cora Coralina
No tropel de luas, maiores fragatas trarão a sede de novos périplos.
De: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e Professor da UNEB.
DA RESISTÊNCIA À DEMOCRACIA NAS FORMAÇÕES SOCIAIS COLONIAIS
A democracia é um regime de visibilidade aberto em que qualquer um pode emergir sem a necessidade de ostentar títulos, seja a riqueza, seja uma suposta superioridade. Nas formações marcadas pela branquidão como propriedade, aparece como um grande escândalo, pois significa a emergência de grupos não contados conforme a ascendência e a hierarquia, significa dizer que à branquidão não se confere o privilégio exclusivo de governar e que os não contados integram a comunidade política. Fácil inferir que, na modernidade periférica, o que caracteriza as lutas políticas constitui um confronto aberto contra a resistência- no sentido psicanalítico- à democracia e em prol da emergência dos que tem como título a ausência de título e ostentam a corporalidade viva, que luta por dignidade. As lutas políticas são deflagradas para que se possa constituir a luta política genuína e democrática.
Como a colonialidade do poder incute a superioridade da branquidão, instaura-se uma verdadeira patologia: os que ostentam a branquidão se veem como predestinados exclusivos aos atributos universais da humanidade e se arrogam a condição de privilegiados e únicos capazes de representar o todo social e, portanto, de governar. Engolfados no narcisismo das pequenas diferenças, perdem qualquer alteridade, isto é, qualquer disponibilidade ao outro que não se enquadra no rol de propriedades- sejam biológicas, sejam culturais- com que se identificam, acicatando, como corolário, maquinarias de exclusão simbólica e territorial. É o que Alberto Guerreiro Ramos chamava de patologia do branco.
Nesse contexto, as eleições, como momento importante da democracia, figuram como um verdadeiro fantasma, o fantasma de que, pela aleatoriedade que lhe é constitutiva, o exercício do governo acabe indo para mãos dos que não são os ‘predestinados’, isto é, os grupos não contados pela laminação unívoca da ordenação colonial e que podem, pelo exercício do poder, alterar e transmontar a distribuição colonial dos bens, incluídos os simbólicos.
A política, então, se torna um processo totalmente controlado pelas oligarquias brancas reacionárias, tendo por característica a reatividade à qualquer emergência popular. Não há que se enganar: nas formações sociais coloniais, as oligarquias brancas são violentas e resistem violentamente à emergência democrática, à emergência do qualquer um: o qualquer um sem título que desarma a lógica hierárquica da branquidão como propriedade.
Como conjurar a aleatoriedade das eleições? Pela criação de um sistema cerrado, sutil ou explícito, de exclusão. Jacques Rancière assinala que os Pais-Fundadores não viram nenhuma contradição em erigir o homem proprietário como o único capaz de fazer da esfera pública um lugar infenso a interesses particulares. Ingenuidade? Marx, por sua vez, já na análise semiológico-política das declarações francesas do século XVIII, entreviu a contradição entre o homem, que luta pelo próprio interesse, e o cidadão, que deve figurar como elevado membro da comunidade.
Enquanto o homem luta pelos próprios interesses, faz dos outros meios para atingi-los, o cidadão, enquanto membro da comunidade, deveria agir conforme o interesse público. A contradição, segundo Marx, se resolve pela predominância do interesse privado real sobre o interesse público etéreo e ilusório. Nas formações sociais coloniais, não há esfera pública, o comando já é imediatamente dominado pela lógica privada (1). As eleições são tomadas justamente para conjurar o risco da emergência dos não contados. Conforme salienta Fanon, o poder, nas colônias, é privilégio dos dotados de branquidão e identificados com os valores imperialistas.
A democracia, portanto, constitui o escândalo que embaralha a ordem do discurso. Não é só pela situação discursiva em que aqueles que normalmente são privados da palavra emergem na esfera na pública pelo discurso que a democracia é temida e odiada, mas também pela iminência de que o uso da palavra, ao torcer e suplantar o monopólio do simbólico pelas oligarquias brancas, estimule, esporeie, fomente a constituição de um bloco de poder nacional-popular. É pelo exercício da palavra ou dos gritos de martírio que o povo assoma na seara pública apresentando-se, à luz da lógica colonial, como ameaça à ‘benfajeza’ ordem dos privilégios seculares. A mera emergência de um não contado é vista como ameaça e se verificam manifestações, patentes ou latentes, de racismo. Por isso, conforme salientei no livro As antinomias do direito na modernidade periférica, nas formações coloniais, a única política admitida pelas classes dominantes é a despolitização mediante o silenciamento, pelos mais variados meios, dos que enunciam os sintomas e as contradições das formações sociais.
Mas não há que desesperar da política. A emergência das massas em organizações de disciplina coletiva sempre é possível e, desde que se estabeleçam, pela luta, critérios seguros de verificabilidade da constituição do poder, o jogo pode mudar: as massas silentes podem assomar no vigor da poesia e da criação política de novas formas de ser e de viver.
Espargiu-se, até mesmo pela vulgata marxista, a noção de um Gramsci culturalista e domesticado. Mas Gramsci por ele mesmo não pensava em termos de cultura; como pensador da conjuntura, pensava em termos de poder e entendia a práxis como a busca, diuturna e incansável, pela constituição de um bloco de poder, nacional, popular e revolucionário (2). Lembrando Hegel, o ser humano, ao construir uma casa, usa os elementos da terra para se proteger da própria terra. Então, trata-se de criar um bloco de poder capaz de enfrentar e superar a branquidão como propriedade.
Notas:
1 Assiste razão a Dussel ao enfatizar Fichte como modelo de intelectual para a América Latina. Para Fichte, em momentos graves e difíceis da nação, cabe ao filósofo assumir o risco de, lutando pela instauração de uma verdadeira esfera pública, ser um momento reluzente e complexo de autoconsciência.
2 Para Gramsci, os partidos se tornam pessoas históricas quando se transformam no crisol da unidade entre teoria e prática, entendida como processo histórico. Não há qualquer transformação social sem que se verifique uma efervescência teórico-prático no âmbito dos partidos, sindicatos e movimentos sociais. No caso do Brasil, ainda impera o enunciado popular do período do Império em que havia dois partidos – o liberal e o conservador: ‘’Nada mais conservador do que um liberal no poder, nada mais liberal do que um conservador no poder”. No período ditadorial explícito (1964-1985), tivemos o partido do sim (MDB) e o partido sim, senhor (ARENA). Nada mudou. Mas nada impede o surgimento ou a configuração de partidos antirracistas, anticoloniais e anticapitalistas, constituídos em laboratórios para pensar e articular a totalidade social. Conforme dizia Guerreiro Ramos, os fenômenos sociais são totais, exigindo a superação da perspectiva fragmentária tão ao sabor do império.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB
Pronunciamento do ministro Luís Roberto Barroso.
I. Introdução
1. A propósito dos eventos e pronunciamentos do último dia 7 de setembro, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux, já se manifestou com relação aos ataques àquele Tribunal, seus Ministros e às instituições, com o vigor que se impunha.
2. A mim, como Presidente do Tribunal Superior Eleitoral cabe apenas rebater o que se disse de inverídico em relação à Justiça Eleitoral. Faço isso em nome dos milhares de juízes e servidores que servem ao Brasil com patriotismo – não o da retórica de palanque, mas o do trabalho duro e dedicado –, e que não devem ficar indefesos diante da linguagem abusiva e da mentira.
3. Já começa a ficar cansativo, no Brasil, ter que repetidamente desmentir falsidades, para que não sejamos dominados pela pós-verdade, pelos fatos alternativos, para que a repetição da mentira não crie a impressão de que ela se tornou verdade. É muito triste o ponto a que chegamos.
Þ Antes de responder objetivamente a tudo o que precisa ser respondido, faço uma breve reflexão sobre o mundo em que estamos vivendo e as provações pelas quais têm passado as democracias contemporâneas. É preciso entender o que está acontecendo para resistir adequadamente.
II. A Recessão Democrática no Mundo
1. A democracia vive um momento delicado em diferentes partes do mundo, em um processo que tem sido batizado como recessão democrática, retrocesso democrático, constitucionalismo abusivo, democracias iliberais ou legalismo autocrático. Os exemplos foram se acumulando ao longo dos anos: Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Ucrânia, Filipinas, Venezuela, Nicarágua e El Salvador, entre outros. É nesse clube que muitos gostariam que nós entrássemos.
2. Em todos esses casos, a erosão da democracia não se deu por golpe de Estado, sob as armas de algum general e seus comandados. Nos exemplos acima, o processo de subversão democrática se deu pelas mãos de presidentes e primeiros-ministros devidamente eleitos pelo voto popular. Em seguida, paulatinamente, vêm as medidas que desconstroem os pilares da democracia e pavimentam o caminho para o autoritarismo.
III. Três fenômenos distintos
1. Há três fenômenos distintos em curso em países diversos: a) o populismo; b) o extremismo e c) o autoritarismo. Eles não se confundem entre si, mas quando se manifestam simultaneamente – o que tem sido frequente – trazem graves problemas para a democracia.
2. O populismo tem lugar quando líderes carismáticos manipulam as necessidades e os medos da população, apresentando-se como anti-establishment, diferentes “de tudo o que está aí” e prometendo soluções simples e erradas, que frequentemente cobram um preço alto no futuro.
3. Quando o fracasso inevitável bate à porta – porque esse é o destino do populismo –, é preciso encontrar culpados, bodes expiatórios. O populismo vive de arrumar inimigos para justificar o seu fiasco. Pode ser o comunismo, a imprensa ou os tribunais.https://af39ba6382ea8a93018518045fe89f3a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
4. As estratégias mais comuns são conhecidas:
a) uso das mídias sociais, estabelecendo uma comunicação direta com as massas, para procurar inflamá-las;
b) a desvalorização ou cooptação das instituições de mediação da vontade popular, como o Legislativo, a imprensa e as entidades da sociedade civil; e
c) ataque às supremas cortes, que têm o papel de, em nome da Constituição, limitar e controlar o poder.
5. O extremismo se manifesta pela intolerância, agressividade e ataque a instituições e pessoas. É a não aceitação do outro, o esforço para desqualificar ou destruir os que pensam diferente. Cultiva-se o conflito do nós contra eles. O extremismo tem se valido de campanhas de ódio, desinformação, meias verdades e teorias conspiratórias, que visam enfraquecer os fundamentos da democracia representativa. Manifestação emblemática dessa disfunção foi a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, após a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais. Por aqui, não faltou quem pregasse invadir o Congresso e o Supremo.
6. O autoritarismo, por sua vez, é um fenômeno que sempre assombrou diferentes continentes – América Latina, Ásia, África e mesmo partes da Europa –, sendo permanente tentação daqueles que chegam ao poder.
7. Em democracias recentes, parte das novas gerações já não tem na memória o registro dos desmandos das ditaduras, com seu cortejo de intolerância, violência e perseguições. Por isso mesmo, são presas mais fáceis dos discursos autoritários.
8. Uma das estratégias do autoritarismo, dos que anseiam a ditadura, é criar um ambiente de mentiras, no qual as pessoas já não divergem apenas quanto às suas opiniões, mas também quanto aos próprios fatos. Pós-verdade e fatos alternativos são palavras que ingressaram no vocabulário contemporâneo e identificam essa distopia em que muitos países estão vivendo.
9. Uma das manifestações do autoritarismo pelo mundo afora é a tentativa de desacreditar o processo eleitoral para, em caso de derrota, poder alegar fraude e deslegitimar o vencedor.https://af39ba6382ea8a93018518045fe89f3a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
10. Visto o cenário mundial, falo brevemente sobre o Brasil e os ataques sofridos pela Justiça Eleitoral.
IV. Referências ao TSE e ao processo eleitoral
1. No tom, com o vocabulário e a sintaxe que é capaz de manejar, o Presidente da República fez os seguintes comentários que dizem respeito à Justiça Eleitoral e que passo a responder.
I. “A alma da democracia é o voto”.
1. De fato, o voto é elemento essencial da democracia representativa.
2. Outro elemento igualmente fundamental é o debate público permanente e de qualidade, que permite que todos os cidadãos recebam informações corretas, formem sua opinião e apresentem seus argumentos.
3. Quando esse debate é contaminado por discursos de ódio, campanhas de desinformação e teorias conspiratórias infundadas, a democracia é aviltada.
Þ O slogan para o momento brasileiro, ao contrário do propalado, parece ser: “Conhecerás a mentira e a mentira te aprisionará”.
II. “Não podemos admitir um sistema eleitoral que não fornece qualquer segurança”
1. As urnas eletrônicas brasileiras são totalmente seguras. Em primeiro lugar, elas não entram em rede e não são passíveis de acesso remoto. Podem tentar invadir os computadores do TSE (e obter alguns dados cadastrais irrelevantes), podem fazer ataques de negação de serviço aos nossos sistemas, nada disso é capaz de comprometer o resultado da eleição. A própria urna é que imprime os resultados e os divulga.
2. Os programas que processam as eleições têm o seu código fonte aberto à inspeção de todos os partidos, da Polícia Federal, do Ministério Público e da OAB um ano antes das eleições. Estará à disposição dessas entidades a partir de 4 de outubro próximo. Inúmeros observadores internacionais examinaram o sistema com seus técnicos e atestaram a sua integridade.
3. Ainda hoje, daqui a pouco, anunciarei os integrantes da Comissão de Transparência das Eleições, que vão acompanhar cada passo do processo eleitoral. Nunca se documentou qualquer episódio de fraude.https://af39ba6382ea8a93018518045fe89f3a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Þ O sistema é certamente inseguro para quem acha que o único resultado possível é a própria vitória. Como já disse antes, para maus perdedores não há remédio na farmacologia jurídica.
III. “Nós queremos eleições limpas, democráticas, com voto auditável e contagem pública de votos”
1. As eleições brasileiras são totalmente limpas, democráticas e auditáveis. Eu não vou repetir uma vez mais que nunca se documentou fraude, que por esse sistema foram eleitos FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro e que há 10 (dez) camadas de auditoria no sistema.
2. Agora: contagem pública manual de votos é como abandonar o computador e regredir, não à máquina de escrever, mas à caneta tinteiro. Seria um retorno ao tempo da fraude e da manipulação. Se tentam invadir o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, imagine-se o que não fariam com as seções eleitorais!
3. As eleições brasileiras são limpas, democráticas e auditáveis. Nessa vida, porém, o que existe está nos olhos do que vê.
IV. “Não podemos ter eleições onde (sic) pairem dúvidas sobre os eleitores”
1. Depois de quase três anos de campanha diuturna e insidiosa contra as urnas eletrônicas, por parte de ninguém menos do que o Presidente da República, uma minoria de eleitores passou a ter dúvida sobre a segurança do processo eleitoral. Dúvida criada artificialmente por uma máquina governamental de propaganda. Assim que pararem de circular as mentiras, as dúvidas se dissiparão.
V. “Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral”
1. O Presidente da República repetiu, incessantemente, que teria havido fraude na eleição na qual se elegeu. Disse eu, então, à época, que ele tinha o dever moral de apresentar as provas. Não apresentou.
2. Continuou a repetir a acusação falsa e prometeu apresentar as provas. Após uma live que deverá figurar em qualquer futura antologia de eventos bizarros, foi intimado pelo TSE para cumprir o dever jurídico de apresentar as provas, se as tivesse. Não apresentou.
3. É tudo retórica vazia. Hoje em dia, salvo os fanáticos (que são cegos pelo radicalismo) e os mercenários (que são cegos pela monetização da mentira), todas as pessoas de bem sabem que não houve fraude e quem é o farsante nessa história.
VI. “Não é uma pessoa no Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável”.
1. Não sou eu que digo isso. Todos os ex-Presidentes do TSE no pós-88 – 15 Ministros e ex-Ministros do STF – atestam isso. Mas, na verdade, quem decidiu que não haveria voto impresso foi o Congresso Nacional, não foi o TSE.
2. A esse propósito, eu compareci à Câmara dos Deputados após três convites: da autora da proposta, do Presidente da Comissão Especial e um convite pessoal do Presidente daquela Casa. Não fiz ativismo legislativo. Fui insistentemente convidado.
3. Lá expus as razões do TSE. Não tenho verbas, não tenho tropas, não troco votos. Só trabalho com a verdade e a boa fé. São forças poderosas. São as grandes forças do universo. A verdade realmente liberta. Mas só àqueles que a praticam.
4. Foi o Congresso Nacional – não o TSE – que recusou o voto impresso. E fez muito bem. O Presidente da Câmara afirmou que após a votação da Proposta, o assunto estaria encerrado. Cumpriu a palavra. O Presidente do Senado afirmou que após a votação da Proposta, o assunto estaria encerrado. Cumpriu a palavra. O Presidente da República, como ontem lembrou o Presidente da Câmara, afirmou que após a votação da proposta o assunto estaria encerrado. Não cumpriu a palavra.
5. Seja como for, é uma covardia atacar a Justiça Eleitoral por falta de coragem de atacar o Congresso Nacional, que é quem decide a matéria.
VII. Conclusão
1. Insulto não é argumento. Ofensa não é coragem. A incivilidade é uma derrota do espírito. A falta de compostura nos envergonha perante o mundo. A marca Brasil sofre, nesse momento, uma desvalorização global. Somos vítimas de chacota e de desprezo mundial.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
2. Um desprestígio maior do que a inflação, do que o desemprego, do que a queda de renda, do que a alta do dólar, do que a queda da bolsa, do que o desmatamento da Amazônia, do que o número de mortos pela pandemia, do que a fuga de cérebros e de investimentos. Mas, pior que tudo, nos diminui perante nós mesmos. Não podemos permitir a destruição das instituições para encobrir o fracasso econômico, social e moral que estamos vivendo.
3. A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas. O que nos une na diferença é o respeito à Constituição, aos valores comuns que compartilhamos e que estão nela inscritos. A democracia só não tem lugar para quem pretenda destruí-la.
Þ Com a bênção de Deus – o Deus do bem, do amor e do respeito ao próximo – e a proteção das instituições, um Presidente eleito democraticamente pelo voto popular tomará posse no dia 1º de janeiro de 2023.
O RETORNO DA POLÍTICA COMO O RETORNO DO RECALCADO
A política só acontece porque na articulação dos conjuntos sociais sempre há uma fresta entre a topologia social cerrada e a emergência de novos sujeitos capazes de questionar a ordenação colonial. É sempre num enclave, numa junção disjunta, que a política retorna. Em que enclave? No entremeio entre os que definem o campo social a partir de ascendências e hierarquias e os que, embora não contados, insurgem-se e se afirmam como sujeitos políticos e em cuja afirmação já se manifesta a clivagem social, isto é, a divisão social.
Os verdadeiros sujeitos políticos se inserem no momento em que a clivagem social se manifesta. Ou melhor, nascem no momento em que, ao afirmarem a sua existência mesma, demonstram o irrepresentável que obseda sempre o que conta numa determinada situação.
Um modo de produção para se reproduzir precisa coisificar os sujeitos sociais e o próprio caráter processual da realidade. Althusser diz que a ideologia interpela o indivíduo enquanto sujeito de tal forma que o indivíduo, imaginando-se acima de qualquer pertencimento social, vê-se como determinante último do real. Uma ilusão de autonomia que constitui a estratégia de dominação, pois, em sendo interpelado como sujeito, o indivíduo se enxerga acima da história quando não passa de um grande murmúrio no silêncio das formas sociais injustas.
Na ideologia, as imagens das formas sociais também são coisificadas. O produzir-se das formas sociais que constitui um projeto jogado, isto é, como escolha civilizatória dentre outras, entrevê-se como destino fatal. Ver o produto social sem o processo de produção é o cerne da fetichização. A política se fetichiza quando o sentido deliberativo da política é negado das formas sutis desde a repressão mais aguda à reprodução de mandatos políticos sem força e autonomia para tocar nas contradições. Só se admitem novidades reacionárias.
Dessa forma, uma formação social só se reproduz pelo trabalho diuturno de negação de seus problemas. Quando há um mínimo de tecido social, a dominação se exerce mediante a criação de noções de desorientação ou pela desnaturação de conceitos com potencial elucidador. Toda a cantilena sobre semipresidencialismo, presidencialismo de coalização, reformas superficiais eleitorais são táticas diversionistas.
O método dialético tem justamente essa tarefa infinita de criticar as noções de desorientação e, no elucidá-las, transpor a situação alienada com a indicação de um horizonte de possíveis factíveis. Pensar é transpor, diz Ernst Bloch.
Não há nada atrás das cortinas, todos os temas veem a tona. A questão é que as classes dominantes, cujo instinto de classe é apurado, desenvolvem estereótipos com o objetivo de, sob o pretexto de tangenciar os problemas, operar uma verdadeira deserção do real. Por isso, a assertiva de Mao Tsé-Tung de que ‘’não se deve esquecer nunca as lutas de classes’’ deve ser entendida no sentido de que o trabalho teórico da critica, de que a prática teórica não deve cessar nunca e que esse exercício torna-se infinito na medida em que se propalam, pelos mais variados meios, temas e problemas e respostas de desorientação. Onde há desorientação, que haja método: trabalho incansável de elucidar a sociedade.
A subsunção material, definida por Marx, não consiste somente na reprodução do trabalho como trabalho assalariado, do trabalho como mercadoria, mas pela reprodução da subjetividade que introjete os valores sobressalentes das formações sociais capitalistas. Sem a fabricação do indivíduo insulado, mergulhado na luta pelos próprios interesses, sem compreensão do horizonte que integra, sem sentido comunitário, o modo de produção capitalista não sobrevive.
Não há fetichização da política sem a supressão da potência política dos sujeitos. Somente por um longo processo de desidentificação com os valores predominantes que o indivíduo se emancipa. Dessubjetiva-se da lógica da dominação, subjetiva-se não mais como dobra do poder, mas como potência comunitária que, visualizando a totalidade social, apreende no ler o real o rastro da emancipação.
A melhor fórmula para definir a existência da política é a fórmula lacaniana: o recalque é o retorno do recalcado. O fato de se estabelecer representações em que as contradições são dissolvidas imaginariamente, construindo uma ‘realidade’ cuja versão é precária, é apenas um índice da existência da política. O fator determinante é a constrição de todas as formas de projetar a possibilidade de que, pelo uso público da razão, as formações sociais cheguem à compreensão de que não são obra do acaso ou do fatalismo, mas são projetos jogados, isto é, são frutos de escolhas que se materializam em instituições. Noutras palavras, o poder constituinte nunca cessa, nunca para, está sempre em movimento em todo pensador genuíno, em todo movimento social consequente, em todo partido que articula a totalidade.
É quando emerge a palavra sem murmúrio ou sibila o grito da dor contida, dizia Fanon, nos ossos dos colonizados. Surge então potências políticas que, sem temer o suplemento do poder punitivo, afirmam o comum. O recalque é o retorno do recalcado. Rebentam pensamentos metamórficos que, sob a pressão, recolhem as chispas e as lágrimas do que a palavra comunismo promete e anuncia.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
DA APROPRIAÇÃO PRIVADA DA LINGUAGEM À ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL
“O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes’’ Mikhail Bakhtin (Volochínov)
A hermenêutica filosófica de índole gadameriana reduz o ser à linguagem. O ser a ser compreendido é linguagem- eis a divisa mais forte dessa corrente. Aposta-se que, na linguagem, adensa-se toda a historicidade da tradição ancorada no acordo comunitário. A redução de toda ontologia- teoria do ser enquanto ser- à linguagem é, deveras, idealista, mas ao mesmo traz em relevo o papel que a linguagem cumpre na dinâmica da sociedade. O semiólogo russo Mikhail Bakhtin traz aportes mais dialéticos e demanda o estudo dos signos na materialidade concreta e diante e dentro da correlação de forças. Como afirma, se a linguagem é indiferente às classes, por sua vez, as classes não são indiferentes à linguagem.
No plano jurídico, a forma com que o legislador plasma as leis e o papel crucial no uso da linguagem cumpre papel decisivo e merece atenção de toda comunidade. Pode-se afirmar que, na técnica legislativa de construção dos documentos normativos, estabelece-se a verdadeira refrega pela produção dos sentidos e quem produz os sentidos detém todos os elementos para forjar a política de uma nação. A própria colonização inicia-se pelo poder de designar, de dar nomes, por isso, é um risco fatal a uma sociedade o monopólio da produção dos sentidos pelos agentes coloniais do império. A questão é mais premente quando se percebe que toda legislação a ser produzida deve instaurar sentidos equivalentes ao texto constitucional. Dessa forma, a legislação não pode ser vista como ancilar à constituição, mas como concretização dos sentidos analógicos da constituição. Nos ensina a experiência que uma constituição, por mais avançada que seja, não se realiza se não houver uma legislação ulterior que se lhe desdobre e se lhe dê efetividade. Não se deve descurar das produções das leis como continuação e como efetivação do projeto constitucional.
Assim como o interprete pode atribuir sentidos alheios à moldura analógica da norma, embutindo sentidos estranhos ao sentido literal, apropriando-se da lei, na legislação também é possível pela redação deliberadamente anticonstitucional entabular outra modalidade de apropriação privada da linguagem. Noutras palavras, é possível promover a apropriação privada da linguagem pelo ato de legislar, discrepando-se, distorcendo-se, anulando-se os sentidos constitucionais.
Ao regulamentar a questão ambiental, a constituição traçou critérios qualitativos que condensam de forma plena a concepção da sustentabilidade, que deve ser entendida como manutenção salutar do metabolismo ser humano e natureza para as gerações atuais e futuras.
Estabelece o art. 225 da CRFB o direito ao meio ambiente equilibrado, o qual deve ser estruturalmente vinculado às balizas objetivas que caracterizam a função social da propriedade. Articula-se a proteção do meio ambiente ao cumprimento da função social da propriedade. As notas definidas no art. 186 da CRFB para a efetivação da função social da propriedade são:
- Aproveitamento racional e adequado;
- Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
- Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
- Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores;
Tais balizas necessitavam de desdobramentos e, no fazer os detalhamentos, esses elementos foram, por meio da legislação infraconstitucional, desvanecidos, esfumados e desnaturados de tal forma que se pode afirmar que o texto foi submetido a uma espécie de revogação pela lei inferior. É preciso cuidar da produção dos sentidos. Só para criar a imagética adequada: lançar um número de animais em certa propriedade, por si só, configuraria cumprimento social da propriedade de forma a favorecer o latifúndio e o avoengo coronelismo.
A lei 8.629/93 estabelece como aproveitamento regular:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:
I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.
Veja-se que, conforme define o incisivo II do § º 2 do art. 6 da indigitada lei, a quantidade do rebanho define o aproveitamento regular, frustrando a expectativa constitucional. Trata-se de um caso de apropriação privada da linguagem por intermédio da legislação.
O projeto de lei 2633 segue o mesmo curso, pois, apropriando-se da linguagem, esporeia a acumulação primitiva do capital, suprimindo a base fundiária dos povos originários e dos camponeses. É condição básica de reprodução do modo de produção capitalista a contínua acumulação primitiva do capital- dizia Marx, esse funcionário da humanidade. O capitalismo não abdicará, sem resistência, da retirada da base fundiária dos povos originários.
Não há apropriação das terras dos povos originários sem a apropriação privada da linguagem. Consoante afirma Bakhtin:
Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presenta em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação 1
É preciso estar atento para evitar que, sob o pretexto de regulamentar a constituição, opere-se rarefações ideológicos verbais, aniquilando-se os sentidos comunitários que a constituição homizia e, por sua existência mesma, instaura nos momentos de armistícios sociais.
- BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010, p.38
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
DA MONTANHA QUE TEMOS QUE VENCER COM URGÊNCIA
Comunistas do mundo, uni-vos
A José Ramos Tinhorão, em nome de quem envio um abraço fraternal a dois poetas decoloniais.
“Toda questão de ordem ideológica, toda controvérsia no seio do povo não pode ser resolvida senão por métodos democráticos, métodos de discussão, de crítica, de persuasão e de educação; não se pode resolver nada por métodos repressivos e coercitivos’’ 1
A assertiva de Umberto Eco de que um texto, quando se desprende das condições de sua emissão, flutua no vácuo é errônea. Primeiro, porque um texto sempre traz junto a si, ainda que de forma tênue, rastros das condições em que foi gestado. Segundo, porque todo texto, ao ser emitido, entra num horizonte indeclinável que determina e condiciona a sua recepção. Abundam exemplos na literatura. A obra-prima Grande Sertão: Veredas- que criou um novo idioma dentro do próprio idioma- foi recepcionada como uma mera novela picaresca de bandos de desordeiros em conflito. Avalovara, de Osman Lins, é tão inovadora no que concerne a forma e, consoante a cibernética, a forma já é mensagem, que até hoje a obra é, absurdamente, ignorada. É nessa problemática que surge a teoria literária da recepção.
A estética da recepção, como corrente literária, busca compreender o modo como um texto produz seus efeitos não num sentido mecânico como a palavra pode sugerir, mas como o texto, na medida mesma em que estrutura de forma a priori sua própria leitura, cria mundos. O fato de a estética da recepção ter enfatizado a importância da subjetividade na recepção do texto não sucumbe ao psicologismo nem confere importância exagerada à subjetividade que, supostamente, seria o alfa e o ômega da interpretação.
Os efeitos do texto são prefigurados pelo próprio texto ainda que a participação da subjetividade que o recepciona seja decisiva nesse papel. Não bastasse isso, nenhuma leitura ocorre fora da mediação de um horizonte de expectativa no qual os textos vão se deparar e ou brilhar na sua grandeza ou, muitas vezes, naufragar tristemente. Por exemplo, a obra de Lima Barreto que desnuda com toda força as contradições pungentes do Brasil revela como um olhar-se no espelho e o reflexo não é nada formoso. O horizonte de expectativa, no contexto brasileiro, por conseguinte, mostra-se totalmente infenso à obra desse gênio que já demonstrara em contos e romances que o racismo deixaria de ser biológico para tornar-se cultural, antecipando muitos filósofos e questões hoje prementes. Quantos autores geniais criaram obras que, de tão ricas, foram incompreendidas? Outras quantas de tão desafiadoras, de forma silente, foram censuradas?
Gadamer define horizonte como o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. O conceito não é satisfatório porque incide num espontaneísmo que ignora o influxo das lutas políticas e das lutas pelas palavras no embater social e que, no fundo, as grandes lutas de classe é o desacordo acerca da percepção da realidade. O filósofo japonês Kojin Karatani quando criou o conceito de Paralaxe quer mostrar que os conflitos de interpretação já demonstram que o real é um topos em que o futuro das formações sociais se desenha e se desenrola (2). O próprio conflito de interpretação revela a não coincidência do real consigo mesmo e a abertura mesma dos possíveis.
Podemos definir horizonte como regime de visibilidade e de invisibilidade instaurado pelas relações de forças que integram qualquer formação marcada pelas lutas de classes. O horizonte de expectativa define, de forma prévia, o que é visível e o que é invisível.
Muitas vezes o regime de invisibilidade é de forma sutil; outras, de forma violenta. Tudo como o escopo de impedir a elucidação das formas sociais e das mazelas que lhe são evidentes. Nessa cumeada, qual o horizonte de expectativa da constituição brasileira vigente? No que aqui importa, releva que a Constituição de 1988 é referta em direitos sociais, impôs freios ao sistema do capital financeiro com normas de eficácia plena- que fora totalmente desregulamentado- e criou um sistema protetivo do trabalho e seguridade social ampla envolvendo previdência social, saúde e assistência momentânea até o debelar, por políticas públicas, da pobreza e das condições miseráveis em que vive, infeliz e tragicamente, parcela relevante de nacionais como nós num país de riquezas inestimáveis. Como uma constituição dessa jaez é recepcionada num país em que o conceito de nação é restrito às oligarquias brancas com a exclusão, mediante permanente estado de exceção, dos povos que nos formam?
Ocorre que tamanha projeção generosa se depara com uma montanha íngreme- a colonialidade do poder- cuja superação requer o esforço descomunal de várias gerações. A colonialidade estabelece várias divisões desde a divisão entre o trabalho manual – que é, erroneamente, objeto de desprezo e o trabalho intelectual: ocorre a racialização das atividades manuais; a divisão sexual na exploração do trabalho feminino, no livro Os Quilombos como novos da terra apresento a hipótese de que a classe operária é tendencialmente feminina como forma sutil de efetivar a precarização dos salários; a divisão etária, suprimindo das crianças o direito de desenvolver sua potência para serem exploradas como mão-de-obra escrava;a violência contra os gêneros diferentes; a foraclusão da questão de gênero e o desatar da violência que decorre disso.
No plano político, o sistema é tão deficiente que impede, salvo raras exceções, a emergência de lideranças populares; o próprio termo populismo é usado de forma distorcida para lançar pecha em quem se arvora com coragem em defensor dos povos; os políticos e os intelectuais que entendem e colocam às claras e com veemência a questão colonial são objeto de campanhas intensas de estigmatização e tidos como caudilhos machistas. O caso emblemático é do grandioso político Leonel Brizola, trabalhista autêntico e crítico ferrenho do modelo econômico colonial que nos afunda na tragédia social. No plano ideológico, a branquidão se vê como o estuário exclusivo das qualidades universais da humanidade e, os outros, são bárbaros cujo direito à vida é desprezado e, quando demonstram algum talento exponencial, são rechaçados brutalmente(3). No Brasil, a colonialidade constitui um horizonte de expectativa contrario às projeções constitucionais.
A saída não é a iconoclastia dos que, como Augusto dos Anjos, ao criticar o fetichismo, destruiu os próprios sonhos (4). A questão é estabelecer o método de elucidação, organizar a sociedade e, criando a disciplina coletiva, colher a constituição pela palavra, efetivando-a para salvaguardar a humanidade com um futuro compartilhado.
A colonialidade do poder é a grande montanha que temos de vencer e é urgente.
- TSÉ-TUNG, Mao. Le Petit Livre Rouge. Paris: Éditions seuil, p. 35. Uso o negrito e indico com precisão a fonte para que saibam um pouco quem foi um dos mais libertários seres humanos da humanidade.
- Quem compreendeu a filosofia de Mao Tsé-Tung sabe que, nas fímbrias de um discurso, às vezes perfunctório, é possível captar o real. Marx dizia que apreendeu economia política estudando a linguagem dos ‘liberais’.
Quando o presidente Fernando Henrique disse que a constituição é um empecilho à governança-palavra que não diz muita coisa- revela que a política que desenvolvera foi no sentido de frustrar as esperanças da constituição. Não é um discurso liberal. O liberalismo é um mito ocidental porque não existe nenhuma burguesia que não seja estatal. Basta ver as subvenções. Toda burguesia é estatal.
Além disso, Mao Tsé-Tung dizia que o liberalismo é apenas um nome vazio para dividir a nação e destruir a disciplina coletiva. E, quando uma nação está desorientada, a tarefa mais urgente é criar o método de elucidação. Criemo-lo, juntos e unidos.
- KARATANI, Kojin. Transcritique: On Kant and Marx. London: The MIT Press, 2003.
- O exemplo de Carolina de Jesus, Lima Barreto, Alberto Guerreiro. Itamar Assumpção, Maria Firmina, Luiza Mahin, Mariele Franco são emblemáticos.
- Excerto do poema Vandalismo de Augusto dos Anjos:
“E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!”
É preciso manter os sonhos. A vida é, também, doce, amigo. E no dia que em encararmos Lima Barreto será um momento de esperança.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
POR QUE O SEMIPRESIDENCIALISMO É ANTICONSTITUCIONAL NO BRASIL?
A Dom Pedro Casaldáliga
“Se alguém pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz, através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.” Franz Kafka
Todo debate de índole constitucional deve partir, por razões de segurança jurídica e fidelidade ao projeto constitucional, do texto e de suas interações estruturais. Conforme salientei, alhures, a interpretação constitucional comporta três níveis: o textual, o estrutural e o histórico. O texto, na medida em que é um vir-a-ser-mundo, traz em bojo a estrutura de sua própria leitura.(1)
Em razões das várias crises político-econômicos por que passa a nação, vez ou outra, uns publicistas- que se arrogam a condição de mentores do país- propõem, contra o texto e contra o intertexto constitucional, a inserção, no nosso sistema político, do semipresidencialismo.
A ideia, para citar Nietzsche, confunde causa e efeito. Todos os problemas políticos brasileiros emanam da autorreferência do poder político que, na incapacidade de deliberar e resolver os problemas coletivos, reduz a dinâmica parlamentar à repartição mesquinha de benesses e prestígio.
A política – que é um ofício nobre- vira simplesmente uma prática de repartição colonial de interesses comezinhos e anti-republicanos.
Para ocultar tais mazelas, forjam-se termos os mais frágeis do ponto de vista teórico tais como presidencialismo de coalização, verdadeira noção de desorientação e, por corolário, ofusca o problema em vez de esclarecer. Na verdade, são termos sem qualquer conteúdo científico e que não merecem nem ser mencionado na medida em que não passam de ideologia da mais simplista possível. (2)
Duas notas técnicas sobre o tal semipresidencialismo:
- Afronta o fundamento maior da República- a Soberania Popular;
- O Presidencialismo é clausula pétrea e, portanto, integra o núcleo imodificável da constitucional;
Reza o parágrafo único do art. 1 da CRFB:
“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
É de hialina clareza que o mandato político, qualquer que seja, emana da vontade popular e não de interposta instituição ou pessoa. Fica evidente a esfuziante anticonstitucionalidade do semipresidencialismo (3). É importante remarcar que a expressão ‘’diretamente’’ se refere às formas de manifestação direta da soberania como plebiscito, referendo e projeto de iniciativa popular, não agasalhando qualquer interpretação que indique a possibilidade de intermediação entre o voto do povo e a produção dos mandatos políticos. A relação entre o povo e os mandatários se dá mediante o voto e não por vias transversas (nível textual).
No nível estrutural, verifica-se que, no âmbito do que Pontes de Miranda denominou princípios sensíveis, tem-se o sistema representativo e a autonomia do Poder Executivo. É de compreensão basal que o semipresidencialismo não se compadece nem se coaduna com o sistema representativo (nível estrutural).
Reza o art. 34 da CRFB:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
Os princípios sensíveis, conforme o gênio de Pontes de Miranda, são aqueles que, sendo inerentes à identidade da constituição, não podem ser retirados sob pena de se deformar o projeto constituinte originário. O sistema representativo e a autonomia do Executivo informam de forma indelével à ordem constitucional hodierna, podendo ser alterados somente por outra constituinte.
No núcleo imodificável da constituição, inserto no § 4º do art. 60 da CRFB, consta a presença indisfarçável do sistema representativo e do voto inalienável, o que, numa leitura intra-estrutural do dispositivo, deixa fora de dúvida que o sistema de governo adotado pelo constituinte é o Presidencialismo. É curial que nenhuma proposta com tendência- é de tendência que se trata- a abolir o presidencialismo não pode sequer ser objeto de deliberação. (4)
Do ponto de vista histórico, a única vez que inseriram o semipresidencialismo foi para manietar a vontade popular nos idos de 1961 para suprimir o poder do presidente popular e trabalhista João Goulart, evitando-se o acicate das reformas de base que ensejariam a mudança sócio-econômica do país. Tanto que deflagraram o golpe militar (nível histórico). Enfim, o Poder Executivo integra a unidade da constituição.
De que o Brasil precisa é de real democracia, retirando da oligarquia o monopólio da política e da vida. E que os publicistas cumpram o seu papel sem apropriação privada da linguagem.
Na cena final do filme- Deus e o Diabo na Terra do Sol- do genial baiano Glauber Rocha, Corisco alvejado, rodopia no ar, tomba e lança o grito ‘’mais fortes são os poderes do povo’’; o grito alteia-se, reverbera, retine, reluz e se eterniza da mesma forma que a arte ultrapassa a individualidade que a concebe.
Fortes também são os poderes do conhecimento e o povo partilhará do sabor de saber-se livre.
- NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018;
- Ver nosso: https://lavrapalavra.com/2021/04/12/da-metodologia-juridica-na-producao-e-na-interpretacao-do-direito-estudo-de-um-caso/
- A diferença entre inconstitucionalidade e anticonstitucionalidade é essencial em países de modernidade periférica. Zagrebelsky, em El Derecho Dúctil, traz essa importante distinção e que deve ser desdobrada com mais vagar. A anticonstitucionalidade demonstra um pendor deliberado em frustrar a constituição.
- Conforme Jurisprudência inaugurada pelo Eminente Jurista e Ministro do STF Marco Aurélio, no caso de tramitação de projeto que fere cláusula pétrea cabe mandado de segurança preventivo a ser impetrado por parlamentar com escopo de garantir o devido processo legislativo e sustar a tramitação (MS 22183/DF, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio).
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
O RETORNO ESTRUTURALISTA A SCHLEIRMACHER: A VIA DAS CIÊNCIAS DO TEXTO
A Manfred Frank e a Lauro Campos
Por sempre nos movermos no horizonte de concepções prévias, a compreensão se apresenta como um círculo no qual as visões são condicionadas. Para Gadamer, o círculo hermenêutico não é apenas uma relação formal entre o todo e a parte, uma relação mecanicista, mas apresenta um nítido sentido produtivo-material. O círculo hermenêutico se apresenta como totalidade em provimento: como a obtenção de um saber mais abrangente. Em toda interpretação atua sempre uma pré-compreensão como condição de possibilidade. A interpretação é estruturada por uma compreensão prévia. Na medida em que a interpretação consiste na mediação daqueles pré-elementos não corre o risco de sucumbir a certo irracionalismo? Como na interpretação verifica-se o vir à tona dos elementos prévios da compreensão?
Gadamer aproxima o tema da finitude (Heidegger) e o tema do negativo (Hegel). À finitude como a impossibilidade do saber absoluto da história é aditado o negativo, não como uma limitação, mas como a experiência que abre espaço para um saber mais abrangente. A finitude, como o ser-aí mergulhado na tradição que lhe acontece, implica a superação do historicismo arrimado na crença de um saber absolutamente objetivo do histórico. A finitude revela a imersão do ser-aí, a pregnância à tradição que nunca se apresenta sob a forma de objeto. A própria imagem do conhecimento se modifica. Não é mais figurada como um sujeito diante de um objeto, pois, na medida em que o ser-aí já é histórico, todo sujeito já é ser-em-situação e não num estado de sobrevoo a partir do qual pudesse, isento das determinações espaço-temporais, apresentar um domínio absoluto sobre todas essas determinações. O ser-em-situação indica que a história nunca será um objeto alheio, mas a matéria em que já se detém desde sempre o ser-aí. A finitude enquanto historicidade rechaça tanto uma objetividade alienante quanto uma autotransparência expressa numa autopossessão completa.
A finitude, nesse contexto, demanda a crítica da fé metodológica de um saber objetivo que pudesse fazer da tradição um objeto alheio ao sujeito cognoscente. É aqui que emerge o tema da pertença à tradição. Gadamer critica a tendência do saber científico que, ao figurar o conhecimento como a posição subjetiva em face de um objeto, esquece que a tradição já opera tanto no sujeito quanto no objeto. A tradição não é um objeto posto aos olhos de um sujeito desenraizado, em pura contemplação. Compreender, diz Gadamer, é pertencer ao ser daquilo que se compreende.
A tradição configura-se como instância de veracidade. A tradição, como comunidade de preconceitos, permite, primeiro, a distinção entre os preconceitos, imbuídos de historicidade, e os juízos da subjetividade, espelho deformante. O estímulo da tradição permite, segundo Gadamer, separar os bons preconceitos dos maus preconceitos. A produtividade hermenêutica do círculo hermenêutico tem uma riqueza produtiva na medida em que permite destacar um preconceito e aferir sua validade histórica. Destacar um preconceito não é afastá-lo dos olhos nem depurá-lo pela abstração, mas visualizar nele a força operante e produtiva da tradição.
Um dos pontos mais críticos da hermenêutica de Gadamer é estabelecer uma linha de demarcação entre o preconceito que obscurece a interpretação e o preconceito que, ao receber o estímulo da tradição, permite fundar um acordo comum. É nesse contexto que Gadamer erige a tradição como instância de validação da estrutura prévia de compreensão. Na medida em que uma pré-compreensão se estrutura no estímulo que a continuidade histórica proporciona obtém sua validade intersubjetiva.
A história efeitual significa a força operante do passado que faz do tempo não um abismo, mas, pela continuidade, reverbera nas compreensões do agora. A compreensão não se limita a reproduzir um sentido já consolidado no passado, mas à cada situação revive e revigora-se na produção de novos sentidos que, não obstante, não se desalinham dos sentidos pretéritos. A tensão entre o passado e o presente é um desafio para o intérprete que, não sendo meramente passivo, também não pode ao alvedrio criar tudo como se fosse tábula rasa. A ênfase na tradição implica em compreender a subjetividade como espelho deformante.
O problema, como assinala Luigi Pareyson, não é a subjetividade em si, mas a subjetividade que se mantém fechada e insulada e não se dispõe à alteridade da verdade que emerge da historicidade. Gadamer, também, nesse ponto, não articula uma interpretação adequada de Hegel. É certo que Hegel põe ênfase no espírito objetivo, mas não limita a atividade do sujeito a uma inserção mecânica na objetividade. Nem a objetividade em Hegel deve ser entendida como algo alheio à subjetividade. Para Gadamer, Hegel hipostasia a subjetividade transcendental de forma que todas as operações do conhecimento, em última instância, remontam à reflexibilidade da subjetividade. Não parece que essa interpretação guarde consonância com o texto de Hegel (1).
Gadamer resgata o conceito de preconceito cujo destino foi obumbrado pelas tendências do iluminismo. O iluminismo propunha a crítica da tradição a qual sempre esteve vinculada ao poder factual insuscetível de questionamento. Dessa forma, a tradição se identifica com a opressão. Para Gadamer, tal perspectiva resulta exagerada, pois, existe uma legitimidade própria da tradição que não se conforma com o poder factual dos dominadores. Na linha da analítica do ser-aí de Heidegger, Gadamer confere ao conceito de tradição uma nova compleição e se lhe atribui a capacidade de legitimar as formas de comunhão inseridas na historicidade da linguagem. A linguagem passa a ser vista como um medium em que opera desde sempre um acordo, uma comunidade de pré-juízos. Nessa perspectiva, a tradição, em vez de figurar como instância opressiva, passa a ser cânone capaz de diferenciar e legitimar as antecipações estruturantes da histórica.
O texto, mergulhado que está na tradição, já está imbuído de estruturas prévias que orientam o intérprete. Aqui se flagra uma contradição que parece muito mal resolvida na teoria hermenêutica de Gadamer. Em várias passagens, ressalta a alteridade do texto, isto é, que o intérprete deve estar aberto ao que o texto tem a dizer, mas, ao mesmo tempo, assevera que somente pelo estímulo da tradição, pelo destaque de um preconceito, é possível asseverar a legitimidade de uma interpretação. Ao se dirigir a um texto, o intérprete não está vazio de pressuposições; na verdade, não há interpretação que não esteja inserida numa totalidade estruturante, numa totalidade de sentido de tal forma que o intérprete não encara o texto sem a mediação das estruturas prévias. Não obstante, a abertura a alteridade do texto é fundamental para que o intérprete não sobrecodifique o texto, impedindo o trabalho do texto. Como Gadamer resolve essa antinomia? Para ele, uma antecipação de sentido é fundada quando encontra ressonância no texto. Dessa forma, é o texto que valida os preconceitos – entendidos como estruturas históricas.
Mas, mesmo ressaltando a alteridade do texto, falece a Gadamer a compreensão da linguística moderna e seus aportes fundamentais para articular melhor a relação entre texto, autor e intérprete. O compreender o método como necessariamente alienante talvez tenha travado o desenvolvimento mais aprofundado das ciências do texto bem como ofuscado a compreensão das lições axiais que Schleiermacher antecipou acerca do método gramatical.
Por isso, Gadamer visualiza todo método como objetificante, tornando o objeto desvinculado da tradição a que pertence. A recusa de toda metodologia parece indicar que Gadamer nem sequer coloca o problema. Tanto é que mesmo evitando falar em interpretação correta, fugindo a toda implicação normativa de regras de intepretação, não afirma que, em toda a interpretação correta, os conceitos temáticos desaparecem naquilo que fazem falar na interpretação?
A falha do sistema de Gadamer é não situar corretamente a relação entre a subjetividade e historicidade e atribuir a todo método uma natureza reificante. Talvez por isso Gadamer tenha afirmado que os elementos subjacentes que operam na interpretação não se tornam conscientes e, mesmo diante de uma boa interpretação, desaparecem, comprometendo toda noção de método, que constitui elemento fundamental de toda hermenêutica. É preciso remarcar que a construção de métodos não significa, de per si, reificação do conhecimento, mas que a reificação que eventualmente possa ocorrer não é algo intrínseco ao genuíno método. Outrossim, nem todo método envolve um distanciamento alienante da realidade. Assiste razão a Gadamer ao afirmar que a pertença à histórica inviabiliza uma metodologia que se supõe acima dos condicionamentos. Todo conhecimento emerge de seres-em-situação, sendo enraizados na história. Não obstante, o fato de estar mergulhado na história não significa a impossibilidade de um saber objetivo e de métodos científicos dotados de objetividade.
Ainda que não tenha desenvolvido um método, Gadamer traz alguns aportes que são essenciais para a apreensão de qualquer hermenêutica. A inevitável historicidade do ser-aí significa dizer que sempre se está no horizonte de uma situação. Desde Kant, o conceito de horizonte tem vigência na filosofia alemã. ‘’Horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto”. Se em Heidegger justamente por estarmos já numa certa compreensão do ser o ser era oculto, Gadamer demonstra que a estreiteza do horizonte estar em ver apenas o que é próximo, limitando-se o âmbito de visão. Por isso, a boa interpretação é aquela em que o horizonte do intérprete se amplia e se alarga na medida mesma em que se movimenta e se abre ao trabalho do texto na superação dos obstáculos hermenêuticos. A ideia de horizonte também se articula com a dialética da pergunta e da resposta que Gadamer vai buscar no historiador britânico Collingwood. Ao interpelar as ações históricas dos agentes, Collingwood afirmava que toda ação histórica é a tentativa de responder às perguntas que emergem da situação. Ao perguntar a que questão os agentes históricos respondiam, é possível identificar o sentido histórico de suas ações. Ao incorporar essa tese, Gadamer afirma que a obtenção de uma situação hermeneuticamente fundada está em propor as questões que a própria tradição coloca e que ressoa nos textos. A obtenção de um horizonte não significa apartar o que está próximo, mas, por meio de um possível distanciamento, inseri-lo numa perspectiva mais abrangente. É sempre possível alargar o horizonte.
Para o intérprete, no que se refere ao aspecto gramatical, o distanciamento fundamental é a distinção entre as associações psicológicas e o significado das palavras. Desde Frege, a distinção entre representação e significado encontra cidadania na linguística. O verdadeiro intérprete suspende as representações subjetivas para partilhar em comum com o significado sempre de natureza comunitária e não só intersubjetiva. Por isso, a apropriação privada da linguagem demonstra que o intérprete não partilha da comunidade dos intérpretes, alheando-se ao ponto de avocar o direito de instaurar a linguagem a partir das próprias representações. Toda interpretação correta sempre envolve a participação num sentido comunitário. A questão que emerge é porque em certos momentos da história e sob que injunções um intérprete se arroga o direito de corroer a linguagem comum e impor suas representações como se fossem intersubjetivas. Marx, em Ideologia Alemã, afirma que a linguagem é a consciência prática e exsurge da necessidade de comunicação entre os seres humanos. A linguagem é desde sempre comunitária.
A reinvenção da hermenêutica passa pela recepção estruturalista de Schleirmacher, enfatizando-se não mais a analítica existencial de Gadamer, mas as ciências dos textos na dinâmica concreta das produções dos sentidos. Nesse sentido, Schleiermacher, na medida em que colocou a necessidade da hermenêutica não no acordo prévio, mas na urgência em resolver os ruídos de comunicação, sempre esteve atento à necessidade de erigir um método gramatical rigoroso capaz de fundar critérios para aferição de interpretações corretas e idôneas. Não deixa de surpreender que, muito antes de todo estruturalismo linguístico, Schleiermacher tenha estabelecido as premissas sólidas de uma ciência do texto. O retorno a Schleirmacher requer, portanto, superar a tradição psicológica com que sua teoria é incorretamente divulgada, para situá-la na juntura entre interpretação divinatória (autor) e interpretação gramatical (texto) e sua recepção (leitor) numa dialética fecunda e criativa em que os sentidos são produzidos de forma objetiva e comunitária sem qualquer disseminação corrosiva (2). Para este mestre, o falar comum é o remédio contra a irracionalidade que pode integrar as subjetividades fechadas e crispadas na aliedade (3).
- A interpretação de que a filosofia remonta todo o conhecimento às operações da reflexividade do sujeito de conhecimento é equivocada. A compreensão de A filosofia de Hegel é que a subjetividade, desde que se mergulhe no ritmo da coisa, pode alcançar a objetividade e a efetividade do conceito. Longe de Hegel de resumir o conhecimento aos meandros da subjetividade insulada.
- Friedrich Schleirmacher antecipou todas as conquistas da linguística de Saussure.
- Aliedade é a suspensão do mundo em voo imóvel e quebra da comunidade de comunicação. A aliedade, pois, se apresenta no intérprete que impõe ao texto suas representações (subjetivas), imaginando-se acima da comunidade e da história. Desenvolvi esse conceito com base na poética de Octavio Paz, poeta da alteridade e do encontro criativo com o outro. A interpretação correta é aquela que, suplantando a aleidade, agasalha a alteridade do texto.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.