UMA NOITE RUMO AOS PEIXES
Uma noite rumo aos peixes,
mas ainda o registro do encardido das coisas perdidas
Mas ainda o encardido das coisas
A lentidão da tarde infinitude inútil
O que fazer numa vastidão
O álcool que chega e arrasta o chão para outros terrenos baldios
Ainda é possível cantar o enorme dia do nascimento
Crescem minhas retinas nelas nasce tua beleza que faz chorar
Um tio ressuscita na lã do carneiro, transformado em sertão
Canícula, alforje, cheiro de esterco
Em que música encontro meu corpo?
Em que copo abandono a mulher que trouxe o gosto de sexo?
Não sei as savanas minadas de risco e possível?
Pulsar o teu hálito forte bafejo marinho
Trazes teu sexo e um venturoso ventre onde eu possa armar meu dia e minha tenda
Onde eu experimente claves e cores e ainda mais brasis
rangem no meu nome as combinações da vida
Chorando em acordes menores talvez venham as chuvas sonhadas
tubérculos e bulbos engolfando-se na terra e cipós farejando os sóis em si transmutam
Somos tudo glória e infortúnio
Augusto queria te dizer: só se sublima pela carne.
Os sólidos fervem seu pouso terrestre nos silêncios nascidos no clamor da vida
inteireza do que resiste….um rio encontra-se com teu ventre …. Frida e a fecundação… como se o que registra a tinta não fosse a vida querendo-se mais….era…
Desenho com meus dedos teu escuro no teu rosto…. às escuras posso te fazer tão bonita quanto és … criar: sopro sobre o abismo…. um desejo de encontrar o que: pedra e casa e cidade onde povoar os dias… Granulações do invisível
As ramagens escrevem à sutil maneira …. nos interstícios algo ocorre e é grande….os homens não sabem da beleza do pássaro que nada sabe apenas vôo e passagem nas rotas nunca redundantes…. não se registra nada…. tudo se apresenta velho preste a morrer de tão forte que a vida chega…
A futilidade chega como um soco…. esperma sobre o monturo sobre o corpo da prostituta…. dispêndio profuso de vinhos, álcool, aos borbotões, derramado sobre o chão ….sobre os corpos empalhados dos bêbados…. os banquetes dos cínicos que não podemos vingar….. Calígula instaura a morte… não será condenado? É possível redimir o tropel dos crucificados? Quem pagará as mortes dos que ousaram vindicar a vinha….
Um místico fervilhando os corações sabe a brincadeira da felicidade em estar sob o sol partilhando do calor do mar e das pedras e do descanso entre árvores…. por que a morte triunfa …. por que Antígona morre….Guevara sucumbe na altitude….Reich definha…
O beijo e a agressão se equivalem Camus? Matar trucidar é romper o equilíbrio do dia me respondes em algum lugar…..não te vi….mas te encontrei ….o escrito há tempo elaborado ninguém sabe sob que condições em que escrivaninha sob que temperatura….lançaste-o sobre as velas…trilhos ….estradas sem saber a que e a quem se destinava….e olha que numa tarde em que o absurdo se colava à minha veste desleixada …. a procura por um livro teu me fez pensar no absurdo e o que tua vida era naquele instante…um livro sobrevivendo ao autor agora poeira estelar cósmica renascendo em Tipasa nas madeiras velhas da casa onde nasceu na Lapa em salvador nas mãos ávidas pelo teu socorro…. volvia-me à praia emitindo o mesmo grito…a mesma ciência de que é preciso esgotar o possível….articular a minha respiração ao ofego selvagem do mar e da vida….saber que os corpos tostados ao sol passariam ….mas o milagre renascerá sempre nos sargaços e no olhar vago da senhora sobre a pedra num descampado que comoveu o amigo
o Grito: Terra, eu nós gritamos: a Terra, a Terra e evoca-se tanta coisa
Meus cabelos querem o mês em que os cipós nos obrigam à rendição….exigem a grande queda gloriosa de nada pretender e simplesmente estar….o querido exílio…..que as barbas cresçam como os cabelos das árvores o musgo sobre a parede…. os dentes da criança e a prudência nas cãs augustas de um velho que sabe o frio e o vinagre sem ressentimento…. Krischnamurti sabe que a morte é uma invenção horrível….. o que se chama morte é o maior abraço possível… a morte está quando se grita com ódio se estanca o fluxo se aniquila o devir o porvir que desestabiliza os amantes da ordem…..eu quero cantar, eu agora canto apenas peixe onda nuvem rio amazônia caatinga instante fulguração frágil….
Concomitante, aborta-se , crispam-se corpos miúdos ante a fatalidade, abrem-se girassóis….alfomadas florais….
ao longo do mar viril a sirene anuncia morte
a agonia de um vivente confronta a baba violenta do mar contra as pedras tudo estrugindo em minha consciência
ingênuo uma tarde qualquer me colocou na loucura a sirene e as ondas eu entre tudo que oscila os coqueiros arfantes a maresias
o sal ferindo o corpo e os edifícios
os transeuntes ignorantes do lodaçal que atravessa a cidade de ventre corroído pelas baratas ratos e as trapaças humanas….o fausto dos edifícios em cotejo com a pele pútrida de mendigos amantes dos monturos em colóquio com os limites do corpo e com o coração manchado de berros as vítimas que não podem ascender ao milagroso sol ….ficaram aos rés do mísero pão e das migalhas que lhes foram entregues por um desapiedado…. de vez em quando os ratos precisam se alimentar- pensa um rato triunfante, talvez não
Suas pulsações decaíram? O bêbado com pele amarelada e com barriga d’agua será que sabe da possibilidade do beijo? Encolhido contra as paredes espaventando o frio se concentrava nele da forma mais dorida
Eu posso esquecer tudo isso? Posso ainda jogar-me sobre o mundo com a venturosa inocência de meus filhos… Ó…. que o motor imóvel do cosmo não tenha consciência….senão ele é um eterno sofredor se não é ele é um eterno sonhador
Mas eu grito: a Terra e tudo se move, se emaranha, se distancia e renasce nasce e renasce e nasce sem que saibamos e sabemos que tudo poderia explodir mas tudo é prosódia e comunhão tudo é comunhão eu vi nós vimos tudo será e tudo foi ontem quando amanhecia atravessei o véu de maia e nada temo e nada desgosto e gosto de tudo e gosto de tudo de ti, de você e de mim e que ninguém mais perturbe a paz das horas.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Poema em Homenagem a Muhammad Ali
Nós, cujas mãos tingida de carvão, hulha e betume,
Arvóres de tronco milenar tornando-se mesa;
Nós, cujas retinas o sol agrediu, furiosamente
Arrancamos da pedra uma nesga de pão
Nós, os condenados e errantes, cujas farpas
Bruxuleiam ao vento acre, guardamos consaguinidade com os húmus
Que no escuro martela lenta e firmemente o solstício,
As estações nascituras, a sístole e a diástole do sol.
Nós, frutos que não inculcam a culpa, arremetemos contra o muro,
Fruímos de uma palavra corrosiva, de uma amizade salutar com o barro vivo desta casas
Nós que por puro amor somos obrigados a desfraldar a liberdade.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
O RETRATO DO FILÓSOFO NAS SOLIDÕES DA COLÔNIA
“Numa atmosfera plumbeia, aparecera meu grande amigo. Viera de outro país. Parecia ingênuo, mas era pura bondade. Éramos maoístas. Tínhamos a mesma formação. Disse-lhe, tranquilo, bafejando um cigarro: pensar de forma articulada é muito arriscado. Percebi, atônito, que nele se formara há muito o senso do risco, o risco de ter a inteligência que viajava entre as esferas e mergulhava no sistema das necessidades, ao me dizer: o problema é encarnar a contradição de toda uma sociedade. Concordando, disse: por essas plagas, o melhor caminho é o murmúrio da literatura e esperar os frutos do tempo. Falei dos pactos, dos inúmeros pactos que comportam a vida, desde Édipo às formas de governo, e lancei Lacan, referindo-me ao meu contexto: a palavra ou a morte. Atalhou num átimo veloz, como se rechaçasse eminências pardas,: para mim restou ”a política ou a morte”. Era como se uma lâmina refletisse o sol e o próprio sol doesse de dor. Silenciamos e ficamos horas a escutar o sibilo do vento enquanto lá longe um relógio imitava os corações. Um amigo profundo que, de alguma forma, me disse que talvez o caminho devesse ser o mesmo e já fosse tarde para mim, agora escritor recluso. Pensando bem, és um intelectual orgânico, disse. Antes de ir, pediu, taciturno, cuidado: “Estamos em tempos de interregno e neles as contradições se agudizam”. Lembrei que me disse que a lei é um artefato semiológico. Respondera-lhe que a linguagem é bom agasalho. Um samurai, cujo perfil sutil sumia no espaço deixando a amargura de sua ausência. Um grande amigo, entre a palavra e a política, a mesma vulnerabilidade dos seres pensantes. Quase lhe disse de longe a frase de Pascal: o ser humano é o caniço pensante. Nunca tinha pensando naquela metáfora e era uma alegria e um temor. E seu passo era de quem já não vacila nem teme o rugido”.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
MARXISMO E A RETÓRICA DA ESCASSEZ DOS RECURSOS
“Entre os dois mundos a trégua nos rejeita”
Pasolini
É preciso perguntar que diagrama de poder uma teoria secretamente secreta. A ciência econômica na medida em que se esvazia em números abstratos ao mesmo tempo, de forma sutil, alimenta políticas voltadas ao controle, conforme dizia Battaille, do fluxo de energia sobre a terra e, outrossim, analisando as várias pressões exercidas pela ação humana, recusa, invocando Marx, o topos da escassez dos recursos.
Marx sempre criticou o topos retórico da escassez dos recursos que sempre é esgrimido para justificar dilemas trágicos inexistentes, o fatalismo inexistente das desigualdades e o controle das populações. Na verdade, o topos da escassez é a forma com que a economia burguesa clássica legitima um modo de produção que cria uma superpopulação entregue à própria sorte, deserdada do comum e desterrada do sistema de necessidades, perecendo por inanição, fome e desemprego. O topos da escassez dos recursos, ao ocultar a forma predatória com que funciona o capitalismo, serve para evitar o tangenciamento do problema central: a questão não é da escassez dos recurso, mas do modo de produção que, forjado na lógica do mais-valor, leva ao esgarçamento do metabolismo ser humano e natureza.
Em Por uma renovação marxista da dependência (1), reiteramos necessidade de verificar as relações entre biologia e as ciências sociais. Na verdade, mais do que nunca é preciso fazer a genealogia da incursão biologicista nas ciências sociais. A própria sociologia, para além do monismo epistemológico pelo qual os modelos das ciências naturais serviriam de paradigma para as ciências sociais, na sua gênese, sofreu o desvio biologicista por Spencer e pela incorporação de um darwinismo social mediante o qual as lancinantes desigualdades encontrariam amparo no argumento de que prevalece o mais forte. Marx e Engels, por sua vez, tiveram que palmilhar um conflito de interpretação em relação a Darwin e, somente depois de um longo debate, entenderam que, em Darwin, a evolução não é a ascendência do mais forte, mas um longo processo pelo qual as espécies criativamente produzem uma homeostase tensa com a biosfera (2).
Ao desvio biologicista das ciências sociais devemos opor uma epistemologia marxista decolonial para que não haja formas silentes de construção de humanismos excludentes fundados na ideia de superioridade racial e formas de políticas inimizades contra os que são considerados inumanos (3). A retórica da escassez ocorre nesse engajamento e precisa ser desvelada para que não se legitime o controle malthusiano das populações.
Marx já assinala que o modo de produção do capitalismo só se mantém na medida em que socava as duas fontes criadores de valor, quais sejam: o trabalho vivo e a natureza. A questão não é a de escassez de recurso, mas sim de refundar o humanismo para que as formações sociais, imantadas pela requisição virtual de todos, estabeleça aquilo que Hegel chama, em A fenomenologia do espírito, de comunidade universal de bens em que se proveriam as necessidades sem distinções ou hierarquias e, para citar, superar a exploração do ser humano pela administração comunitária das coisas.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
1. NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Por uma renovação marxista da Teoria da Dependência. Juazeiro: Oxente, 2022. Se a economia, conforme salientava Engels, é a reprodução da vida, urge, primeiro, descolonizar epistemologicamente a ciência econômica para, depois, mais bem articular a libertação econômica. O livro é um ensaio fundador dessa superação decolonial da ciência econômica tradicional, versando sobre os caminhos factíveis da libertação econômica da América Latina, Ásia e África, desvelando a inflação e a dívida pública como principais instrumentos de dominação colonial e todos os deslocamentos políticos feitos para ocultar essas duas questões crucias, desde a questão das relações de trabalho às relações tributárias, num descortinar da totalidade que projeta a necessidade de refundar a economia no trabalho vivo e no metabolismo ser humano e natureza.
2. DARWIN, Charles. The origin of species. Hertfordshire: Wordsworth editions, 1998. Nas cartas em que tratam das ciências naturais, Marx e Engels revelam o evolver da compreensão de Darwin.
3. Sobre o conceito de ciência em Marx e os desdobramentos possíveis, ver nosso: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 202
EQUADOR INSURGENTE
A Aleida Guevara
“Art. 98.- Los individuos y los colectivos podrán ejercer el derecho a la resistencia frente a acciones u omisiones del poder público o de las personas naturales o jurídicas no estatales que vulneren o puedan vulnerar sus derechos constitucionales, y demandar el reconocimiento de nuevos derechos.”
Constituição do Equador de Outubro de 2008
Quando a multidão tomava as ruas na França para reivindicar contra as reformas trabalhista e previdenciária, François Hollande afirmava, no uso do lugar formal de poder, que o local para o debate político era o parlamento e tão-somente o parlamento. Na verdade, é uma tendência das classes dominantes reduzir à política as regras formais de deliberação para provocar o olvido de que o poder é uma relação em que os efeitos de dominação dependem da cumplicidade dos que lhe são afetados e que há um excedente democrático que, a qualquer tempo, pode se revelar no desvelamento de que toda forma de poder tem base comunitária. Uma opressão só instala quando se erige um mito fundador que subtrai o passado das contradições para instaurar a narrativa de um poder cuja fonte se torna imemorial justamente para produzir efeito de dominação na medida em que promove a justificação de hierarquias. Mais ainda: as classes dominantes tem sido um fator de anarquia e de desordem, corroendo de forma contínua o devido processo legal substancial, promovendo rupturas da ordem constitucional mediante o uso da força ou pelo poder suave da apropriação privada da linguagem. A apropriação privada da linguagem permite o monopólio dos sentidos pelos que representam a colonialidade do poder e a instauração de formas de opressão que são mais sutis e, por isso, de difícil identificação. Por isso, necessitamos de uma nova teoria da violência.
De Platão a Rousseau, a democracia significa a rivalidade das pretensões e a possibilidade de expô-las no debate público. Por isso, a democracia é o alargamento da esfera pública para que as pretensões dos pobres entrem em cena e possam revelar as limitações de um poder que se instaura e se mantém pela constrição dos espaços de liberdade. Quando em Roma os plebeus se rebelaram, Agripa Menênio teve que entrar numa grande encruzilhada: pressupondo que os plebeus não eram dotados de logos teve que se dirigir a eles por meio da palavra. Como usar da palavra em direção àqueles que não são dotados de palavra? É essa a encruzilhada da política e nela que se instaura a sua possibilidade: quando os que são considerados privados dos logos reivindicam de alguma forma a palavra e protesto para assinalar o direito à vida.
É por isso que, no Equador, passa algum fundamental para a América Latina de forma que a democracia, seguindo Mao Tsé-Tung, tem que ver com a exigência de que economia não pode significar a privação dos povos dos meios de existência e que a vida não poder ser monopólio dos centros de decisão da burguesia. Nesse sentido, a política significa encontra os meios de poder para resgatar as condições de produção da vida.
Que a multidão, no Equador, colhendo a constituição pela palavra, reivindique o sentido talhado pelo poder constituinte de que os bens comuns não podem ser apropriados privadamente e que o direito a não ser excluído do direito de lutar pelos seus direitos se converte no dínamo da própria constituição. Trata-se de uma constituição que, no art. 98, consagra a ideia de que o poder constituinte não se encerra na feitura do documento constitucional e nunca se aliena numa representação que não agasalha as pretensões do povo. O sentido do artigo 98 é de que o poder constituinte é permanente e, sendo de titularidade exclusiva do povo, quer queira ou não os que ocupam um lugar formal de poder, expressa o direito do povo a exigir e postular novos direitos. É uma constituição que não aliena o poder constituinte ao poder reificado e consagra o direito de resistência à opressão.
Há um mito do liberalismo pelo qual o indivíduo precede à sociedade e detém um conjunto de direitos de natureza individual que lhe confere uma esfera de liberdade intangível à ação estatal. Trata-se, para lembrar Marx, de um mito. Indivíduo e sociedade se constituem mutuamente numa espécie de ação de contragolpe, para citar Piaget. E isso tem consequências teóricas e políticas cruciais. A teoria é um dispositivo político e se engaja no cruzamento que anula qualquer pretensão de neutralidade axiológica ou de exterioridade às refregas políticas. Toda teoria é interna à luta política. Nesse contexto, Hegel, partindo da co-originariedade entre indivíduo e sociedade, afirma:
“A sociedade tem sobre o indivíduo o direito de que este seja formado com vista a um estado determinado e seja atribuído a esse estado; enquanto que ele, como integrante nativo dessa sociedade, tem sobre ela o direito à sua subsistência e à proteção contra as contingências que a ameaçam.”
Mesmo Hegel admitindo que uma singularidade possa questionar um determinado estado, o mais importante é que foi um dos primeiros a superar a problemática liberal e de ter articulado que uma formação social que não garanta a todos o direito de manter-se em vida faz da liberdade um valor-ídolo sem qualquer efetividade. Não há liberdade sem a concretização dos direitos materiais.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
Pandemia, dilemas trágicos e dialética
“Um partido que suporta a contradição torna-se vitorioso’’
Hegel
Um dos mecanismos da guerra híbrida é o uso da comunicação patológica, lançando relatos divergentes para colocar as formações sociais no impasse decisório e na incapacidade de retomar os elementos básicos para a produção e a deliberação política. A ambiguidade, por meio de relatos divergentes, é mobilizada para a formação social perder os eixos das ações básicas de toda e qualquer formação social: produção econômica e deliberação política. A comunicação patológica produz a indecidibilidade política e, portanto, pode levar à destruição econômica.
O que é a indecibilidade? Numa analogia do campo jurídico, uma antinomia, no sentido técnico, ocorre quando a mesma conduta é regulada por modais deônticos contraditórios: por exemplo, a mesma conduta é proibida e permitida ao mesmo tempo. Nesse caso, o cidadão mergulha num impasse, numa indecidibilidade terrível, pois, o ordenamento jurídico- cuja função é orientar e estabilizar as expectativas- produz um ruído e o deixa confuso num impasse insolúvel. E se produz, de alguma forma, um jogo de soma zero.
A comunicação patológica cria justamente antinomias insolúveis, produzindo profunda desorientação na ação política e econômica. Por isso, na pandemia, algumas formações sociais estão mergulhadas em decisões ambíguas, ora lockdowm, ora retorno às atividades, produzindo relatos antinômicos, provocando incerteza, pânico e, última instância, repressão política para aniquilar a produção da economia. A própria pandemia, na medida em que não se descobre o principio de replicação do vírus, é orientada num sentido trágico de controle das populações, pois, a longo prazo, a paralisação da atividade econômica levará o país à bancarrota de forma que até o combate ao vírus se torna impossível sem aportes de recursos. A pandemia é mobilizada, mediante relatos ambíguos, e direcionada num só sentido: controle das populações e destruição de economias baseadas no trabalho vivo. A solução para tal dilema do prisioneiro é coordenar, de forma adequada, a reativação da economia sob controle rígido das regras sanitárias para evitar a expansão do vírus até se descobrir o princípio da replicação e o controle efetivo da pandemia.
Gregory Bateson foi quem descobriu a lógica do duplo vínculo e a desvelou em várias obras.
A pandemia está sendo usada e mobilizada para, produzindo indecidibilidade, arruinar a economia industrial de certos países, mergulhando num caos que , a longo prazo, levará à bancarrota e, pela via do vírus ou da destruição econômica, ao controle das populações, isto é, quem merece e quem não merece viver à luz da tétrica necrofilia do poder. A covid-19, por ser retrovírus, avança em proporção geométrica, e já se está na quinta onda, e , no horizonte, sombrio, várias ondas podem vir. O capitalismo é a pré-história da humanidade.
Marx, em carta a Kugelmann, mostra que o trabalho vivo é fonte criadora de valor ao conjeturar sobre os efeitos de uma greve prolongada e indeterminada: o que aconteceria com um país se os trabalhadores em geral deixassem de laborar por um período de um ano? A nação pereceria, conclui Marx. A pandemia enquanto interrupção da atividade econômica industrial pode gerar um cenário de massacre dos povos. Para a dialética, abordar uma situação significa entendê-la na totalidade sem fazer concessões a quem quer seja. Um conflito de interpretação pode ser ampliado para uma abordagem mais ancha da situação e aquilo que parece antinomia se revela abordagem complementar. A solução de uma paralaxe é ampliar o horizonte: união de horizontes. E, no caso da pandemia, é necessário, seguindo a linha de demarcação da dialética, coordenar de forma eficaz e combinada a manutenção da atividade econômica e o controle sanitário do vírus. Sem essa coordenação, o mesmo cenário, ainda que por vias oblíquas- vírus- ou concêntricas – vírus e destruição econômica, vai se desenhar sombrio: massacre de vidas humanas e populações.
Em sendo a covid-19 um retrovírus, o combate se insere na linha da guerra prolongada e, nesse momento, a questão sobre qual o modelo de economia determina a maneira de combater a pandemia.
Na visão do capital financeiro, marcado pela capital a juros, cuja fórmula é dinheiro-dinheiro, ”injetar investimentos” configura a fórmula para a circulação autorreferente de dinheiro. Sem investimento, a economia afunda, dizem os economistas oficias. Na política de confinamento, o capital a juros cresce em progressão.
Em se tratando de guerra prolongada e de movimento, busca-se reativar nos moldes tradicionais a economia sem a exigência de medidas sanitárias rígidas. O capital a juros continua prevalecendo. Enfim , o capital financeiro impôs à humanidade uma espécie de dilema do prisioneiro e um jogo de soma zero em que a vida parece não ter valor. O importante é o investimento, dizem. É preciso afirmar que investimento é trabalho objetivado que perdeu as bases materiais.
A solução para tal dilema do prisioneiro é coordenar, de forma adequada, a reativação da economia sob o controle rígido das regras sanitárias para evitar a expansão do vírus até se descobrir o princípio da replicação e o controle efetivo da pandemia. A questão chave é, então, coordenar o retorno à atividade industrial e o controle da pandemia mediante regras sanitárias rígidas.
É paradigma que coloca a vida em primeiro lugar sem descurar do apoio estatal à economia. É paradigma fundado na vida.
Marx salienta que, por forças das contingências históricas, numa única nação pode se concretar de forma complexa e ampla as lutas de classes decisivas de maneira que a nação se torna o epicentro da luta entre todas as nações.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
MAOÍSMO, HEGEMONIA E EMANCIPAÇÃO SOCIAL
A Bartolomé de Las Casas
Mao Tsé-Tung foi pensador genial em cujo pensamento a noção de estratégia é inerente aos próprios conceitos. Oferecia pensamentos argutos e diretivas políticas adensadas em fórmulas geniais. Um mestre insubstituível da cartografia política. ”Resolver as contradições no bojo do povo e resolver a contradições no bojo do partido” é uma diretiva que oferece uma cartografia conceitual para nos libertar da desorientação política e apresenta o mapa necessário de toda construção transformadora. No âmbito do povo, resolver as contradições significa unificar as classes dominadas na produção de uma efervescência democrática capaz de frear intentos despóticos e num bloco de poder coeso, capaz de autocrítica enquanto mediação mobilizadora e, no âmbito do partido, evitar a danosa infiltragem e a cooptação para o imperialismo, evitando-se o fetichismo político de forma que o partido se torna o instrumento de mediação do interesse geral do povo. Um povo unido constrói partidos capazes de traduzir em termos de decisões político-econômicas seus interesses universais.
A diretiva genial, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci.
Um dos problemas da luta social é a distorção dos conceitos e a incompreensão da forma com que se realiza a luta de classe. Na América Latina, a conjuntura é sempre mais complexa do que na Europa. Os governos de oposição consentida já tem o apoio secular da aristocracia financeira, dos grandes proprietários de terra e da pequena burguesia, especialmente a acadêmica que, sob o verniz de progressismo, é extremamente conservadora porque não abdica de seus privilégios obtidos pela lógica do prestígio e, muitas vezes, pela aparência progressista, se infiltram nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais para conter sua força expansiva. Nada mais reacionário do que o progressismo da pequena burguesia falante em suas ‘rebeldias’ performáticas vazias. Essas três classes tem aliança perpétua. Se, porventura, o país tem partidos de contradição antagônica e movimentos sociais coesos, os governos de oposição consentida, além da infiltração, buscam cooptá-los mediante benesses administrativas e privilégios camuflados, corrupção, ou, se não conseguir isso, mediante a estigmatização e a persecução penal da superpopulação relativa.
Um dos sintomas mais claro de que um governo não é de esquerda se dá quando sobrecodifica a questão econômico-social pela persecução penal dos pobres. E, nesse caso, rótulos só servem para escamotear uma estrutura profunda de repressão fascista.
O primeiro sinal do fascismo é a militarização das escolas e do cotidiano. Cria-se, sob o discurso da ordem, um panóptico sutil sobre os talentos. Nenhum fascismo se faz sem o jogo e o jugo do olhar censor sobre os talentos. Observa-se que os grandes escritores do nosso continente perceberam o panóptico colonial. Em vários contos de Córtazar se vê a forma sutil com que o fascismo, desde forma esmaecida, mas concreta, ganha figura, e, avultando-se tenebroso, desaba sobre os países. Estamos num período em que o fascismo se torna rizomático e, não dizendo seu nome, ancora-se mais sutilmente nas escolas e nas ruas, nas sondagens, na chantagem publicitária e na repressão absoluta da morte. O fascismo é o mecanismo político pelo qual se interdita o questionamento político das formações num processo contínuo e crescente de despolitização que, indo às últimas consequências, não tergiversa em instaurar a repressão pela morte. Pela sondagem militar e ilegal das pessoas, busca-se interditar àqueles que possam questionar a interdição; não sendo possível o silenciamento, instaura-se a morte enquanto mensagem cotidiana de poder obsceno: corpos empilhados nas ruas enquanto signo da ameaça.
Não obstante, seguindo Nietzsche, o fascismo nunca é ativo, mas é sempre reativo às insurgências democrático-comunitárias. Se há fascismo, é porque alguma comunidade pode se estabelecer.[1]
Em Ler em Louis Althusser, escrevo:
“A questão ‘’o que é se orientar na política?’’ emerge crucial e, ao entender que existe uma linha de demarcação justa, uma linha justa de definição, podemos evitar o diversionismo tão ao sabor do capital financeiro e devolver às formações sociais a orientação pela qual os problemas que lhe são congênitos sejam abordados e, por corolário, enfrentados corretamente.”[2]
Devolver às formações sociais a orientação pela qual possam enfrentar os problemas centrais é superar o progressismo. Os governos progressistas, sem exceção, giraram em torno de temas subalternos objetivando preservar a dependência econômica e, por mais paradoxal que seja, o desenvolvimento do subdesenvolvimento. É mais fácil iludir com bônus e bolsas famílias do que reprimir com canhões. Acontece que, quando o capital entra numa de suas crises cíclicas, aposta mais na repressão do que nas ilusões das demandas no sentido de Laclau. Ao mesmo tempo, quando começa um caldeamento teórico-prática de base popular em formações sociais de política fetichizada, a aposta é na oposição consentida. A jogada do império é criar uma espécie de duplo vínculo patológico que torna as formações sociais neuróticas no sentido da psicanálise, isto é, perdidas nas falsas antinomias de superfícies que, mantendo a aparência democrática, deixa intocáveis as bases econômicas da dependência, e mantém o jogo político como monopólio das classes dominantes. Entre os corifeus da repressão ostensiva e os fanfarrões dos bônus familiares, há uma grande cumplicidade, um solo comum: a aceitação acrítica da dependência econômica. Os progressistas integram, sem exceção, as classes dominantes. E todos sabem quem são os progressistas.
A vitória da esquerda, portanto, depende da construção do que Gramsci chama Hegemonia, a qual deve ser capaz de escapar, numa linha de fuga para citar Deleuze, do duplo vínculo patológico. Umas das razões da melancolia política na Europa e em certos países da América Latina é a incapacidade da oposição consentida em mobilizar os setores populares que, por serem dotados de percepção arguta dos problemas concretos, não se sentem mais mobilizados para a seara política. Há uma melancolia política ancorada num extremo realismo político. Por isso, apenas partidos de contradição antagônica tem a capacidade de fazer os setores populares sentirem entusiasmo pela política novamente.
Hegemonia, pois, consiste na capacidade de uma classe lograr apoio crescente das classes que estão na mesma situação de classe para produzir a mesma posição de classe, formando um bloco de poder que, pela força que ostenta, impede que qualquer representação se autonomize do projeto popular que a sustenta. Noutras palavras, a hegemonia é a força social que não se aliena mediante a representação de tal sorte que a representação não consegue se apartar da principiologia social que lhe deu origem. Conforme diz Marx:
“A emancipação humana não é realizada senão quando o ser humano reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais e não separe dele essa força social sob a forma de força política”[3]
Um partido é hegemônico quando a sua força política não reúne condições de se isolar e se autonomizar, de forma autorreferente, da força social que lhe deu substância. Se lograr a força social, pela intersecção da classe obreira, intelectuais orgânicos, movimento indígena, movimento campesino, movimento feminista anti-imperialista, o partido torna-se hegemônico, e a vitória é a inquebrantável. Não há como a esfera política se alienar da força social sem que sucumba nas suas pretensões ilegítimas. Nem o partido se insula na pobre autorreferência de interesses privados.
Portanto, a construção de um bloco de poder coeso e unido depende da resolução das contradições no âmbito do povo e das contradições no âmbito do partido.
A diretiva genial de Mao Tsé-Tung, a nosso ver, é mais abrangente do que o conceito de hegemonia em Gramsci e permite resgatar a viva paixão pela igualdade e pela política.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] Para a Sigmund Freud, a neurose se caracteriza pela incapacidade de aprender. O duplo vínculo patológico fecha o horizonte de emancipação de maneira que as formações sociais ficam perdidas em círculos viciosos políticos em que há o simulacro de alternância no poder sendo que o processo político continua monopólio das classes dominantes. Neutraliza-se o antagonismo irreconciliável pelo jogo das meras diferenças. Nesse aspecto, a recepção decolonial da psicanálise é fundamental para compreensão da colonialidade do poder e das manifestações do fascismo. Da mesma forma que o superego cria estruturas reativas, não há colonialidade do poder sem a perpetuação de formas reativas de ser-em-grupo, instaurando diagramas de repressão e de vigilância. O livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, serve de preâmbulo para essas novas escavações teóricas. Pode colaborar, também, para o desvelamento das situações em que o oprimido hospeda o opressor. Fanon usa a noção de mais-valia psíquica ao ir no rastro desse grave problema para os movimentos sociais. Enfim, é possível uma reinvenção decolonial da psicanálise.
[2] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Pensar desde as margens da modernidade: a emergência de novas heterotopias. Ebook. 2ª Ed. Juazeiro: Oxente, 2022, p. 14.
[3] MARX, Karl. Ouvres Philosophiques, Tomo V, Paris: Alfred Costes, 1948, p.202.
FACAPE: a intervenção necessária.
Eu tive a honra de me formar em Direito na FACAPE, curso que se mantém a anos dentre os mais recomendados pela OAB, muito mais pelo esforço individual dos estudantes que tomam o destino nas mãos e se prepararam para contribuir como advogados, juízes, promotores, defensores, procuradores, em colaboração aos demais profissionais lá formados, que cuidam da economia, da administração, do turismo, dos negócios da região.
Ainda como estudante, tomei parte em discussões sobre o modo peculiar de administração implantada na faculdade. A começar pela pessoa jurídica que ela é: uma autarquia que supostamente é mantenedora da faculdade, quando na verdade é a Facape quem sustenta a AVESF e sua máquina burocrática dispendiosa.
A gestão se assemelha ao sistema parlamentarista. É composta por um presidente que representa a autarquia externamente, tal qual um chefe de estado ou a rainha da Inglaterra, um diretor executivo que tem mais poder internamente que o presidente e dois outros atores menos relevantes, um diretor financeiro e um diretor acadêmico, com mandato de quarto anos e uma agenda vazia.
Na sexta-feira, li nos blogs locais que a prefeitura decretou intervenção na autarquia, com intuito nobre de frear a marcha acelerada para bancarrota financeira, que se assoma como previsível desde 2013, quando lá estive alardeando essa possibilidade, hoje inegável.
Então, diante dessa triste constatação, arrogo-me no dever de aqui sugerir alterações na estrutura administrativa da Facape, que sempre me pareceram capazes de prolongar o fôlego financeiro da nossa faculdade. A começar pela a adoção de novo modelo de gestão e de nova pessoa jurídica, que certamente lhe traria benefícios imprescindíveis nesse momento de reestruturação, reivindicado pelos servidores e pela sociedade petrolinense.
Acredito que o melhor para faculdade seria a extinção da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco para dar lugar a Fundação Facape, com um modelo na qual apenas o presidente seria eleito para um mandato de quatro anos. Cabendo ao presidente eleito, nomear um Diretor Executivo de sua confiança, um Cordenador Financeiro dentre os profissionais técnicos da própria Facape, e um Cordenador Acadêmico com interlocução com professores e alunos.
Ao invés de um coordenador, com alto salário, para cada curso, sugiro a criação de dois departamentos: um para as Ciências Sociais e outro para as Ciências Médicas, com chefes com dedicação exclusiva e uma pequena gratificação pelo exercício do cargo. Eleitos pelos respectivos colegiados (docente e discente), também para um mandato de quarto anos.
Em vez de uma Comissão de Concurso, com três membros ganhando altos salários, com o presidente ganhando trinta por cento a mais que a remuneração dos vogais, um departamento técnico onde os membros ganhasse a medida que conquistasse novos contratos, colaborando decisivamente para maior diversificação da renda da Fundação Facape.
No lugar dos inúmeros cargos de confiança que sobrecarregam os gastos com pessoal e dos empreendimentos improdutivos sob a tutela de doutores bem pagos, que pouco ou nada contribuem para o progresso da Facape, sugiro a criação de consultorias técnicas, aptas a disputarem espaço no mercado, levando conhecimento e profissionalismo às empresas públicas e privadas do Vale do São Francisco.
Fora daí, restaria apenas redobrar os esforços empreendidos nas boas ideais como a ampliação do leque de cursos, a educação à distância, hoje tão em voga, e um mecanismo legal que obrigue a prefeitura a honrar os compromissos que assume, como pagar pela formação dos bolsistas em geral e, especialmente, dos servidores municipais e seus dependentes.
E, por fim, aposentar os professores que já conquistaram esse direito, para que desonerem a folha de pagamento com seus supersalários, muitos deles acima de 20 mil reais.
Essa, sim, seria uma intervenção necessária.
Por: Adão Lima de Souza, ex-aluno da FACAPE.
POR QUE MARX INVENTOU O SINTOMA?
Marx afirma que, quando foi redator na gazeta renana, foi constrangido a tratar de problemas materiais. A que problemas materiais se referia? Nesse momento de inquietude filosófica, a filosofia é interpelada a discutir as questões de terra e a condições sociais dos camponeses. É um instante decisivo em que Marx trava uma verdadeira batalha semiológica. Analisa os textos legais, lê, apressurado, os artigos da imprensa e, no rastro da linguagem, identifica, pela primeira vez, que a sociedade não é um todo orgânico, mas marcada por contradições que são ocultadas pela inversão ideológica dos problemas. É no analisar a forma com que, na Inglaterra, se colocou a questão da miséria que Marx enxerga o sintoma. É no terçar das armas das críticas que Marx inventa o sintoma.
Para Lacan, Marx inventou o sintoma não no sentido de uma criação arbitrária, mas por ter, pela primeira vez, visto e enunciado um problema que estava no real sem ter sido elevado ao plano da linguagem. Inventar o sintoma é entender a racionalidade da contradição, isto é, que uma contradição indica um conflito incontornável e que a maneira com que se tenta esconjura-lo já desnuda o próprio conflito. Inventar o sintoma, pois, é elevar à presença da linguagem uma questão ainda não formulada, mas em estado de latência na prática social.
Marx só identifica o sintoma quando, pela análise do discurso, por uma semiologia social rigorosa, visualiza com clarividência as racionalizações que desorientam as questões, lançando-as para o plano em que não podem ser resolvidas a não ser imaginariamente ou reprimidas de forma cruenta pela violência. Marx entende logo a inversão ideológica quando a questão da pobreza é colocada sob a perspectiva da culpabilidade do próprio cidadão excluído e pele sobrecodificação da questão social pela questão criminal. Em Glosas Crítica assertoa:
O Parlamento inglês combinou essa teoria de caráter humanitário com o parecer de que o pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo trabalhador, não devendo, em consequência, ser prevenido como infortúnio, mas reprimido e punido como crime.
Marx, como semiólogo, nota as racionalizações e chega à borda da grande contradição: a produção de riqueza está atrelada à produção de miséria e, a partir dessa simetria inevitável nos marcos do regime de propriedade capitalista, desenvolveu o modelo teórico das lutas de classes (no plural analógico). As lutas de classes significam a impossibilidade de a sociedade capitalística se representar de forma não antagônica.
Os aparelhos ideológicos são mobilizados como racionalizações com vistas a obscurecer as lutas de classes, a torná-las meras diferenças, esvaindo-se seu caráter agônico – no sentido grego do termo. Laclau insere o populismo na lógica das demandas, mas, por diluir a categorias das lutas de classes, não consegue estabelecer uma linha de demarcação para orientação crucial das refregas políticas. As lutas de classes são obscurecidas pelas demandas que impedem a sociedade de saber buscar a própria emancipação econômica.
O progressismo vazio se enreda na difusão das demandas e não toca questão central: a discussão do modo de produção. Bolsa família, bônus e rendas básicas são fantasmagorias de quem não quer enfrentar a questão decisiva. Enquanto a demanda indica o aprisionamento na circularidade vazia, a crítica marxista indica para a questão central pela qual se retoma o fio da meada: a batalha pelos modelos econômicos que, na América Latina, só poder ser empreendida pela unidade política da intersecção da classe operária e camponesa e os movimentos anticoloniais e anti-imperialistas.
Para Laclau, no plano político, deve imperar a razão populista, e, no plano econômico, a questão das classes econômicas. Ainda que seja engenhosa, e com largos conhecimentos linguísticos, faltou à teoria de Laclau a visão da totalidade e, onde vê determinações fixas, há a dinâmica inextrincável entre economia e política. Mais uma vez, o pensamento de Mao Tsé-Tung permanece vigente e vívido, sabendo articular de forma coerente a questão popular e questão de classe. Segundo o mestre, no contexto da guerra contra o Japão, povo era a união da classe operária e dos nacionalistas burgueses. Vencida a guerra, povo era a união entre a classe operária e os camponeses. Os termos são moventes analogicamente.
Só há política porque a contradição exige toda uma maquinaria deliberativa preordenada, em tese, à resolução dos problemas coletivos e que, ainda que se reifique, precisa mobilizar-se sob as várias formas reais ou imaginárias para impedir o deparar com as contradições. No capitalismo, a legislação torna-se simbólica numa simulação imaginária dos problemas pela proliferação de leis repletas de uma linguagem piedosa, mas carente de efetividade porque faltam as condições concretas para sua realização. A disseminação de leis é uma forma de a sociedade simular a solução de problemas que ela que não quer encarar. Em Constituição de Atenas, Aristóteles afirma que a constituição só se realiza se for superado o abismo entre ricos e pobres.
As lutas de classes, nesse sentido, constitui a condição de possibilidade da política. Só há política porque, no cerne do modo como se produz, cria-se uma superpopulação relativa, a qual, pela própria presença, ainda que não articulada sob a forma de organização política, ameaça a ordenação hierárquica da sociedade burguesa. Não é regressar à determinação unívoca, mas entender que só há política porque há um fosso entre ricos e pobres e que surge a necessidade de se criar instâncias de mediação institucional que, por mais neutras que se declarem, surgem mesmo dessa contradição ínsita à sociedade. O estado colonial, na sua gênese, não é o que reúne, mas o que surge para que evitar a dissolução ou o deparar com o caos básico da economia burguesa. Mas nada impede uma reorientação comunitária do Estado num sentido de construir, desde as bases populares, a reapropriação dos bens comuns.
Sartre diz, em Crítica da Razão Dialética, que foi a presença massiva da classe operária que fez o existencialismo entrar num ponto de bifurcação e aderir ao marxismo. A intuição é correta. Mas penso que, desde a América Latina, a questão é a percepção da superpopulação relativa. O que caracteriza o modo de produção capitalista é a multiplicação dos proletários- diz Marx. E disse mais: o apanágio do sistema capitalista é a produção da superpopulação relativa. A superpopulação relativa existe em três formas: a) a líquida ou fluente; b) a latente; c) estagnada; o que significa dizer que, no plano do capitalismo, o pleno emprego é uma ilusão muitas vez azeitada por pesquisas sem base empírica e reformas superficiais que servem para camuflar a questão central.
Rosa Luxemburgo colocou a questão corretamente: não há que negar o valor em si das reformas; toda reforma que, ao mudar gradativamente a realidade social e econômica, aumenta a consciência para si do proletário e instila um anseio pela ampliação da democracia, constituindo passo essencial na transformação cabal das formações sociais, é viável. Admoestáveis são as reformas rasteiras- estilo bolsa família ou bónus familiares – que escravizam e são engendradas numa lógica neocolonial e coronelista.
É preciso reafirmar a centralidade da questão econômica e enunciar que o devir humano envolve a necessidade de um modo de produção comunitário em que o direito à vida, o direito à saúde e o direito ao trabalho sejam direitos universais e não submetidos à decisão de oligarquias reacionárias. E, para isso, retomar o conceito de que a economia é o campo de reprodução da vida e, não a circulação autorreferente de dinheiro sem lastro material, é o ponto de partida incontornável de toda pretensão política genuinamente de esquerda. O trabalho vivo e a natureza são as verdadeiras fontes criadores de valor[1].
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] “A relação em espiral entre economia e política constitui o ponto de partida ineliminável. O projeto neoliberal, para os países periféricos, se funda naquilo que Gunder Frank chamou de desenvolvimento do subdesenvolvimento. No atual cenário, o Estado deve se limitar a lastrear o pagamento da dívida pública. O suposto elogio do mercado capaz de, por suas leis, realizar o ótimo social é um desvio ideológico para subordinar o Estado ao papel subalterno de mero fundo de capital. Isso mesmo: o Estado só para os donos dos negócios. Digamos diretamente: não há burguesia que não seja estatal. Não é mera coincidência que a constituição de 88 com vinculação orçamentária e direitos sociais tenha sido objeto de crítica há muito; a ênfase na austeridade fiscal representa justamente essa subordinação ao capital financeiro pelo mecanismo da dívida pública: privatização, destruição dos serviços públicos para criar campo vasto ao setor privado como educação e previdência, fim de investimentos sociais, acumulação de capital nas mãos de poucos, sendo os pequenos empresários sorvidos nesse processo (até onde vai a autofagia?); tudo isso, como disse Keynes refutando Hayek, gera o péssimo social cujo controle é entregue à política de Malthus e à máquina policialesca”.
DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ANALÓGICA SOBRE O MARCO TEMPORAL
“A linguagem é o dom mais perigoso dado ao ser humano para que ele herde aquilo que ele é”
Holderlin
- À GUISA DE INTRODUÇÃO
Um sistema se compõe de elementos e da relação entre esses elementos. A relação entretecida entre os elementos compõe a estrutura. As leis de composição, não se confundindo com elementos tomados isoladamente, moldam e plasmam a estrutura. Ainda que nenhum elemento tenha existência fora da relação, é possível, mediante a variação imaginativa, destacar de uma estrutura os elementos que a compõe para, após, remarcar melhor as relações na totalidade. Todo método engaja sempre análise e síntese[1].
O ordenamento jurídico, como sistema aberto, não é uma realidade pré-existente, completa e já dada em suas configurações de sentido. O ordenamento é um campo de possibilidades interpretativas que demanda a leitura para sua consumação e, para isso, conforme ensina Lourival Vilanova, a necessária formalização lógica diante da realidade sempre inusitada em aspectos ainda não formalizáveis.[2]
A formalização, no caso jurídico, depende da maneira com que o texto é relacionado com à estrutura a que pertence e dos signos históricos que o sistema pode internalizar sem desfigurar a sua compleição interna. As configurações e as desfigurações da interpretação se inserem, ainda que não haja consciência, pelo modo com que se formalizam os dados da experiência jurídica.
Em outro lugar, salientamos que as ciências sociais, na medida em que estudam um objeto já prenhe de sentido, enfrentam uma aporia inevitável decorrente da dupla função hermenêutica que se lhe subjaz: voltar-se ao estudo do significado já dado socialmente ou submeter a significação social ao modelo dos fenômenos físicos.
No caso da ciência jurídica, é fundamental compreender que, ao interpretar a lei, emite-se, concomitantemente, um juízo sobre a lei. Ou seja, a maneira com que se forma uma tradição jurídica centrada num conjunto de hábitos e formas de ser e de pensar condiciona a intelecção e a formalização dos dados empíricos do sistema jurídico.
O ordenamento jurídico, mais do que uma ordem dada, é uma tarefa delicada de produção de sentidos que exige um esforço hermenêutico significativo que, à míngua de método, pode levar à corrosão dos sentidos estabelecidos coletivamente e o esgarçamento da tipicidade pela qual o direito realiza[3][4]. A dispersão da linguagem, no plano jurídico-político, gera golpes de estados, opressões internas e externas, perseguições racistas e sexistas. Conforme salientava Octavio Paz, na América Latina, lutar pelo sentido comunitário das palavras é o princípio de grandes transformações.
A construção de métodos jurídicos sólidos é a condição axial da realização escorreita e objetiva da ordem jurídica. O saber crítico cumpre função central para evitar que a prática jurídica se converta no que Sartre, ao analisar a lógica dos grupos, denominava prático-inerte, isto é, uma prática serializada na repetição e cujos princípios, não sendo elevados à consciência, dominam os agentes que se tornam reprodutores dos ‘valores’ prevalecentes de forma acrítica.
Nesse sentido, as discussões sobre a dicotomia entre teoria da argumentação, centrada na estrutura lógica dos raciocínios, e a teoria hermenêutica, ligada ao horizonte prévio e compartilhado de pré-juízos, tornam-se ociosas. Enunciar que a prática jurídica acontece no horizonte argumentativo, isto é, de proposições com pretensão de legitimidade não quer dizer a negação de que existe um fundo compartido de expectativas, valores e ações constitutivas no plano da prática social que figura como pano de fundo para a argumentação. A questão é analisar como se dá o trânsito do saber já vivido na práxis e de como a formalização obedece aos critérios científicos. Por isso, é preciso pensar a hermenêutica mais em termos de obstáculos hermenêuticos do que em termos de pré-juízos. O epistemológico Gaston Bachelard enfatizou que o papel da ciência é a representação geométrica e objetiva da experiência.
- Nível Textual
Se entendermos que a inteligibilidade de qualquer sistema não é limitada ao aspecto interno, mas depende das conexões com a totalidade aberta, o sentido literal só se desvela quando articulado à estrutura na qual se move e na qual encontra ancoragem e horizonte de significação e às influências históricas que sofre. Mas a análise é importante para a representação científica desde que, após sua manifestação, empreenda-se a articulação sintética do todo estruturante complexo. [5]
Todo signo, conforme alertava Saussure, na medida em que se define pelas relações de vizinhanças com os outros signos, ostenta um campo associativo que funciona como uma moldura analógica formada por termos estreitamente ligados, impedindo uma deriva aleatória dos significados. Afirma Saussure: “uma palavra pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de uma maneira ou de uma outra” [6]
O campo associativo é um campo analógico no qual sentidos aproximados se relacionam sem implicar em corrosão do significado. Mesmo o sentido metafórico não se contrapõe ao sentido literal. Ao contrário, serve para realçá-lo e flagrar a relação analógica entre os termos.
Conforme registra, de forma fecunda, Gadamer:
“(…) se alguém realiza a transposição de uma expressão de algo a outra coisa, está considerando, sem dúvida, algo comum, mas isso não necessita ser, em nenhum caso, uma generalidade da espécie. Pelo contrário, em tal caso nos guiamos pela sua experiência em expansão, que leva a perceber semelhanças tanto na manifestação das coisas como no significado que elas possam ter nós. Nisso consiste precisamente a genialidade da consciência linguística, em poder dar expressão a essas semelhanças. Nós chamamos a isso seu metaforismo fundamental, e importa reconhecer que não é senão preconceito uma teoria lógica alheia à linguagem o que nos induziu a considerar o uso transpositivo ou figurado como um uso inautêntico”[7]
Por exemplo, a palavra mãe sugere a ideia de origem, causa, ascendência. A moldura analógica, portanto, se limita com o campo associativo que cada palavra deflagra. Toda linguagem é feita e repassada de metáforas fossilizadas, já dizia Jorge Luis Borges. A metáfora é a substância mesma da linguagem.[8]
Feitas essas consideração introdutórias, vejamos os textos – constitucionais e infralegais- que versam sobre o direito dos povos originários.
Reza a Constituição:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
No nível estrutural, vamos empreender a análise da relação entre propriedade e posse, mas, no que concerne ao nível textual, concentrando-se no verbo enquanto núcleo, a constituição estabelece um campo analógico entre o verbo habitar ao qual, analogicamente, se vincula o adjetivo ocupadas e habitadas bem como o advérbio tradicionalmente. [9] Dos dispositivos se infere o analogado principal: terras já ocupadas tradicionalmente[10]. Nesse sentido, a ideia de que o direito à posse permanente se vincula à data da promulgação da constituição ou outra marco vinculado à promulgação não tem correlação com o analogado principal, extrapolando a moldura analógica. [11]Trata-se de um caso gritante de apropriação privada da linguagem.
A lei de nº 6001/73 – Estatuto do Índio- também, no art. 22, consigna a expressão posse permanente das terras que habitam e não estabelece nenhuma condição temporal.
Dessa forma, a tese do marco temporal agrava o sentido literal, transbordando da moldura analógica, estabelecendo uma condição ad hoc para um direito que, de acordo com a constituição e a legislação infraconstitucional, não tem condição temporal para seu reconhecimento.
- Nível Estrutural
No nível estrutural, deve-se identificar o eixo temático a que está adstrita a questão. No caso sob exame, envolve a análise da conexão dos direitos reais de propriedade, posse e usufruto.
São internas ao direito de propriedade as seguintes faculdades: a) de usar, consistente na possibilidade de servir-se da coisa b) a de gozar, consiste na percepção dos frutos e produtos da coisa, e c) a de dispor, consistente na possibilidade alienar- transferir para outrem- a coisa e d) a de reivindicar, consiste na possibilidade de reaver a coisa de quem quer que seja.
Os direitos reais, na perspectiva burguesa, são analisados sempre de maneira recortada e estanque, especialmente a relação entre os institutos centrais da propriedade e da posse. Marx e Engels perceberam o mecanismo subterrâneo que orienta a visão hegemônica da propriedade e da subalternização da posse:
“Essa ilusão jurídica, que reduz o direito a uma vontade única, conduz fatalmente, no contexto do desenvolvimento das relações de propriedade, ao fato de que se pode ter um título jurídico de uma coisa sem ter qualquer relação real com ela” [12]
É possível, portanto, ter uma propriedade, mediante um título, sem qualquer relação real com a coisa. As mais variadas versões da categoria jurídica de direito subjetivo pressupõe essa abstração. Leon Duguit, ao defender uma concepção de direito fundada na solidariedade, criticava a noção burguesa- individualista de direito subjetivo, afirmando que o fato de se atribuir a alguém um direito já é uma decorrência do social. Todo direito é social. Afirma:
“O homem natural, isolado, que nasce livre e independente dos outros homens, e com direitos constituídos por essa mesma liberdade e essa mesma independência, é uma abstração alheia à realidade.”[13]
A teoria do abuso do direito – que proíbe o uso egoísta de um direito- e a ressignificação da propriedade como função social já antecipavam este amanhecer. Assevera Leon Duguitt:
“Estas leis mostram que a partir do momento em que o proprietário terreno deixar de preencher sua função social, a coletividade é convocada naturalmente a intervir para assegurar uma exploração indispensável à vida social”[14] (apud Gaston Morin, Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1945, p. 93/94, tradução livre).
A constitucionalização contemporânea do direito civil implica o transmontar dos limites do individualismo liberal, tornando-o [o direito civil] poroso a outros valores, sobretudo o da solidariedade. Tal tendência alcança o instituto da propriedade que passa por uma transformação paradigmática que cabe ao jurista captar.
Ao assinalar a função social da propriedade, a constituição de 1988 inaugura um novo ciclo reconhecendo a função social da propriedade no rol dos direitos fundamentais (art. 5, inc. XXIII) e como princípio da ordem econômica (art. 170, inc. III).
Como assertoa Washington de Barros Monteiro:
“Uma nova conceituação [da propriedade] conferiu-lhe os atributo da função social. A propriedade de hoje– a serviço dessa função- tem de ser geradora de novas riquezas, de mais trabalho e emprego, tornando-se apta a concorrer para o bem geral do povo.” (In Curso de direito civil, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 5).
No suplantar a perspectiva atomista em que o indivíduo é uma mônada isolada da comunidade, a relação entre propriedade e posse se torna mais estreita e mais complementar. Na medida em que a posse significa relação direta com a terra, a posse-trabalho emerge como nova perspectiva que, uma vez encartada dos atributos da boa-fé, consubstancia o direito de propriedade como direito que deve ser, pelos imperativos axiológicos da constituição, um direito de caráter coletivo. A posse-trabalho é a fonte de legitimação do direito de propriedade. Mesmo quando exercido de forma individual tem que se harmonizar com os ditames da axiologia comunitária.[15]
A posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, além de consoar com esse novo horizonte jurídico de cunho coletivo talhado de forma objetiva na Constituição de 1988, projeta uma perspectiva comunitária em que a relação com a terra é condição de manutenção da vida existencial e cultural dos povos originários, configurando uma manifestação do direito à vida já que a sobrevivência, não só biológica, mas também cultural está atrelada à posse-comunidade da terra. Por isso, tal direito de posse se distancia da visão atomística forjada pela visão burguesa e ostenta um sentido comunal, imantado de um sentido ético e ecológico ao densificar a tutela do direito à vida e também ao meio ambiente sustentável.
Ao regrar a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, a constituição ressalta justamente o caráter comunitário, desvelando uma nova nuance de posse que só é compreendida se suplantada a visão atomística liberal e que a doutrina civilista precisa desvelar de forma a evitar ruídos sobre tão lancinante questão. À luz da fase estruturante do método jurídico-analógico, a visão adequada da questão das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários só se apresenta se houver o realce da posse-trabalho ou a posse-comunitária como fundamento do direito de propriedade e não a propriedade abstrata preordenada à especulação e à mais-valia fundiária, urbana e rural.[16]
O Estatuto do Índio estabelece no seu art. 18:
“Art. 18. As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.”
A posse-comunidade se manifesta juridicamente sob a forma de usufruto. Entende-se por usufruto o direito real de fruir das utilidades e frutos de uma coisa sem poder afetar-lhe a substância. Quanto ao tema, estabelece o Estatuto do Índio:
“Art. 24. O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.”
Analisando a questão tendo em vista a estrutura, não há qualquer antinomia entre os institutos, havendo harmonia nos nexos de sentido, afastando-se qualquer possibilidade de se criar contradições artificiosas para provocar, falaciosamente, a necessidade de uma ponderação entre regras em conflitos, privilegiando aquela que o intérprete quer impor.
Consoante afirmamos alhures, ao se criar falsas oposições entre as normas, produz-se uma equivocidade artificial de maneira que, por uma ponderação ad hoc, revoga-se uma norma que, uma vez lida de forma correta, permaneceria íntegra no ordenamento.
Ao contrário do que se afirma, a posse permanente das terras ocupadas pelos povos originários se afina com a axiologia do ordenamento autóctone e qualquer criação de antinomias revela-se como mecanismo de apropriação privada da linguagem.
O que a tese do marco temporal busca é criar títulos jurídicos abstratos para suprimir a posse direta – que já é exercida tradicionalmente pelos povos originários. Se a questão é visualizada da perspectiva da posse-comunidade, não há razão alguma para condicionar o direito dos povos originários a terras tradicionalmente ocupadas ao marco da data da promulgação da constituição ou qualquer outra data ligada à promulgação.
- Nível Histórico
É possível recortar quatro sentidos para o nível histórico da interpretação: a) busca do sentido tendo por base os registros dos debates que precederam à constituição da lei; b) a atualização axiológica do sentido da lei; c) o sentido embutido no momento em que a lei foi forjada e d) o sentido dialético entre o aspecto sincrônico e diacrônico.
Tradicionalmente, a interpretação histórica está centrada na análise das discussões parlamentares nos momentos de discussão e votação dos projetos de leis. Figura-se a ideia de que a lei promana do legislador erigido como significante-mestre do qual as leis promanam. A doutrina jurídica fala em interpretação subjetiva no sentido de que se procura encontrar a ideia que inspirou o autor.
Na verdade, o legislador nunca é um bloco monolítico e unívoco como se pudesse identificar com uma figura existente. É mais um processo complexo que envolve a representação das mais variadas classes sociais de forma que enfeixa-lo numa figura unitária é uma abstração incompatível com a realidade. Por isso mesmo, vontade do legislador e sentido subjetivo são expressões que simplificam o processo complexo de produção de leis. São metáforas de má qualidade científica.[17]
Também a interpretação histórica é vista como a atualização axiológica dos sentidos da lei. Conforme a linguística ressalta, os signos são mutáveis na medida em que um significante- o mesmo som- pode adquirir novos significados e, portanto, novos valores. Em sendo as leis escritas de acordo com a linguagem natural, não estão alheias ao influxo do tempo de maneira que é inevitável a possibilidade de as palavras assumirem novos significados. Mas, no caso do direito, para preservar a intangibilidade do ordenamento, os novos sentidos só agasalhados quando consoantes com os sentidos pretéritos e conformados com a estrutura jurídica.
Savigny, por sua vez, quando talha um método de intepretação, visualiza, dentre outros, o elemento histórico entendido como estado de direito existente sobre a matéria na época em que a lei foi emitida. Aqui o método histórico se relaciona com o contexto do qual a norma emergira.
Os dados que interessam a um determinado campo situam-se a partir de dois eixos. O sincrônico em que a se enfatiza a simultaneidade de acontecimentos em um mesmo tempo. O diacrônico em que se mira a sucessão de acontecimentos em tempos distintos. Ao se limitar ao estudo sincrônico de um fenômeno, corre-se o risco de destemporalizá-lo, convertendo-a numa imagem idealista sem materialidade. Não se nega que é fundamental estudar a estrutura de um fenômeno dotado de autonomia relativa, marcado por dependências internas. Não obstante, estudar a estrutura sem articulá-la à gênese histórica provoca a sua hispostasia em um ente subsistente em si mesmo e desenraizado da práxis que lhe deu ensejo. O que caracteriza, portanto, à luz da hermenêutica jurídica analógica, o método histórico é a relação dialética entre o caráter diacrônico e o sincrônico de forma
que o desvelamento de novas possibilidades de significados deve estar alinhado aos aspectos atuais e pretéritos – sincrônicos. Deve-se enfatizar que o desvelamento de novas possibilidades sígnicas só é admissível quando não corroer o sistema, realçando-se o sentido textual e intertextual.
Na questão examinada, em toda a experiência constitucional brasileira, consagrou-se o direito dos povos tradicionais à posse permanentes das terras tradicionalmente habitadas. Por exemplo, a Constituição de 1967, estabelece:
Art 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
Portanto, em toda a história constitucional projetou-se um conceito de nação amplo, capaz de superar a colonialidade do poder. No cerne da questão do marco temporal, também se insere a grave questão de que conceito de nação irá prevalecer.
Os conceitos políticos não surgem historicamente do nada nem flutuam no ar como se fossem criações cerebrinas de um pensador solitário. Se aparecem na história, é porque cumprem um papel na dinâmica política. E, como a história não passa de geopolítica, os conceitos políticos são formas emergentes das refregas geopolíticas.
O que se espera é que o conceito amplo de nação tal como consagrado no projeto constitucional de 1988 seja corroborado. Não há passado nem devir no Brasil sem os povos originários.
Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.
[1] Na tradição dialética, a distinção entre o entendimento e a razão é similar à distinção entre análise e síntese, mas tem uma maior riqueza científica.
[2] Nesse sentido, tem razão Lacan quando diz que o real é o impasse da formalização. Podemos acrescentar que o avanço da ciência significa sempre a formalização de novos aspectos não subsumíveis. O valor da prática científica é justamente traz novos aspectos que motivam a ciência a avançar.
[3] O pensamento jurídico opera por tipos. Em todas as configurações do direito, a noção de tipo se manifesta.
[5] Aqui avulta de importância o tema da cadeia de custódia enquanto elemento central para representação objetiva e idônea de um fato e da forma democrática de um sistema lógico.
[6]SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2010, p. 146.
[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica. Petrópolis: 1999, p. 623-624.
[8] O que chamamos sentido literal nada mais é que uma metáfora que perdeu a evidência.
[9] A sintaxe no sentido gramatical é de importância quando vinculada à semântica. Outrora, os livros de gramática estavam imbuídos de uma subjacente lógica: os estados, as qualidades e ações relacionadas com os substantivos, adjetivos e verbos; as preposições e as conjunções expressando as mais variadas relações lógicas entre as frases e orações; os pronomes e os artigos as determinações ou indeterminações determinadas dos substantivos, o que permitia uma compreensão do funcionamento estrutural e lógico do idioma.
[10] O conceito de analogado principal foi resgatado pelo filósofo Maurice Beuchot.
[11] Os limites e as possibilidades da moldura são definidos pelo analogado principal. Por exemplo, no verso de Castro Alves “O incêndio — leão ruivo, ensanguentado”, o analogado principal é ideia de fúria, a qual as sinestesias e sugestões do poema estão vinculadas.
[12] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande. Paris: Editions sociales,1968, p. 170.
[13] DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. LZN editora, 2003, p.10.
[14] No original: “ Ces lois montrent que du moment où le propriétaire terrien cesse de remplir sa fonction sociale, la collectivité est naturellment amenée à intervir pour assurer une exploitation idispensable à la vie sociale”
[15] Para evitar a propagação de falácias por pseudomarxistas medíocres e venais, urge sempre invocar o texto de Marx e de Engels. No Manifesto escrevem: “O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa” Mais adiante, salientam: “O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte do produto social; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação”. O marxismo consequente se opõe ao modo irracional da apropriação burguesa; por isso, não nega a propriedade individual, apenas se lhe retira do contexto burguês de apropriação. O marxismo buscar conferir um sentido comunitário à propriedade para evitar a exploração que a dominação burguesa da propriedade permite. O marxismo, conforme disse Althusser, está por criar. Criemo-lo.
[16] A Constituição Boliviana de 2009, que inaugura a segunda fase do constitucionalismo transmoderno, dentre tantas novidades, no capítulo sobre Terra e Território (art. 393 ao art.403), concebe a versão mais avançada do direito de propriedade comunal enquanto fundado na posse-trabalho, com a previsão de amplos mecanismos de combate à retenção especulativa da terra e de combate à mais-valia fundiária. Uma constituição, para citar Derrida, por vir na medida em que trouxe à luz novas possibilidades, inscrevendo-se definitivamente na memória dos povos e projetando aquilo que em comum pode ser produzido. Kant dizia que um ato é revolucionário quando indica ao ser humano aquilo de que é possível em termos de ampliação da liberdade. A constituição Boliviana, então, é revolucionária.
[17] Não se pode negar o valor das metáforas para o conhecimento científico. Por exemplo, a dialética de Mao Tsé-Tung sempre lançou mão da metáfora da espiral para indicar o caráter infinito do conhecimento.